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John Locke, pai do liberalismo clássico.
John Locke, pai do liberalismo clássico.| Foto: Sir Godfrey Kneller/Domínio público.

Os comunistas tinham uma porção de nomes para rotular seus inimigos. Burguês, reacionário, fascista, contra-revolucionário, feudalista. Tinham explicações para cada uma dessas entidades ser ruim. Até onde eu saiba, não existe uma palavra como “incomunista”, que denote a simples não-adesão ao comunismo como coisa ruim em si mesma. Ao que parece, mesmo sob os tacões de Lênin, Stálin, Mao, é preciso explicar à população por que um não-comunista é mau. O mero fato de não ser comunista não parece suficiente. Do mesmo modo, fascistas e nazistas precisaram inventar mil jeitos de rotular a dissidência, seja como comunista, degenerada etc. Desconheço as expressões infascista e inazista. No entanto, uma expressão brandida com máxima gravidade por autodeclarados liberais e progressistas é iliberal. Ou seja, o quadro conceitual do liberalismo alcançou, no século XXI, uma intolerância e um exclusivismo ao qual os regimes totalitários do século passado sequer aspiraram.

Até mesmo a democracia está abaixo do liberalismo. O festival de acusações de iliberalismo no presente século ocorreu com o sucesso de Orbán na Hungria e chegou aos píncaros com a eleição de Trump. Diferentemente do Brasil, onde Bolsonaro era atrelado à ditadura militar e portanto cosmeticamente desvinculado da ideia de democracia, na Hungria e nos Estados Unidos ninguém questionava o caráter democrático das vitórias de Orbán e Trump. Em vez disso, apontava-se para o populismo e para o iliberalismo dos seus eleitores. Eram todos racistas, machistas etc. Criminaliza-se o eleitorado que, por definição, dá sustentação à democracia. Assim, o populismo e a “democracia iliberal” se tornaram dois bichos papões de redações, estúdios de TV e universidades badaladas.

Por outro lado, foi recebido com confetes e serpentinas o livro Against Democracy (Princeton University Press, 2016), do filósofo libertário Jason Brennan, professor da Universidade Georgetown. A obra defende que a democracia seja substituída por uma epistocracia, na qual só eleitores com qualificações intelectuais poderiam votar. Sai o desqualificado demos, povo, entra a episteme, conhecimento. Não seria um governo do povo – que inclui a plebe rude –, mas dos sábios. Estes são técnicos, imparciais, objetivos. Estão acima do bem e do mal.

Não é a democracia que é tratada como inegociável pela elite ocidental, mas sim o liberalismo. Não há nada de errado em falar contra a democracia, desde que se fale mal do povo

Não teve cancelamento de Brennan. Não teve acusação de iliberalismo. Pelo contrário: o autor é um libertário badalado, traduzido para o português (em Portugal), francês, alemão e espanhol. Isso mostra que não é a democracia que é tratada como inegociável pela elite ocidental, mas sim o liberalismo. Não há nada de errado em falar contra a democracia, desde que se fale mal do povo. A democracia enquanto formalismo pode ser ótima; se o povo for burro, intolerante, iliberal, então dane-se o povo e invente-se um sistema mais esclarecido. O que importa mesmo é o liberalismo, não a democracia. São duas coisas diferentes.

Não se trata somente de progressistas (Brendam é libertário e "de direita"), nem de liberais somente dos EUA. Fiquei perplexa ao ver um liberal clássico, daqueles acusados por progressistas retardados de serem radicais de extrema direita, escrever o seguinte: “deveriam ser secretas as votações parlamentares que aprovam benefícios, pisos salariais e coisas grátis para a população. Assim seria mais fácil para o deputado ou vereador tomar medidas impopulares mas corretas, e menor a tentação de parecer generoso com o povo.” Ou seja: existe um certo e errado tecnocrático que paira acima da política e deve ser implementado contra a vontade dos eleitores. E para isso o tecnocrata deve contar com o apoio dos representantes eleitos para implementar a sua agenda “técnica”, nem que seja traindo o eleitorado. Sabe aquilo de você votar e se sentir traído pelo sistema? Pois é. É o que um liberal de direita defende. E é a tal da “epistocracia”.

A ideia de que o conhecimento deve mandar na política foi formulada de maneira clara e objetiva no século XIX por Comte, com o positivismo, que se mantinha dentro das raias do nacionalismo e, até onde eu saiba, não tinha pretensões políticas globalistas. De universal, só a Religião da Humanidade (cujo culto, a "prédica sociocrática", é realizado ainda hoje em Porto Alegre e transmitido pelo Instagram.)

No século XX, tendo os austríacos Hayek e Popper como padroeiros, o liberalismo se aproximou da democracia e se afastou do planejamento econômico a fim de se contrapor aos totalitarismos em vigência – o nazifascismo até 45, o comunismo até 89. Em O caminho da servidão, Hayek defendia as discussões parlamentares alegando que “defender o bem comum” não é nada óbvio, pois cada setor da sociedade tem uma concepção diferente do que seja tal coisa, e só mediante uma discussão demorada se pode chegar a tal acordo. A agilidade é possível quando não se tem de entrar em um acordo – e aí paga-se com a discricionariedade de um líder todo-poderoso. No entender de Hayek, o nazifascismo foi uma consequência da impaciência com a lentidão do processo legislativo. Exigia-se um homem que resolvesse as coisas rápido.

Quanto a Popper, sua fé democrática, expressa n’A sociedade aberta e seus inimigos, era um desdobramento de sua fé na ciência. Enquanto a ciência só funciona com experimentos e sem censura, a sociedade, por meio da democracia, permitiria que quase todo tipo de proposta política disputasse uma arena intelectual e, caso vitoriosa nessa seara, fosse levada à prática. O “quase” se deve à limitação da violência; Popper achava que deveriam ser proibidas a violência política e sua incitação. Já que ser contra a violência é uma banalidade hoje, vale lembrar que na República de Weimar os partidos tinham milícias urbanas trocando pancada na rua. Se bem que há algo similar nos EUA hoje, o grupo Antifa.

