
Já existe um mercado que se alimenta da manipulação da justa indignação dos cidadãos. Não há justificativa de qualidade musical e cultural que sustente o lançamento do hit “Só surubinha de leve”, de Mc Diguinho, é evidente que foi feito para chocar e nada além disso.
O trecho que o autor e sua equipe alegam ter sido mal interpretado é esta pérola do cancioneiro popular:
Brota e convoca as tchucas
Mais tarde tem fervo, hoje vai rolar suruba
Só surubinha de leve com essas minas malucas
Taca a bebida, depois taca a p**
E abandona na rua
Em horas, Mc Diguinho conseguiu 14 MILHÕES e meio de visualizações no YouTube. Virou recordista mundial do Spotify. Juntou-se a outros artistas para tentar dizer que essa é a realidade das pessoas que vivem onde ele vive, na periferia, o que obviamente, deflagrou uma onda de contestações no twitter: é óbvio que uma minoria vive assim.
Aliam-se a ele outros artistas, surfando da mesma onda da justa indignação, chamando as pessoas de hipócritas porque supostamente estariam dizendo nas redes sociais estar indignadas enquanto se jogam na pista para dançar a música.
Quase eu liguei na ABIN para suspender o concurso e contratar esses funkeiros. Veja que em segundos, pelo twitter, identificaram quem são os frequentadores de baile funk que dançaram determinada música e foram na internet reclamar dela. É um serviço de inteligência para FBI nenhum botar defeito, Brazyl.
E então essa pátria de chuteiras partiu para fazer o que sempre faz esperando um resultado diferente: colocar seu destino nas mãos do Poder Público. Confesso que quase fiz isso. Li a estrofe e já pensei que bebida afeta o consentimento, sexo não consentido é estupro, jogar na rua é violência, então vamos fazer uma reportagem com um criminalista comentando.
Ali estava eu, prestes a cometer novamente o mesmo erro que temos cometido sistematicamente: colocar o destino do nosso país apenas nas mãos do Poder Público em vez de tomar as rédeas como sociedade civil.
Quem manipula nossa indignação e vive dos lucros das visualizações desses vídeos e músicas feitos para chocar sabe muito bem em que terminam esses processos: nada ou quase nada. O debate em torno da tal “apologia ao estupro” serviu para que o cantor postasse no twitter este comunicado:

Foi realmente revelador descobrir que só ferem a honra e moral das mulheres aqueles que não têm nenhuma relação de parentesco com mulheres. São, todos eles, nascidos de chocadeira. Mais uma para a ABIN anotar – importante essa.
A nota fala em lançamento da “versão light”. Sim, ela foi gravada no mesmo dia, com direito a vídeo dizendo que a anterior foi mal interpretada, que ele não estava falando em fazer nada contra a vontade, que ao chamar as mulheres de malandras, filhas da p*** e outros adjetivos ele não quis ofender, enfim, mais do mesmo ritual que temos visto se repetir. Versão light, Brazyl:
Brota e convoca as tchucas
Mais tarde tem fervo, hoje vai rolar suruba
Só surubinha de leve com essas minas malucas
Taca a bebida, depois taca e fica
Mas não abandona na rua
Quem faz isso sabe muito bem o jogo que está jogando. Entende o timing, os prazos que tem para lançamento, o quanto consegue faturar antes que qualquer impedimento legal atinja a divulgação da música e do vídeo, que serão consumidos em massa não pelas qualidades, mas pela indignação e repulsa que causam.
Como agir? A gente simplesmente ignora? Não reclama mais de nada? Claro que não. A gente muda de estratégia, toma as rédeas como sociedade civil, usa a nossa liderança – e não apenas o Poder Público – para colocar um ponto final no que não nos serve.
A primeira tomada de posição veio do Spotify que, apesar de ter visto “Só Surubinha de Leve” chegar ao topo das mais ouvidas do mundo, resolveu retirar a música de sua playlist.

Resolvemos falar com o Marcos Lauro, editor da Billboard Brasil, revista especializada no mercado musical, para saber mais desse fenômeno. Sobre a qualidade da música em questão, ele é taxativo:
Quem gostou da música não precisa aumentar o repertório musical, precisa de tratamento psicológico.
O Marcos Lauro gosta muito das raízes do funk americano e também do brasileiro como manifestação cultural, mas aponta que existe um fenômeno específico, feito exatamente para chocar, agredir, que é o dos “proibidões”, os funkeiros ligados ao crime organizado ou que falam apenas de sexo.
Quando a gente debate sobre esse tema precisa tomar cuidado para não ajudar no sucesso dessas músicas e desses grupos, eles já entenderam como fazer para tirar proveito da indignação que causam.
O debate sobre a música deve existir. Aliás, é exatamente por causa desse debate que ela foi tirada do ar. (…) O problema é que o debate, em vez de causar reflexão, ele causa curiosidade. As pessoas pensam “ah, estão falando dessa música, é tão ruim assim, vou lá ouvir”.
DICAS PRÁTICAS: O QUE FAZER
Qualquer que seja a ação do Poder Público, precisamos aprender a nos posicionar como sociedade civil. Se algo não é aceitável, temos de exigir um posicionamento imediato das grandes plataformas de distribuição de músicas e vídeo, que são empresas privadas e têm regras de participação.
Nesse caso específico, o efeito foi imediato: a música saiu do ar porque não estava de acordo com o que a nossa sociedade aceita e quer ver distribuído. Ponto.
Quando for debater, NÃO DISTRIBUA O LINK. Não clique no link, não dê views. O ideal é ler o texto e mandar o link nas mensagens internas diretamente para a plataforma.
As ações do Poder Público nesses casos são muito complexas e há uma linha fina entre a liberdade de expressão e a apologia ao crime, uma discussão interminável. Mas é clara e cristalina a ideia do que os consumidores querem ou não que esteja na prateleira da distribuidora privada de vídeos e músicas que carregam no celular o dia todo.
Onde estão os líderes? Que o caso Mc Diguinho seja o início de um aprendizado para nós. Nem tudo será solucionado pelo Poder Público como acreditamos, de maneira infantil, na abertura democrática e na promulgação da Constituição de 88. Quem carrega o piano é a Sociedade Civil. Chegamos a esse ponto porque deixamos as rédeas soltas demais. Que comecem as mudanças.



