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Adriano Gianturco

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Ciência política

Soberania: o discurso político e o conceito cientifico

lula boné soberania
Lula manteve o tom de desafio em publicação nas redes sociais (Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República)

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Nessas semanas, o brasileiro sofreu uma overdose de “soberania”: “estão atacando nossa soberania!” dizem uns; “o Brasil é um país soberano”, dizem outros – ou os mesmos. E assim sucessivamente. Mas pouca gente sabe de fato do que está falando.

O conceito de soberania foi inventado (como todos os conceitos) em 1576, pelo notório jurista francês Jean Bodin, em Os seis livros da república. Segundo ele, é inerente ao Estado o fato de que deva ter soberania – se não tiver, não detém o monopólio da força e, portanto, não é Estado. Para Bodin, a soberania deve ser 1. absoluta: O poder soberano deve ser livre para legislar como quiser, mesmo sem consenso dos súditos; não pode ficar limitado pelas decisões dos predecessores, nem ficar sob sua própria legislação; e 2. perpétua: tem de se manter no tempo. A soberania não é dada ao Estado pelo povo, mas pelo direito natural e pelo direito divino. O monarca está abaixo apenas deles, e não do direito positivo (a legislação).

O contratualista Thomas Hobbes adicionou uma terceira característica: a indivisibilidade: se há compartilhamento com outros poderes, então não se é mais soberano. Bertrand de Jouvenel afirma que o poder soberano, para poder ser tal, precisa de 1. autoridade legislativa; 2. capacidade de modificar o comportamento de seus súditos; 3. capacidade de poder mudar as próprias regras de funcionamento à vontade; e 4. capacidade de legislar sobre outros e estar acima da legislação.

Estamos subjugados à soberania do Estado, até porque, se há soberania, e se ela não é individual, há súditos

Tudo isso não “ficou só na teoria”, como dizem os mais desprovidos; foi aplicado no Tratado de Paz de Westfália, em 1648; desde então, praticamente todos os Estados reconhecem juridicamente a soberania recíproca e o princípio da “não interferência nos afazeres internos”. Assim, os Estados começaram a ter personalidade jurídica. Por mais que esses princípios sejam muitas vezes violados (como todos os outros o são), passou a haver um reconhecimento que antes não existia.

Quando se fala de soberania, fala-se de soberania do Estado, não do país – já explicamos, nesta coluna, a diferença entre nação (povo), país (território) e Estado (o grupo de pessoas que domina um certo povo e um determinado território). A chegada da democracia mudou as coisas mais do ponto de vista formal que do ponto de vista prático. Sim, agora as pessoas escolhem os governantes, mas eles continuam a ter uma amplíssima margem de ação, mantendo todos aqueles quatro requisitos enumerados por De Jouvenel.

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Já os conceitos filosóficos de soberania popular e soberania individual nunca foram aplicados de fato e em larga escala. Autores democráticos e liberais as teorizaram, respectivamente, em contraposição e para limitar a soberania do Leviatã. A soberania popular pode existir só em sistemas de democracias diretas: até Jean-Jacques Rousseau, consciente da impossibilidade prática da soberania popular, diferencia a “titularidade” e o “exercício”: a soberania é do povo, mas é exercida pela classe política (que ele chama “classe geral”). Ou seja, de fato, além dos discursos, volta-se ao Leviatã, à soberania do Estado.

Os liberais, por sua vez, são críticos da soberania pois desconfiam do poder e temem abusos. Eles defendem uma soberania individual mais ampla – com diferenças de grau entre as várias matrizes liberais –, mas também neste caso trata-se de um ideal. Não há escapatória: estamos subjugados à soberania do Estado, até porque, se há soberania, e se ela não é individual, há súditos.

Voltando às pequenezes das brigas políticas cotidianas entre nossos governantes, o discurso de que “o Brasil é um país soberano” não existe. Um país não tem nem como ser soberano. A soberania é do Estado em cima do país e da nação, e esse Estado não quer ceder às pressões de outro Estado. Briga entre governantes. Mas pedir que os políticos façam discursos baseados na ciência é demais; eles fazem apenas aquilo que sabem fazer de melhor.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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