Saúde e Bem-Estar

Amanda Milléo

Você conhece o médico que faz partos de almas?

Amanda Milléo
04/08/2016 09:00
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Foto: Bigstock

O bom médico não é aquele que sabe curar as doenças do paciente, mas toda a vida dele, especialmente nos seus últimos dias. Como? Ouvindo com atenção os seus desejos e usando os recursos da medicina, como os medicamentos, para dar conforto e diminuir o sofrimento – ou praticando os cuidados paliativos. Referência nessa área, a médica geriatra e gerontóloga Ana Claudia de Lima Quintana Arantes tem bem claro que a “morte é um dia que vale a pena viver”, e explicou a frase na noite de terça-feira (2), durante uma palestra na Universidade Positivo, em Curitiba. Confira!
A médica geriatra é especialista em cuidados paliativos e intervenções em luto (Foto: Bruna Zembuski / Divulgação)
A médica geriatra é especialista em cuidados paliativos e intervenções em luto (Foto: Bruna Zembuski / Divulgação)
Como a família e os médicos podem ajudar o paciente com uma doença terminal a ter mais conforto?
A discussão fundamental que precisa existir é a meta do cuidado. Qual é o objetivo desse cuidado? Quem define aonde a gente quer chegar é o paciente. Se a coisa mais valiosa para ele é ficar em casa com a família, não vamos perguntar se ele quer ser entubado, porque é evidente que isso impede que o desejo dele seja alcançado. O trabalho do médico é encontrar a meta desse cuidado, conciliando a expectativa do doente com a expectativa da família e a realidade da doença. A partir desse consenso, oferecer o que a medicina pode dar de melhor para que o objetivo seja alcançado.
No dia a dia você vê a família muito nervosa, sem saber ao certo o que esperar, por mais que conheça os desejos do paciente?
A família que fica muito nervosa é porque está insegura ou não sente clareza no tratamento proposto. Às vezes porque o médico oferece um tratamento, mas acredita em outro. A linguagem que o médico usa é muito distante da compreensão para aquele momento, porque é mais técnica, e as pessoas estão lidando com um sofrimento que é humano, não técnico. Quando a família está muito insegura, é preciso trabalhar com a equipe médica para que evolua nesse contato com o paciente. Essa área de comunicação em saúde é pouquíssimo explorada e é em cima dela que há os maiores problemas da medicina, nesse abismo entre pacientes e médicos.

“Eu adorei tanto a área de obstetrícia, que eu fazia plantão sempre. No final, acabei fazendo uma obstetrícia às avessas. Eu faço parto de almas”.

Você vê essa dificuldade de comunicação médico/paciente mais no Brasil ou mesmo em outros países?
No mundo todo os dramas são os mesmos, sofrimento não escolhe língua, nem bolso ou cultura. Embora a gente ache que os europeus possam ser mais frios, pode ser uma frieza de atitude, mas nós também somos frios. A nossa frieza está na incongruência entre o que a gente fala, faz e o que a gente sente. Isso faz com que o paciente se sinta abandonado pelo médico. Mesmo que o médico passe todos os dias, abrace, converse sobre futebol ou qualquer outro assunto que não esteja relacionado à vida do paciente, seja uma pessoa doce, acolhedora e afetiva, esse paciente percebe que o médico é distante, é tudo ensaiado, ‘fake’.
Quais são os lugares no Brasil que praticam os cuidados paliativos?
São pouquíssimos os hospices, as unidades de cuidado paliativo exclusivo, ou uma UTI do sofrimento humano, no Brasil. Por outro lado, tem muitos locais que dizem fazer cuidados paliativos, mas não conseguem porque não têm uma equipe capacitada para isso. E a principal diferença é a equipe, porque pintar a parede de verde, colocar um vasinho de planta e treinar sorrisos não é fazer cuidado paliativo, é humanizar. No que, de fato, a gente precisa evoluir é no comportamento humano, não na aparência humana.
Qual é a diferença entre humanizar e praticar cuidados paliativos?
No cuidado paliativo você une a ciência com a humanidade. O paciente espera que você junte o que tem de melhor do seu conhecimento científico com o que tem de melhor do seu coração, para que você compreenda e possa cuidar, acompanhar essa pessoa até o final da vida, até porque um dia você estará no lugar dela. Isso nos identifica como seres humanos. Se a taxa de sedação do hospital for maior de 10% nos pacientes terminais, isso indica uma incapacidade do hospital em cuidados paliativos.
O que significa quando você diz que a “a morte é um dia que vale a pena viver”?
Você não pode excluir esse último dia da sua vida. Se você perguntar para qualquer pessoa qual é o contrário de morte, a maior parte vai dizer que é vida. Mas vida não tem contrário. O contrário de morte é nascimento. Mas o morrer está na sua vida. O último dia da sua vida ainda está na sua vida, faz parte da sua história, e a morte é o grand finale. Se você não enfrentar a vida com essa força de que o último dia vale a pena, você passa por todos os outros no raso, no mais ou menos.