Saúde e Bem-Estar

Amanda Milléo

Como anda a prática e a aceitação dos cuidados paliativos

Amanda Milléo
28/08/2014 03:18
Todo paciente tem tratamento. Os cuidados paliativos são o uso da Medicina e outras especialidades para proporcionar bem-estar, funcionalidade e dignidade ao portador de uma doença potencialmente fatal até o último dia.
Sentir dor é algo comum entre doentes nessa condição, e o controle pode vir de um ajuste da dosagem de medicamentos. Mudanças simples de posição na cama, adequação na alimentação e a troca de curativos com anestésicos podem garantir a dignidade de uma morte tranquila, sem dor, independentemente de como ela venha a ocorrer.
Como muitos desses pacientes são diagnosticados com múltiplas doenças, como câncer, insuficiência cardía­ca, renal e doenças neurológicas, cabe ao paliativista descobrir quais sintomas precisam ser controlados, para garantir a melhora da qualidade de vida.
A dimensão dos cuidados paliativos pode ser vista em um caso exemplar citado pela presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, Maria Goretti Salles Maciel durante o 5º Congresso de Humanização, realizado em Curitiba no início de agosto, na Pontifícia Universidade Católica do Paraná: um paciente terminal queixara-se de depressão, falta de apetite, fadiga, dor, náusea e cansaço. A equipe deu início às intervenções. “A fadiga que ela sentia era da anemia, amenizada por uma transfusão de sangue. Um simples analgésico antes da troca de curativos foi o suficiente para minimizar as dores. No quinto dia de internamento, fizemos um novo questionário e as respostas melhoraram consideravelmente”, conta ela.
Câncer e outras doenças
Falar em cuidados paliativos remete principalmente ao câncer porque é a causa de morte mais comum, mas ele não está sozinho: doenças cardíacas graves, como a insuficiência cardíaca, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), doenças neurológicas – como demências avançadas – e a aids têm em comum um caráter contínuo, progressivo e ainda sem cura. “Quando a pessoa sofre um enfarte, podem ser feitas ações terapêuticas e seu quadro pode ser revertido. Porém, para um paciente com um câncer em metástase, um tumor inoperável ou em DPOC grave, o cuidado se concentra mais nos efeitos da doença e do tratamento sobre o paciente. Dor, fadiga e falta de ar são sintomas comuns que podem ser controlados”, cita o médico especialista em clínica médica e em cuidados paliativos do hospital Santa Casa, Felipe Bueno.
O lugar da morte
Entre a eutanásia, que é a antecipação da morte (não regulamentada no Brasil), e a distanásia, que é o prolongar da vida de forma artificial (condenado pelo Código de Ética Médica), a ortotanásia tem sido a melhor atitude para um fim de vida com mais dignidade, permitindo que se viva com menos sofrimento. “Se o corpo do paciente aguenta mais três dias e o médico o coloca na UTI, prolongando a vida por dois meses, isso é distanásia. Todo médico é obrigado a seguir o código de ética médica e manter alguém vivo artificialmente sem que isso se reflita em qualidade de vida é infringi-lo. A conduta paliativa deve ser disseminada entre todos”, afirma o médico especialista em clínica médica e em cuidados paliativos, do corpo clínico do hospital Santa Casa, Felipe Bueno.
“Muita gente ainda acha que esse cuidado serve apenas na fase final da pessoa, mas ela deve iniciar logo após o diagnóstico de uma doença que ameace sua vida, para que algo possa ser feito. A gente sabe que mais cedo ou mais tarde a terminalidade chegará e a ideia é que seja o mais natural possível”, diz a cirurgiã oncológica do serviço de cuidados paliativos, Clarice Yamanouchi, do Hospital Erasto Gaertner e do Instituto Oncológico do Paraná.
Porém, não se deve confundir cuidados paliativos com doença terminal. “Os pacientes com doenças em suas fases finais devem receber esses cuidados, porém um paciente que recebe cuidados paliativos não necessariamente tem uma doença em fase terminal”, diz Alain Marcio Luy, médico intensivista do Hospital das Nações.
Quem cuida também precisa de ajuda
Trocar curativos ou levar uma pessoa da cama para a cadeira de rodas parecem ações simples, mas não são. Os familiares cuidadores também merecem atenção e orientação das equipes de cuidados paliativos. “Eles sofrem com a falta de conhecimento na hora de trocar sonda, alimentar, massagear e movimentar o familiar doente e recebem pressão de conhecidos e desconhecidos com palpites sobre a melhor forma de cuidar. Se a família não recebe esse auxílio da equipe, sofre mais e cansa rápido”, afirma a cirurgiã oncológica, Clarice Yamanouchi.
A ajuda dos paliativistas visa inclusive descobrir quais são as decisões do paciente ou da família sobre procedimentos invasivos, como intubação, diálise e dieta por sonda nasoenteral, caso sejam necessários em determinado momento da doença. “O impacto do diagnóstico é muito grande para o paciente e para a família, e isso gera angústia. Quando há uma aceitação da doença, a equipe conduz o paciente e a família da melhor forma possível e auxilia na tomada de decisões”, explica a psicóloga especialista em psicologia hospitalar do Hospital viValle, Paula Magalhães Marques.
