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Manifestantes protestam em frente a quartel do Exército Brasileiro em São Paulo
Manifestantes protestam em frente a quartel do Exército Brasileiro em São Paulo| Foto: Fernando Bizerra/EFE

Nesse momento de instabilidade, é oportuno assistir ao “Nem tudo se desfaz”, de Josias Teófilo. O documentário é bom para refrescar a memória, pois trata do início das manifestações de direita e chega até o (imaginava-se) o seu ápice, que era a eleição de Bolsonaro. No começo, tudo parecia ser só mais uma manifestação de beautiful people, um quebra-quebra daqueles que jornalista e “imprensa internacional” acham bonito. Até que as ruas passaram a ser ocupadas por outro tipo de manifestante.

Entre os 20 centavos e o “não vai ter copa”, os black blocs e os estudantes profissionais passaram a conviver com uma turma de camisa canarinho. Enquanto os de sempre queimavam a bandeira nacional, os novatos a empunhavam alegremente e usavam a camisa da CBF como meio de expressar o seu nacionalismo.

Muitos tentaram tomar a frente da nova movimentação. Perante a constante expulsão daqueles que tentavam transformar o movimento em algo partidário, despontaram movimentos apartidários que se colocavam como organizadores de manifestações. Dessa época são o Vem Pra Rua e o MBL, surgidos, respectivamente, em outubro e novembro de 2014.

Esses movimentos organizados gozavam de certa aceitação perante a imprensa antipetista. Eram jovens lideranças que renovariam a política do país. Com o tempo, o Vem Pra Rua minguou e o MBL, desde quando se tornou oposição a Bolsonaro, não consegue convencer mais ninguém de que são um movimento político movido por ideais, em vez de mera disputa por poder.

Seja como for, para manter a respeitabilidade, esses movimentos organizados precisavam dar um chega-pra-lá num certo perfil de manifestante: o velho com camisa da CBF que trazia cartazes pedindo intervenção militar e artigo 142, às vezes com uma tradução esquisita para o inglês. Eram piada, serviam para memes, ninguém os levava a sério.

No fim do governo Bolsonaro, as massas continuam mobilizadas e o país continua instável. Mas massas não se aglomeram mais à frente de Bolsonaro. Agora elas se aglomeram defronte dos quartéis e clamam por intervenção militar. E mais: hoje mesmo os chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica assinaram uma inusual nota “à imprensa e às instituições” reafirmando que elas têm esse direito.

Quem era Bolsonaro para o povo?

Dada a mudança do foco das manifestações, convém lembrar a imagem de Bolsonaro pré presidência. Ele era o deputado cuja atuação começou como a de uma espécie de sindicalista dos militares. É claro que, dada a importância nacional da categoria, as atividades de tal “sindicalista” têm uma importância muito maior do que se sua profissão fosse a de padeiro ou professor. Ao cabo, transformou-se num defensor das Forças Armadas durante o governo FHC, que pretendia “enxugar a máquina” para além do prudente. Não custa lembrar, também, que FHC foi por muitos anos um pesquisador subsidiado pela Fundação Ford, que há décadas se empenha em criar tensões raciais no nosso país. Em virtude disso, sua atividade parlamentar era facilmente atrelada ao estatismo, e não era de surpreender que, em questões econômicas, votasse de modo parecido com nacionalistas de esquerda, tais como Aldo Rebelo. Para Bolsonaro se eleger após o estrago de Dilma, só carregando Paulo Guedes para cima e para baixo, garantindo que ele seria o seu “posto Ipiranga”. A promessa despertou muito ceticismo, mas foi cumprida.

