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Estamos assistindo a um dos processos judiciais mais importantes da história do país: o julgamento de centenas de pessoas, incluindo ex-autoridades, por um suposto golpe de Estado. Sem entrar aqui nos tecnicismos do processo, é importante entender o que diz a Ciência Política sobre o que é e como ocorre um golpe de Estado.
A definição clássica foi formulada pelo grande cientista político Edward Luttwak, em sua obra Coup d’État: A Practical Handbook. Nela, o golpe é definido como “a tomada do controle de uma parte ou da totalidade do aparato do Estado por meio da força, realizada por um segmento do aparato estatal”. Outros autores adicionam outras variáveis, mas todos destacam a ilegalidade, a violência e a participação de atores estatais.
Movimentos sociais e protestos populares, mesmo quando violentos, diferem de golpes por não terem necessariamente como objetivo a tomada do poder estatal
Segundo a literatura científica, algumas características são fundamentais para caracterizar um evento como golpe de estado: 1. A presença de agentes institucionais: Alfred Stepan, em Rethinking Military Politics: Brazil and the Southern Cone (1988), enfatiza que golpes geralmente são executados por pessoas com posições de poder dentro do Estado, frequentemente militares ou elites políticas; 2. A ilegalidade: Nikolay Marinov e Hein Goemans, em Coups and Democracy (2014), destacam que golpes violam as normas estabelecidas para a transferência de poder; 3. O uso ou ameaça de uso da força: Samuel Huntington, em Political Order in Changing Societies (1968), identifica o uso ou ameaça de violência como um elemento essencial; 4. O efeito surpresa e a velocidade de execução: Samuel Finer, em The Man on Horseback (1962), mostra que golpes são caracterizados por sua rapidez de execução, para evitar resistência organizada, em contraste com as revoluções; e 5. A tomada dos nós logísticos e dos centros tecnológicos: o famosíssimo Dicionário de Política, de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, mostra que no golpe se tomam estradas, portos, aeroportos, o Ministério das Comunicações, emissoras de rádio e televisão etc.
Bobbio ainda fala especificamente que a participação popular em um golpe de Estado pode ou não existir, pois ela não é um elemento constitutivo. Curtis Bell, em Coup d’État and Democracy (2016), demonstra que em regimes democráticos os golpes de Estado acontecem com uma probabilidade 50% menor – mas, quando acontecem, têm mais chances de dar certo.
Existem diversos tipos de golpes de estado: o golpe militar, o mais comum historicamente; o golpe palaciano, uma substituição de líderes dentro de um mesmo regime; o autogolpe, quando um líder eleito democraticamente dissolve instituições democráticas e se torna ditador; há, ainda, o golpe parlamentar, o golpe preventivo etc.
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Nem tudo, no entanto, é golpe de Estado. É importante distingui-lo de diferentes formas de contestação política, como protestos, insurreições, motins, rebeliões e tumultos. Sidney Tarrow, em Power in Movement (1994), diferencia esses fenômenos dos golpes de Estado, destacando que aqueles são manifestações públicas com demandas variadas, enquanto estes são ações coordenadas para tomar o poder estatal. Donatella della Porta e Mario Diani, em Social Movements: An Introduction, mostram que movimentos sociais e protestos populares, mesmo quando violentos, diferem de golpes por não terem necessariamente como objetivo a tomada do poder estatal. Mesmo assim, as elites políticas tendem a reagir de forma exagerada aos protestos, como demonstraram Brett Casper e Scott Tyson, em Popular Protest and Elite Coordination in a Coup d’état (2014). Na mosca!
Os atos de 8 de janeiro de 2023 não foram surpresa, pois tinham dia e horário marcados. Não tinham participação das Forças Armadas, nem sequer de parte delas; a participação era popular, e não de altos funcionários do Estado. Muitos dos manifestantes eram pessoas simples, não atacaram autoridades (era um domingo), não tomaram centros logísticos e tecnológicos, não tinham armas. Houve invasão de propriedade, vandalismo e depredação, mas isso não basta para as definições técnicas de golpe de Estado. Se outras pessoas, funcionários de alto escalão e militares, tramaram e organizaram um golpe, é outra coisa; a manifestação, em si, não foi golpe.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




