• Carregando...
Aborto: 3 razões por que Barroso está errado sobre a superação de “Roe v. Wade”
| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Em recente decisão, a Suprema Corte americana derrubou alguns de seus precedentes moralmente mais infames e juridicamente mais infundados: os dos casos Roe v. Wade e Casey v. Planned Parenthood. No início deste ano escrevemos dois artigos descrevendo em pormenor a situação jurídica do aborto nos Estados Unidos e sobre o que poderia mudar com a derrubada de Roe.

Vejamos em suma como a questão era tratada:

  • O tema do aborto nos Estados Unidos está definido, segundo o prisma do direito constitucional, basicamente por dois precedentes da Suprema Corte: caso Roe v. Wade, de 1973, e caso Planned Parenthood v. Casey, de 1991.
  • Naquelas decisões, os juízes grosso modo inventaram ex nihilo um direito ao aborto que não conta com qualquer amparo no texto e no sistema da Constituição ou na tradição do país, e fixaram a seguinte tese: até a chamada viabilidade, ou seja, até o momento em que passa a ser viável a vida do feto fora do útero, mesmo que com auxílio de aparelhos, nenhum Estado ou o governo federal pode impor um ônus indevido a quem deseja abortar.

Como se pode perceber, os standards fixados pelo Tribunal são altamente problemáticos.

Em primeiro lugar, quando ocorre a viabilidade? Tem-se entendido que ela se configura a partir da 24ª semana de gestação (ou seja, após o segundo trimestre). Contudo, o próprio voto vencedor no caso Casey reconheceu que esse parâmetro não é absoluto, uma vez que o conhecimento científico e o desenvolvimento da tecnologia na medicina poderiam antecipá-lo.

Em segundo lugar, o que é ônus indevido? Ele foi definido pela maioria da Corte como um "obstáculo substancial no caminho de uma mulher que busca um aborto antes que o feto atinja a viabilidade". Novamente, é perceptível que o standard criado sem base constitucional pelo tribunal é altamente impreciso. Deixaram, assim, toda margem para que os juízes no futuro simplesmente decidam de modo subjetivista e voluntarioso quando uma lei criou ou não um ônus indevido, derrubando as leis de que discordam, sem amparo seguro ou critério de previsão lastreado no direito constitucional.

Todavia, em recente decisão, proferida no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, a Suprema Corte americana superou aqueles precedentes, reconhecendo – corretamente – que inexiste qualquer direito constitucional ao aborto eletivo, e que portanto compete ao Poder Legislativo dos Estados-membros (os quais têm competência sobre matéria penal nos Estados Unidos) decidir sobre a questão.

Confira um trecho do voto vencedor:

A Constituição não faz referência ao aborto, e nenhum direito desse tipo é implicitamente protegido por qualquer disposição constitucional (…)".

É hora de prestar atenção à Constituição e devolver a questão do aborto aos representantes eleitos do povo”.

Tratando desse tema em entrevista para a BBC, o ministro do STF e militante pró-legalização do aborto Luís Roberto Barroso disse que a nova decisão da Suprema Corte americana seria, segundo ele, um “grande retrocesso”. Ele ainda afirmou que o novo procedente seria "uma decisão contra-majoritária que impõe uma agenda conservadora numa sociedade que já havia superado esse problema"

Barroso, no entanto, está errado nas três afirmações que fez: 1) não se trata de decisão contra-majoritária; 2) o novo precedente não impõe uma agenda conservadora; e, 3) o tema da ampla legalização do aborto jamais foi superado pela sociedade americana.

Erro nº 1) Não se trata de decisão contra-majoritária

A decisão do caso Dobbs é exatamente o oposto de uma decisão “contra-majoritária”. Ao decidir que o tratamento para o tema do aborto não está fossilizado na Constituição e, portanto, não deve ser fagocitado pela jurisdição constitucional, a Suprema Corte devolveu o tema para a arena democrática e descentralizada dos legislativos estaduais.

Nesse sentido, em editorial de 24 de junho intitulado “Tema do Aborto volta para o povo” ("Abortion Goes Back to the People"), o maior jornal americano, o Wall Street Journal, afirmou que “em Dobbs, a Suprema Corte finalmente corrigiu seu histórico erro em Roe v. Wade. (…) A América ainda pode resolver seus conflitos políticos de forma democrática e pacífica? Estamos prestes a descobrir depois que a Suprema Corte derrubou na sexta-feira Roe v. Wade e devolveu a profunda questão moral do aborto aos estados e ao locus democrático, ao qual, aliás, sempre pertenceu”.

A fala do ministro, provavelmente, baseou-se em pesquisa de opinião em que a maioria dos entrevistados afirmou que não desejava a revogação do precedente. Contudo, como veremos em maior detalhe abaixo, as mesmas pesquisas mostram que a imensa maioria da população desejava uma alteração das regras excessivamente radicais fixadas em Roe v. Wade e que vinham sendo aplicadas com base em Casey. Com efeito, os precedentes permitiam o aborto até o 6º mês e davam enorme margem para que fosse praticado até o 9º mês. Por isso, ainda que – ao contrário do que ocorre na América Latina (algo de que devemos nos orgulhar) – boa parte dos americanos seja favorável ao aborto até certo período da gravidez, percentuais majoritários da população é contra sua prática a partir do fim do primeiro trimestre (12 semanas). Com a superação de Roe e Casey, os legislativos estaduais poderão, mesmo que sem banir o aborto, adotar legislações mais protetivas do ser humano em gestação.