A outra atividade “sindical” de Bolsonaro foi a que começou a colocá-lo sob os holofotes foi a defesa dos militares que participaram da repressão aos comunistas durante a ditadura. A própria redemocratização fora puxada por manifestações de rua que jornalista acha bonito, com jovens “idealistas” de cara pintada, pedindo por democracia. Havia então um consenso entre as classes falantes que o regime militar foi horrível e a democracia é um valor em si mesmo. Bolsonaro furava esse consenso com muito espalhafato. Com o tempo, a esquerda, em conjunto com a imprensa, passou a avançar na questão de costumes. Bolsonaro também fez uma oposição estridente e acumulou mais holofotes ainda. Passou de um parlamentar de nicho a um vocalizador da maioria silenciosa no que concerne aos costumes (aí incluída a leniência com os bandidos).

O que Bolsonaro era para as elites?

Recentemente, Silvio Grimaldo escreveu que o establishment não entendeu que Bolsonaro era um agente de estabilização. Concordo com ele neste aspecto. Vamos ao contexto: num cenário de perpétua agitação, Bolsonaro lidera as massas e as mantém apaziguadas. O caso máximo talvez seja o Sete de Setembro, quando Bolsonaro conseguiu a façanha de lotar Brasília numa manifestação contra o STF para… Receber uma cartinha de Temer e pedir desculpas ao Supremo. Antes, dizia-se: o país estava em chamas por causa de Bolsonaro. Hoje, após as eleições, faz mais sentido dizer que o país só não explodiu graças a Bolsonaro, que é como o pito estridente desta panela de pressão. As elites achavam esse pito barulhento demais e resolveram apertá-lo para baixo, silenciando-o. Após as eleições passou a chamar Bolsonaro para apagar incêndio, pedindo a ele que, usando sua palavra e sua autoridade, rogasse aos manifestantes que parassem de obstruir estradas. Surpresa: não funcionou.

As estradas continuaram obstruídas em vários pontos do país após o pedido de Bolsonaro. E os manifestantes agora se dirigem aos quartéis das forças armadas.

Efeitos do presente na avaliação do passado

Se possível, peço que olhe esta imagem que tem circulado na internet. Mostra um velho vestindo camisa da CBF, enrolado na bandeira do Brasil, ostentando uma placa. Até aí, é uma figura idêntica ao dos que pedem intervenção militar desde 2013. O detalhe que fez a imagem circular é que ele tem as duas pernas amputadas (talvez seja diabético) e na placa se lê: “Minhas pernas não me trouxeram mas meu coração me arrastou!”. Mas eu peço que olhe mais ainda. Atrás dele, de verde e amarelo e enrolados em bandeiras do Brasil, há gente jovem.

Esse nicho de manifestantes que começou como escória em 2013 apresentou uma força de vontade e uma fé no Brasil enormes, que deveriam envergonhar qualquer jovem reclamão. Agora, contagiou idades mais novas e, até prova em contrário, se converteu na tendência dominante das manifestações. Porque agora não há mais peias em pedir intervenção militar. Bolsonaro foi preterido; as Forças Armadas, escolhidas.

De todo modo, a idade dos que sempre pediram intervenção militar mostra que a maioria silenciosa não estava de acordo com a versão oficial dos fatos, forjada primeiro pela TV, que romanceava a guerrilha, e depois sacramentada pela Comissão da Verdade. A maioria silenciosa que viveu o governo Médici, por exemplo, se lembrava do período como uma era feliz de pleno emprego, no qual o cidadão de bem não tinha medo de sair na rua. Depois a imprensa e a esquerda vieram ao mesmo tempo com a conversa de que o período militar era horrível e os bandidos são vítimas da sociedade. Agora o STF solta bandido, impede o policial de entrar no morro, e, não contente, vai atrás de cidadãos de bem que exercem o seu direito constitucional de expressar suas opiniões.

Várias pesquisas de opinião mostram as Forças Armadas como uma das instituições, senão a instituição, que mais goza de confiança no país. A classe falante deveria pensar duas vezes antes de tratar o regime militar inequivocamente como a pior época da nossa história recente.

Histeria à direita

Creio que os nervos nunca tenham estado tão aflorados com as manifestações de Bolsonaro quanto com as das Forças Armadas. Elas não se manifestam nunca; resolveram se manifestar agora.

