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Em economia, existe uma expressão para descrever quando alguém, na ânsia de vencer, acaba sacrificando mais do que ganhará com a própria vitória: a “maldição do vencedor”. A reforma tributária sobre o consumo, aprovada pelo governo federal e prestes a iniciar sua longa fase de transição, parece se enquadrar exatamente nesse caso.
Já ocupei posições estratégicas no Executivo Federal, como secretário de Política Econômica e ministro de Minas e Energia. Sei o quanto é frustrante lutar por uma reforma e, ao final, reconhecer que ela se desfigurou. Ter a maturidade de desistir quando o projeto perde seu sentido original é difícil — mas necessário. Entre a elaboração de uma política pública e sua votação no Congresso, investem-se tempo e capital político.
Nessa jornada, muitos se esquecem de fazer a pergunta essencial: depois de tantas alterações, ainda vale a pena seguir? Ou, na ânsia de aprovar algo, corremos o risco de entregar ao país um resultado pior do que a situação atual?
No caso da reforma tributária sobre o consumo, acredito que o governo falhou em fazer essa reflexão. É inegável que o sistema tributário brasileiro é complexo e permeado de distorções. A sociedade deseja simplificação, e uma boa reforma poderia elevar significativamente nossa produtividade. Contudo, o texto aprovado está muito distante do modelo teórico idealizado por alguns especialistas.
A partir de 2026, iniciaremos uma longa transição até 2033, durante a qual dois regimes tributários coexistirão — justamente o oposto da simplicidade que se prometia
É preciso ser direto: o setor de serviços será penalizado. Empresas que operam no lucro presumido também. Até o saneamento básico ficará mais caro, elevando as contas de água e esgoto. Soma-se a isso uma confusão frequente entre contabilidade, direito e economia.
Contadores e advogados podem defender a neutralidade do IVA — e, do ponto de vista técnico deles, não estão errados. Mas, economicamente, o ônus do imposto recai sobre quem tem menor capacidade de reagir aos preços. Em outras palavras, essa reforma não é neutra do ponto de vista econômico e irá impactar negativamente setores como tecnologia e comércio.
O Brasil precisa de um sistema tributário melhor, e o debate honesto é essencial. Contudo, a reforma aprovada cria incertezas expressivas e pode mergulhar o país em disputas jurídicas ainda desconhecidas. É insuficiente afirmar que a reforma é “menos pior” do que o sistema atual. Qualquer mudança desse porte precisa considerar seus custos de transição.
Mesmo uma reforma teoricamente superior pode tornar-se inviável se o preço para implementá-la for alto demais. Hoje, vemos custos de transição elevados, grande incerteza jurídica e fiscal e muitas perguntas sem resposta. É democrático prosseguirmos com uma reforma sem sabermos, por exemplo, o impacto real na conta de luz?
Os custos fiscais também preocupam. Apenas os fundos de compensação a estados e municípios podem chegar perto de R$ 800 bilhões em 20 anos. Estimativas indicam que a União poderá desembolsar cerca de R$ 179 bilhões extras até 2030 — algo em torno de R$ 30 bilhões por ano entre 2025 e 2030. Já observamos atrasos nessas transferências. De onde virão os recursos para sustentar fundos dessa magnitude?
Mesmo ideias brilhantes encontram limites quando viram lei. Precisamos saber qual é a linha que não devemos cruzar — o ponto em que a boa ideia se transforma em risco. Outro ponto crítico: a alíquota do IVA será a mais alta do mundo. Sem consensos concretos, caminhamos na direção errada. A reforma:
- não simplifica o sistema;
- aumenta obrigações acessórias;
- eleva o custo de adaptação;
- descarta boa parte da jurisprudência existente;
- concentra poder em Brasília, enfraquecendo o pacto federativo;
- obriga empresas a operar dois sistemas em paralelo durante a transição;
- estimula a informalidade e a sonegação;
- amplia distorções econômicas ao elevar as alíquotas marginais; e
- aumenta a carga tributária.
O resultado provável é a inviabilização de determinadas atividades econômicas, o aumento da informalidade, maior insegurança jurídica e a penalização generalizada da sociedade. Reformas desse tamanho só se justificam em momentos extremos. Em minha visão, o Brasil já caminhava para um ciclo sustentável de crescimento com as reformas de 2016–2022 — ajustes graduais pareceriam mais prudentes do que um salto no escuro.
Na vida pública, a humildade deve caminhar com a convicção: espero estar errado e que o êxito desta reforma me surpreenda. Reconheço o esforço e a boa-fé de todos que trabalharam por essa reforma. Nem sempre é simples saber quem tem razão — e talvez, ao final, estejam certos. Mas, se a história nos ensina algo, é que saltos desesperados raramente substituem o valor da consistência.




