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Pobreza não é só falta de dinheiro
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É comum ouvir pessoas falarem, ao lembrar da própria infância, que "éramos pobres, mas não faltava nada". Não se trata de nostalgia ou imprecisão, as pessoas são muito sábias ao entender que há diferentes níveis de pobreza e que não é apenas o dinheiro que determina isso, é o dia-a-dia. A sabedoria popular tem, nas últimas décadas, comprovação científica. O relatório "Bem Estar e Privações Múltiplas na Infância e na Adolescência no Brasil", produzido pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), explica vários métodos científicos que medem não apenas o nível de pobreza formal, usado em relatórios econômicos, mas o impacto na vida das pessoas.

Hoje, 17 de outubro, é Dia Internacional pela Erradicação da Pobreza, data destinada a pensar ações práticas para reverter principalmente a miséria absoluta, que impede milhões de seres humanos de viver com dignidade. Atualmente, 790 milhões de pessoas no mundo sobrevivem com menos de US$ 1,90 por dia. Quem mais sofre são as crianças, que têm duas vezes mais chances de viver na pobreza que os adultos, o que acaba transferindo privações entre as gerações cada vez mais.

Claro que é mais fácil falar de pobreza relacionando diretamente a dinheiro. Mas não é verdadeiro. "Rendas idênticas podem levar a níveis de satisfação diferentes, dependendo de fatores diversos, como a família, o domicílio e a região de moradia, o nível de escolaridade da mãe e do pai, entre outros", diz o Unicef.

Desde 2003, quando a Universidade de Bristol fez um extenso estudo sobre indicadores de pobreza, se adota um critério além do dinheiro para definir quem realmente "passa necessidade". São basicamente 6 eixos: educação, informação, água, saneamento, domicílio e nutrição. Cada um deles é posteriormente dividido em 3 gradientes: sem privação, com privação intermediária e com privação extrema.

Parece muita teoria, mas é bem prática a história. Peguemos como exemplo a Educação - os dados dos demais parâmetros estão todos no estudo, a partir da página 54 - para entender as diferenças entre níveis de necessidade.

Sem privação: Criança em idade escolar que frequenta a escola sem defasagem de ano e sabe ler e escrever.

Com privação intermediária: Criança entre 9-17 anos que frequenta a escola com defasagem de ano - Criança maior de 7 anos analfabeta que frequenta um estabelecimento educacional.

Com privação extrema: Criança entre 4-17 anos que não frequenta um estabelecimento educacional - Criança maior de 7 anos analfabeta, que não frequenta um estabelecimento educacional.

"Em 2015, esta classificação mostrou que 13,8% da população de crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos de idade sofre privação em educação, e 6,5% desse total sofre privação extrema. No total, 20,3% da população de crianças e adolescentes tem alguma irregularidade ou carência no plano educacional, o que, em termos absolutos, equivale a 8.789.820 crianças e adolescentes.", conclui o levantamento do Unicef com base dos dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE).

Um fator determinante para melhores condições de vida, segundo levantado pelos pesquisadores do Unicef, é a presença da família, principalmente mãe e pai, na vida das crianças.

A presença da mãe e do pai é muito valiosa para o desenvolvimento das meninas e dos meninos, de acordo com diversos estudos apresentados no documento em que este dado é relacionado a resultados na educação e saúde. Obviamente há, aqui, uma relação importante com a destinação de renda de pais para filhos, mas não é a única explicação. "No contexto de privações em educação, observa-se que crianças com mães vivas registram incidência significativamente menor que aqueles cujas mães não são vivas, ou cujo paradeiro as crianças desconhecem. Não conhecer o paradeiro da mãe, ou não saber se a mãe está viva implica sua ausência, e isso se reflete claramente nas mínimas diferenças observadas entre ambos os grupos" (os que sofrem privações e os que não sofrem), explica o Unicef.

O gráfico acima traz uma relação muito interessante: a comparação da privação monetária com os efeitos das privações não monetárias, dividindo o Brasil por Estados. A nuvem mostra que não há uma correspondência exata entre a extensão da privação monetária e da privação não monetária. Ou seja, não é uma conta exata o tanto de necessidade real que se passa por falta de dinheiro. Mas a nuvem mostra que há uma correspondência: todos os Estados que estão no maior quadrante de privação financeira também estão no maior quadrante de todas as outras privações para crianças.

No segundo gráfico, o dos casos extremos, podemos ver que diferentes estados brasileiros têm lidado com a falta de dinheiro da população de formas diferentes, o que demonstra resultados muito diferentes na qualidade de vida das crianças.

"Vale observar a situação das unidades federativas com pobreza monetária relativamente baixa, como Brasília e Mato Grosso do Sul ambas com cerca de 20% , que diferem amplamente na incidência das privações não monetárias: 31% e 68%, respectivamente. Ou estados com níveis de pobreza monetária muito díspares, como Pernambuco (53%) e Mato Grosso do Sul (20%), que alcançam níveis muito parecidos de privações não monetárias, ambos cerca de 65%: 64% a primeira, 68% a segunda", recomenda o Unicef.

O que separa a pobreza da pobreza extrema? Em termos técnicos, a extrema é quando a renda da família é insuficiente para comprar uma cesta básica de alimentos - nesse segmento, é difícil encontrar medidas que realmente propiciem bem-estar apesar da falta de dinheiro.

No Brasil, 18 milhões de crianças e adolescentes vivem em famílias com renda insuficiente para suprir todas suas necessidades básicas. 1/3 delas, 6 milhões de crianças e adolescentes brasileiros, são de famílias cuja renda mensal total não dá para comprar uma cesta básica. Esse segmento requer atenção urgente e especial. A literatura especializada indica que esse nível de pobreza pode ser tranquilamente utilizado como indicador indireto de bem-estar e privações múltiplas na infãncia e adolescência no Brasil, já que ele denota a impossibilidade de nutrição adequada durante o desenvolvimento, o que tem consequências para a vida dessas crianças e para próxima geração.

Há um dado que, infelizmente no Brasil, passa a ser determinante para avaliar a situação da infância: violência e criminalidade. "Ainda é necessário que se faça uma análise sobre o complexo tema da violência e suas diferentes facetas, como homicídios contra adolescentes, violência armada e violência sexual e/ou psicológica contra meninas e meninos de todas as idades. Esta análise contribuirá para a reflexão sobre a relação e o nível de incidência com a pobreza, entendida como resultante de privações múltiplas", conclui o levantamento.

Além da recomendação para o governo brasileiro de passar a compilar e atualizar os dados relativos às privações na infância - e não apenas os relativos à pobreza financeira - há a ideia de se colocar realmente a família em primeiro lugar. "Outro aspecto importante que o estudo revela é que, para reduzir a pobreza na infância e na adolescência, os gestores públicos devem levar em conta políticas públicas que beneficiem os adultos responsáveis pelos cuidados dessa população. Por exemplo, políticas públicas de educação combinadas com políticas de cuidado, com enfoque nas mães, podem contribuir para a redução de disparidades em outras privações, como na proteção contra o trabalho infantil e/ou educação", defende o Unicef.

Gostamos de pensar que é racional colocar o dinheiro e a disponibilidade dele como o único senhor e solução de todas as políticas públicas. Não é. Nem tudo o dinheiro compra. O futuro do nosso país depende de abrir o olhar para as múltiplas necessidades do ser humano e dar um passo além do combate à miséria.
Todos os países que saíram do buraco para o rumo do desenvolvimento puseram foco total na educação e nas crianças. Não há receita fácil e as que existem dependem da pressão e participação da sociedade civil.

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