Há poucos dias o Brasil assistiu às lives do argentino, que apresentava anomalias estatísticas. As lives eram transmitidas do estrangeiro e eram apresentadas por um estrangeiro porque o TSE censurava quem considerasse a lisura das urnas. O resumo da apresentação era que urnas antigas apresentavam mais votos para Lula, mesmo em comparação a seções vizinhas de idêntico perfil demográfico. O TSE poderia contra-argumentar, mas censurou a conta do Twitter do economista Marcos Cintra, insuspeito de bolsonarismo, que comentou que esperava respostas do Tribunal. A censura que durara até a eleição tinha vindo para ficar.

Pouco depois, estava para sair o relatório das Forças Armadas, que foram convidadas a auditar as eleições. Aí o povo, que tanto esperava das Forças Armadas, ficou doido. Os youtubers que fizessem as previsões mais sensacionalistas ganhavam mais visualizações e superchats, então espalhou-se a crença de que a intervenção era iminente, faltando apenas o relatório bombástico.

De fato, tal relatório veio: as Forças Armadas denunciaram a obstrução ao seu trabalho de verificação, bem como a impossibilidade de atestar que as eleições foram seguras. Aquilo que era tabu durante a live do argentino foi afirmado por tais autoridades. A imprensa, porém, resolveu deturpar o relatório, afirmando que fraudes não foram encontradas, quando o xis da questão era justamente a impossibilidade de encontrar eventuais fraudes.

Outro fato que levou a uma histeria generalizada na direita é a relação esquizoide que Olavo de Carvalho tinha com as Forças Armadas, transmitiu aos seus pupilos e espalhou pela cultura. Por um lado, segundo Olavo, os militares salvaram o Brasil de uma ameaça real e iminente em 64. Por outro, foram lenientes demais ao censurarem pouco e permitirem que o marxismo avançasse no Brasil com métodos gramscianos. Assim, uns 90% dos olavetes se sentem mais anticomunistas do que “os militares” (todos) pelo mero fato de terem lido Olavo, que é um best-seller. Quando eles não tinham nascido, Heleno trabalhava com Sylvio Frota, que liderava a oposição à abertura. Mas eles sabem muito mais do que Heleno e são mais anticomunistas do que ele. É uma arrogância só comparável à dos próprios comunistas, que se sentem os tais por terem lido uns livrinhos e subscreverem uma série de ideias, sem ter feito nada.

Ao cabo, o estilo estridente tanto de Bolsonaro quanto de Olavo tornou certas pessoas incapazes de atentar ao conteúdo de um relatório e a focar apenas no tom. É possível que acreditem na propaganda comunista, segundo a qual militares são broncos e burros. Porque, ao que parece, o relatório só prestaria se fosse escrito em linguagem agressiva e recomendasse cascudos às autoridades. Na prática, o relatório liberou que se questionasse o sistema, coisa que o TSE tinha, na prática, criminalizado. Mas como não teve showman, live ou anúncio de tanques na rua, os histéricos ficaram puxando os cabelos.

Mais um feito hoje

Ao contrário do que foi noticiado primeiro, o comandante do Exército, e não Bolsonaro, foi quem convocou uma reunião de urgência com os generais. Hoje os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica assinaram uma nota inédita na história da Nova República. Entre outras coisas, reforça que é livre o direito à manifestação pacífica. É pouco? Bom, esta semana a Amazônia tem sido palco de conflitos. No Pará, manifestantes fecham estradas – tipo de manifestação ao qual se opõe a nota. Mas na capital do Acre há manifestações pacíficas na frente do Exército clamando por intervenção. E Alexandre de Moraes mandou a PM acriana acabar com ela.

A nota das Forças Armadas tira a autoridade de Alexandre de Moraes. Coisa que não esteve ao alcance de Bolsonaro, o conciliador.

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