A pessoa é o todo, não só uma doença
Enquanto o diagnóstico não se concretiza como ‘terminal’, a cura continua sendo o objetivo primordial dos médicos. Porém, mudar o foco do tratamento curativo da doença para a paliação do paciente deve nortear a ação de médicos, enfermeiros e profissionais da saúde quando se chega àquela condição.
“Das mortes no Brasil, 70% são de causas irreversíveis e precisariam de cuidados paliativos. Só 30% morrem de problemas reversíveis como acidentes e enfartes. Logo, estamos fazendo a medicina para um terço da população quando focamos apenas no diagnóstico e cura”, diz o especialista em clínica médica e em cuidados paliativos, Felipe Bueno.
A responsabilidade por este desequilíbrio, segundo Bueno, recai sobre como o médico e demais profissionais da saúde veem os pacientes. “Durante seis anos, o aluno entende que médico é aquele que salva vidas, que diagnostica e cura. De repente, ele chega ao hospital e tem de encarar um paciente cujo diagnóstico foi feito e a cura não existe”, analisa. A visão humanista da Medicina perpassa as disciplinas de ética, bioética e também se alcança na vivência com os pacientes. Pensar na morte como algo afastado da realidade ou como uma derrota dificulta o convencimento do médico na hora de priorizar a qualidade de vida em vez do tempo de vida. “Ainda é difícil convencer o médico. Na área oncológica o processo é mais claro, ele percebe melhor quando a busca pela cura ou aumento de sobrevida deixa de ter sentido”, diz o professor de bioética da Universidade Positivo e mastologista do Hospital Nossa Senhora das Graças, Cícero Urban. Uma das soluções seria enxergar o paciente além da doença. “Por isso precisamos de uma atividade multidisciplinar, com a interação da nutrição, psicologia, serviço social, fisioterapia, enfermagem e medicina”, diz a cirurgiã oncológica, Clarice Yamanouchi.
Hospices no Brasil
Há no Brasil dez unidades, entre São Paulo e Rio de Janeiro, têm características semelhantes aos hospices, vislumbrados pela precursora dos cuidados paliativos, a enfermeira e médica britânica Cicely Saunders. Para ela, o paciente não deveria ser atendido nem em um local dedicado ao diagnóstico e à cura (os hospitais), nem na casa do paciente, que não teria o suporte necessário. “O hospice congrega um tempo de disponibilidade dos funcionários para atender as necessidades dos pacientes, material e tecnológica para alívio da dor e contato com a natureza (ambiência)”, diz Claudia Naylor, diretora do Hospital do Câncer 4 do Instituto Nacional do Câncer, localizado no Rio de Janeiro, cuja estrutura se assemelha a este modelo.
Tomada de decisão
DEPOIMENTOS
Confira experiências de quem recorreu aos cuidados paliativos:
Sem sofrimento
Não era medo de morrer, mas um desejo intenso de viver que motivava o agricultor aposentado Alcides Jeanine a seguir buscando soluções para o câncer de próstata avançado. “No início ele sentia mais vontade, até assimilar o que a doença significava. Ele dizia que ‘se for o necessário para melhorar, eu faço’, e o apoio da família foi muito importante para tomar as decisões que precisava”, diz o filho e pintor automotivo, Paulo Cezar Jeanine. Como Alcides sentia muita dor, os cuidados paliativos vieram para minimizar os incômodos. “A dor impede que você faça o que quer ou precisa. Sem dor, deu para aproveitar cada minuto”, diz o filho. Após sete anos de tratamento e cuidados, Alcides faleceu no hospital, mas ao lado da família.
Aprendendo sempre
Quando a companheira do motorista Ivo Alves Fontes disse não à sonda que a ajudaria na alimentação, ele percebeu que havia pouco tempo restante. Do diagnóstico do tumor no canal biliar – que liga a vesícula biliar com o intestino – ao último dia de Maria Aparecida, passaram-se um ano e três meses. “Mesmo após doze sessões de quimioterapia, aprendia novas formas de cuidar dela, como ela poderia comer e ter mais conforto naquela fase”, conta. Após seis meses do falecimento de Maria, Ivo continua visitando toda semana a equipe de serviços paliativos do hospital e recebe os colegas da saúde em casa para mostrar o que tem feito. “Toda sexta venho e trago verduras para cá. Virei voluntário!”, diz.
Vivendo melhor
Durante dois anos e meio, Márcia Forosteche lutou contra um câncer no útero. Como a cirurgia não era indicada, fez radio e quimioterapia até que a biópsia final trouxe o alívio. Depois do respiro, a vendedora percebeu que não estava bem. “A radioterapia me deixou sequelas no intestino e eu sentia muitas dores”, conta. Recorrer à equipe de cuidados paliativos foi a solução encontrada para recuperar os 8kg perdidos no tratamento e reduzir as dores. “Hoje tomo os medicamentos certos e, nas últimas vezes que reduzimos as dosagens, tive recaídas, mas estamos adaptando. Agora eu consigo levar uma vida normal, sem incomodar a minha família dia sim, dia não, para me trazer ao hospital”, diz.