Saúde e Bem-Estar

Carolina Kirchner Furquim, especial para Gazeta do Povo

Sentir dor o tempo todo não é natural, mesmo depois de uma certa idade

Carolina Kirchner Furquim, especial para Gazeta do Povo
17/11/2018 07:00
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O mais grave não é a dor em si, mas como ela é incorporada pelo paciente a ponto de achar que "é normal". Foto: Bigstock

Quase sempre negligenciada — principalmente dentro dos hospitais —, a dor em idosos sempre deve ser tratada e, quando possível, evitada, diz o médico geriatra do Hospital Marcelino Champagnat, José Mário Tupiná Machado, também professor do curso de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Segundo ele, sentir dores pelo corpo inteiro após certa idade não pode ser considerado algo natural. Confira a entrevista:

Afinal, o que é a dor?

A dor tem várias dimensões. A dimensão mais valorizada é a biológica, mas vai muito além disso. Há dor de fundo emocional, afetivo, social, econômico, político. O remédio só atinge a dimensão biológica da dor, sem capacidade de “enxergar” a dor total. Dores que não respondem à analgesia, então, estão além da atuação física. Nós, médicos, temos uma formação muito tecnicista, que não costuma valorizar e respeitar as dimensões não-biológicas da vida. Isso precisa mudar.
Ter dor por todo o corpo depois de uma certa idade, é normal?
Não é normal. Sempre existe causa para a dor, e ela deve ser descoberta e tratada. Toda dor deve ser aliviada com o uso de medidas antiálgicas, sejam elas medicamentosas ou não.
Idosos correm mais risco de ter lesões nos ombros: exercícios devem ser feitos sempre com orientação. Foto: Bigstock.
Idosos correm mais risco de ter lesões nos ombros: exercícios devem ser feitos sempre com orientação. Foto: Bigstock.

Qual dor é considerada a mais comum na terceira idade?

É a dor nas costas, a lombalgia. O mais grave, e vale salientar, não é a dor em si, mas como ela é geralmente incorporada pelo paciente a ponto de ele não se queixar de forma espontânea, achando que esse é um evento natural da idade e, portanto, é preciso passar por isso. É frequente no consultório o paciente idoso negar ter alguma queixa a princípio, mas quando confrontado com algo específico, como se sente dor nas costas, dar resposta afirmativa.

O idoso consegue autoavaliar a dor que sente? Quais sinais denotam a presença da dor?

A maioria consegue. Uma minoria não, geralmente aqueles com a presença da deterioração da linguagem e problemas neurológicos ou psiquiátricos, o que compromete a capacidade de caracterizar a dor, explicá-la ou se queixar. É importante realizar uma avaliação a mais objetiva possível, considerando sinais indiretos de dor e mudanças comportamentais, como pacientes tipicamente apáticos que se tornam agitados ou o contrário. Pacientes demenciados que mudam de comportamento e apresentam sonolência, insônia, apatia, inquietude, agressividade e outras alterações de condutas, devem ser investigados para dor. Ao cuidador não cabe fazer o diagnóstico, mas observar e alertar a família.

Há problema na automedicação específica para a dor?

Sim, com riscos altos. Quem costuma se automedicar também segue orientações de terceiros, o que é bastante problemático. Tomar anti-inflamatório melhora a dor, mas não resolve o problema, podendo até mesmo causar outros, como hipertensão e comprometimento da função renal. Complicações mais importantes incluem até mesmo sangramentos digestivos.
A automedicação pode camuflar sintomas e esconder doenças mais graves. Foto: Aniele Nascimento / Gazeta do Povo / arquivo)
A automedicação pode camuflar sintomas e esconder doenças mais graves. Foto: Aniele Nascimento / Gazeta do Povo / arquivo)

E em idosos polimedicados, como agir?

Para a totalidade dos geriatras, quanto menos remédio, melhor. A meta é sempre diminuir o uso de medicamentos, mas, em geral, o idoso apresenta condições simultâneas e cada especialista abraça a sua causa e resolve o problema da sua área. Todos tentam, evidentemente, resolver o problema, mas isso acaba por acumular uma série de remédios bons para sua atuação específica, mas que interferem no todo. O papel do geriatra é criar uma hierarquia de prioridades e manter apenas os remédios realmente necessários, causando o menor prejuízo possível. Isso, é claro, se convencido de que as vantagens são maiores do que as desvantagens.

E nos hospitais, como você vê o manejo da dor?

Muitos profissionais da saúde ainda acreditam que a dor, por ser inerente a certas situações, funciona como sinal de alerta e, por isso, não deve ser tratada ou minimizada sob risco de confundir o diagnóstico. No pós-cirúrgico, acreditam ser normal sentir dor na cicatriz, uma vez que o paciente foi operado e ‘é assim mesmo’. Ora, eu fui operado e não quero sentir dor. É um direito.

A dor ainda é subvalorizada, mesmo que a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP, na sigla em inglês), preconize – e não é de agora – que a dor deva ser encarada como o quinto sinal vital, junto com a temperatura, pulso, pressão arterial e frequência respiratória.

No controle dos dados de um paciente internado, ele deve obrigatoriamente ser perguntado pela ocorrência de dor. A dor previsível, desencadeada por uma agressão cirúrgica, por exemplo, deve ser tratada antecipadamente. Médicos conscientes, capacitados e atualizados sabem disso e administram medicação prévia. Depois que o paciente começa a manifestar a dor, depois de desencadeado o mecanismo, fica mais difícil reverter a cascata.

Na escala, como medir a dor de um paciente?

Sabe qual é a pior dor que existe? É aquela que se está sentindo. Infelizmente, no outro extremo há pacientes que camuflam o seu sofrimento. Se ele disser que a dor é importante, teme que o médico valorize muito esse evento e diminua a agressividade do tratamento da doença de base, por exemplo. Também temem passar a ser encarados como chatos e incômodos, especialmente se vivem muito tempo com aquela dor. Isso porque a dor que desperta solidariedade é a dor aguda. A dor crônica, sentida por um período superior a três meses, infelizmente, às vezes estimula a repulsa das pessoas. Contar o que sente é obrigatório. Só assim podemos medir a dor de um paciente.

É real o preconceito contra analgésicos mais potentes?

(Foto: Bigstock)
(Foto: Bigstock)
Sim, especialmente contra a morfina. Muitos acreditam que quem toma morfina é porque está morrendo. É um pecado que a história tenha arraigado esse conceito. É um analgésico como qualquer outro, mas direcionado a dores mais severas graças à sua potência, e muito bem-vindo quando bem indicado. Digo para os meus alunos que quero viver para ver a morfina sendo utilizada como rotina em pós-operatórios. É preciso entender que toda dor crônica já foi aguda um dia. Só existe dor crônica porque a aguda não foi adequadamente tratada.

O que mais pode ser feito para o alívio da dor em idosos?

Em qualquer pessoa, a depender da dor, fisioterapia, estimulação elétrica, ultrassom, mobilização ativa e passiva, choque térmico e muitas outras atitudes adjuvantes que ajudam muito.
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