No final do século XX, após a abertura da China ao capitalismo global, a queda do Muro de Berlim e a derrocada da União Soviética, o liberalismo considerou-se triunfal. Francis Fukuyama tornou-se notório por constatar que a humanidade estava no Fim da História, que culminaria com um mundo globalizado composto por democracias de livre mercado. Mas agora, no século XXI, está claro que algo deu errado. Filósofos tão diferentes quanto John Gray e Alexandre Dugin dizem que as previsões liberais relativas à Rússia e, depois, ao Oriente Médio, deram com os burros n’água. O próprio Francis Fukuyama tem revisto suas posições e se afastado da fé no fim da história tal como o descrevera.

O liberalismo no século XX era uma doutrina de ciência econômica que pretendia estruturar os Estados nacionais colocando-os abaixo de si

Creio que se possa dizer, ao menos do século XX para cá, que foi feita uma aposta concomitante na racionalidade e na ciência econômica que não se confirmou. O liberalismo no século XX era uma doutrina de ciência econômica que pretendia estruturar os Estados nacionais colocando-os abaixo de si. Esperava-se que com a evolução da educação todos os cidadãos viessem a aderir à democracia e a votar em políticos cujas medidas trouxessem prosperidade à sociedade. Isso implica apostar não só na eficácia de tais medidas (afinal, a “Ciência” na verdade é apenas o consenso científico do momento, revogável no momento seguinte), como no desejo do povo de adquirir prosperidade acima de todas as coisas. Mas a ciência é sujeita a falhas, e poucos homens desejam prosperidade acima de todas as outras coisas. Muita gente prefere a estabilidade à prosperidade, e não raro o liberalismo acaba com a estabilidade prometendo uma prosperidade que nunca chega, ou chega só para poucos. Se os grandes capitalistas ocidentais resolverem migrar suas plantas para a China por causa do baixo custo do trabalho, os desempregados do Ocidente não vão ficar felizes com magro auxílio que cai em suas contas a pretexto de imposto negativo.

Assim, não é de admirar que o liberalismo tenha se descasado da democracia e ficado só com a “Ciência” – isto é, o consenso científico do momento, que pode mudar a qualquer instante. As votações são tidas por populistas. As opções políticas legítimas se resumem a escolher entre seis e meia dúzia. De repente, aparece o adjetivo “iliberal” como acusação grave.

Saiamos do debate intelectual do século XXI, que começou ontem, e perguntemos: que indivíduos e grupos podem ser adjetivados como liberais? Uma ordem monástica pode ser considerada liberal? Certamente não; portanto é iliberal. Uma tribo indígena pode ser considerada liberal? Tampouco. E um chefe de família com um código moral tradicional? Eis aí um abominável eleitor de Orbán, Trump, Bolsonaro.

Assim, Por que o liberalismo fracassou (Âyiné, 2020), de Patrick Deneen, é um livro que permite enxergar as coisas que estão hidden in plain sight (“escondidas na nossa cara”), como dizem os anglófonos. Segundo ele, o liberalismo desde Locke foi um projeto elitista que visava à substituição de uma aristocracia tradicional por uma aristocracia meritocrática. Para Deneen, o liberalismo na verdade tem origem na visão que Hobbes e demais contratualistas têm do homem: todos o consideram que o estado natural do homem é avulso, individual, e que precisa do Estado para criar a ordem social. Assim, o liberalismo é desde a origem o projeto de libertar o homem das restrições sociais espontâneas – como a família, por exemplo, que antecede a criação do Estado – e criar uma ordem racional baseada no consentimento formal, no contrato. Ao cabo, esse empreendimento destrói o tecido social e gera a anarquia, criando ativamente aquilo que seria o “estado de natureza” segundo Hobbes. Como a anarquia cresce, crescem as demandas para que a única autoridade legítima baseada em contrato reaja: o Estado liberal. Por isso o liberalismo leva ao aumento da ingerência estatal sobre a vida privada, até mesmo quando promete o contrário.

Mais interessante ainda, Deneen traz trechos d’O Federalista para mostrar que a criação de uma democracia nunca foi intenção dos pais fundadores dos EUA. Eles seguiam Locke em sua pretensão de criar uma nova aristocracia; sua forma de governo seria uma república não-democrática (da Antiguidade até o século XVIII era comum falar contra a democracia); e, embora admitissem que o governo local é objeto do interesse mais próximo do cidadão, comentavam que isso poderia ser mudado caso a gestão federal fosse melhor. E como fazer prosperar essa aristocracia meritocrática? Ora, atribuindo ao Estado a tarefa de assegurar a diversidade. Cito Deneen: “O melhor interesse da nação, de acordo com Madison em O federalista 10, era a defesa do ‘primeiro objeto do governo’, que era a proteção da ‘diversidade nas faculdades dos homens’. A esfera pública existia para que houvesse a diferenciação entre o indivíduo e os outros” (p. 205-206).

Ao que parece, o casamento entre a democracia e o liberalismo chegou ao fim. Surgiu com um povo de cultura democrática, tal como descrito por Tocqueville no século XIX, porém dotado de uma elite liberal em sua fundação. Se os povos do Ocidente não gostam do mundo globalizado e financeirizado, os tecnocratas ocidentais o impõem na marra. Não é de admirar, portanto, que em seu ocaso os EUA se voltem ao culto da diversidade e intrometam o seu Estado nos assuntos mais íntimos.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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