Erro nº 2) O julgamento não impõe nada

Como visto, a decisão do caso Dobbs não impôs nada sobre o tema do aborto.

Até existiram juristas defendendo que a Constituição obrigaria, por meio da cláusula de que toda pessoa merece proteção da lei, que os Estados impusessem algum nível de tutela jurídica sobre a vida intrauterina (ainda que não penal). Algo semelhante ao que foi decidido pela Suprema Corte alemã no famoso caso “Aborto 2” (BVerfGE 88, 203 - Schwangerschaftsabbruch II).

Contudo, essa posição – à qual sou favorável – a não foi acolhida. Ou seja, a decisão não proibiu o aborto nos Estados Unidos. Ela limitou-se a entregar a decisão sobre o tema para as instâncias democráticas. Caberá agora à democracia deliberativa, em cada Estado-membro, decidir sobre como tratar juridicamente a vida intrauterina.

Portanto, não se trata de imposição de agenda alguma, senão da imposição de uma agenda democrática, que confia no papel deliberativo do povo americano para decidir sobre como responder aos vários valores jurídicos envolvidos, incluindo o direito à vida dos ainda não nascidos.

Na verdade, foram os precedentes anteriores que representaram uma brutal imposição antidemocrática, a qual ditou um – politicamente artificial, moralmente vil e juridicamente infundado – “direito” ao aborto, num país em que, à época do julgamento do caso Roe, nada menos do que trinta Estados proibiam-no em qualquer período da gravidez.

Conforme o editorial jornalístico mencionado do Wall Street Journal, tudo não passou de uma “fútil tentativa de obstruir o debate em uma questão que toca as convicções morais mais profundas das pessoas”.

Erro nº 3) O tema da ampla legalização do aborto jamais foi superado pela sociedade americana

A decisão do caso Roe representou uma tríplice violência contra o constitucionalismo americano: violentou o direito à democracia, pois suprimiu o direito de a população decidir sobre o assunto; violentou o direito à vida ao impor uma das legislações menos protetivas do mundo ao ser humano em gestação; e, ainda, violentou o federalismo, porquanto coagiu os Estados a adotarem um tratamento inventado pelo Judiciário da União.

Como já mencionado, quando Roe foi editada trinta Estados proibiam o aborto em qualquer período da gravidez e outros tinham legislações mais protetivas à vida humana intrauterina do que o que foi instituído na decisão.

Roe por isso mesmo foi um fracasso em termos de construção de consentimento sobre o tema do aborto. Isso foi inclusive reconhecido por militantes abortistas como a falecida juíza da Suprema Corte Ruth Ginsburg. Apesar de ser contra a proteção penal do direito à vida de crianças em gestação, em visita à Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, uma das mais tradicionais dos Estados Unidos, Ginsburg afirmou que, em termos jurídicos, a decisão no caso Roe foi longe demais, ao impor a legalização do aborto em todo o país, com base em um fundamento jurídico controverso, o direito à privacidade. Ela se disse desencantada com o legado deixado pela decisão.

Frise-se que Roe não adotou uma posição jurídica intermediária, mas impôs uma solução extremamente radicalizada. O precedente liberou, em todo país, o aborto até o 6º mês e deu ampla abertura para sua realização até o final da gravidez.

Só para ter ideia do grau de extremismo da decisão: dentre 198 países objeto de um levantamento feito em 2014, apenas 7 deles permitiam abortos eletivos após a 20ª semana. Os Estados Unidos era um deles.

As pesquisas de opinião mostram que, apesar de os americanos apoiarem o aborto durante o primeiro trimestre (cerca de 67% é favorável), a situação já se inverte a partir do segundo trimestre, quando 55% são contrários ao aborto (historicamente esse percentual costuma girar acima de 60%). No último trimestre gestacional, cresce a rejeição ao aborto. Historicamente mais de 80% da população é contrária. No último levantamento, mais de 70%.

A par das pesquisas, a mais retumbante demonstração de que o tema jamais foi pacificado na sociedade americana paira na própria persistência dos estados em criar leis que desafiam o precedente de Roe, obrigando a Suprema Corte a revisitar a questão. Segundo levantamento divulgado pelo Wall Street Journal, 22 Estados americanos já proíbem o aborto, enquanto apenas 16 possuem legislações que resguardam um suposto “direito” a essa prática.

Com isso pode-se ver o quão equivocada foi a fala do ministro: a decisão que derrubou Roe não foi contra-majoritária, pelo contrário; não impôs qualquer agenda, mas investiu a democracia de autoridade para decidir a respeito; tampouco invadiu tema pacificado na sociedade. Diversamente, permitiu que um tema controverso seja tratado de modo plural pelos legislativos estaduais.

Como bem disse o editor do Wall Street Journal Gerard Baker: “não pode haver melhor indicativo da solidez jurídica da decisão da Suprema Corte em Dobbs v. Jackson Women's Health Organization do que a pobreza intelectual da resposta de seus oponentes”.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]