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A cantora Anitta em cena de documentário da Netflix
A cantora Anitta em cena de documentário da Netflix| Foto: Divulgação/Netflix

Em 2022, o Tribunal Superior Eleitoral chamou algumas personalidades para a sua campanha em prol do voto adolescente. Uma dessas pessoas incumbidas de convencer adolescentes de 16 e 17 anos foi Anitta. De todas as objeções lançadas à campanha, não consta que tenha aparecido alguma segundo a qual Anitta não tem nenhuma influência sobre a juventude. Assim, podemos considerar que a influência de Anitta sobre a juventude goza de reconhecimento estatal.

Ainda em janeiro, não muito depois de o presidente Lula tomar posse, aparecem imagens de Anitta fazendo sexo oral no meio da rua, num homem aleatório. A situação seria apenas lastimável caso fosse totalmente inesperada. Se uma cantora como Marília Mendonça fosse flagrada assim, certamente os seus fãs achariam que ela foi dopada, pois jamais faria tal coisa em sã consciência. Por isso, haveria muito pudor em divulgar as imagens, que seriam tratadas como prova de um crime.

No entanto, não há grande surpresa no acontecimento. Pode-se até dizer que foi publicidade: a cena fora gravada pela própria Anitta e é parte do seu novo clipe, ainda inédito.

Tendência vigente no Brasil

Anitta é uma tendência nacional. Há não muito tempo atrás, mostrei o teor da “arte” de alguns artistas jovens que cantaram a “carta em defesa da democracia”. Pincei Anitta, nascida em 1993, Luísa Sonza, nascida em 1998, e BK’, nascido em 1989, e fui ver seus clipes no Youtube. Minha conclusão é que as fêmeas ficam ostentando bunda & riqueza; o macho, poder & riqueza. Dado o histórico musical brasileiro, isso é uma anomalia bem grande, já que desde a Idade Média os nossos antepassados gostam de canções românticas. As canções de “pessoa em situação de chifre” felizmente seguem em alta nas classes baixas, mas seus artistas não são convocados a assinar cartinhas pela democracia, nem têm uma legião de paparazzi atrás de si.

Outra coisa notada nesta coluna é que não há mais campanha contra as drogas. Pode-se questionar a eficácia das campanhas ocorridas até meados dos anos 2000, mas há de se convir que ao menos se tentava convencer a juventude de que drogas são ruins. Hoje, fala-se em “uso seguro”, como se o uso pelos jovens fosse um dado inexorável e um direito inalienável, e não um problema a ser enfrentado mesmo que essa empreitada não encontre um sucesso absoluto. Pois bem: nessas músicas de dinheiro, bunda e poder, a droga é um elemento constante. Drogas são caras, e um jeito de exprimir a própria riqueza é por meio do consumo de drogas caras. Os homens compram para as suas mulheres rotativas, e as mulheres rotativas se gabam dos homens que elas arranjaram por meio dos benefícios materiais (drogas inclusas) que eles lhes proporcionaram.

Podemos dizer que se trata de uma cultura consumista acima de tudo. As drogas escravizam para o consumo por motivos óbvios. O sexo como fim em si mesmo escraviza para o consumo porque os homens precisam estar sempre ricos para comprar as mulheres, e as mulheres precisam sempre estar “bonitas” para atraírem os homens. (As aspas são porque as mulheres são suscetíveis a acreditar em qualquer padrão de beleza inventado por celebridades. Vide a onda de demonizações faciais entre moças jovens ou, antes das redes sociais, a cruzada contra a celulite.) Não há nada de menos consumista que um lar estável com uma mulher dentro de casa cozinhando comida saudável para a família e fazendo as roupas do dia-a-dia. Podemos discutir se esse modelo antiquado é bom para a maioria das mulheres, mas com certeza é ruim para quem precisa de consumidores ávidos.

Tendência ocidental

Num curto espaço de tempo, saiu ainda um clipe novo do cantor inglês Sam Smith. Ele tinha chegado aos píncaros da fama oito anos atrás com uma música meio gospel sobre amor. Agora, após ter se revelado pessoa não-binária e ganhado muitos quilos, o cantor nascido em 1992 lançou o clipe de uma música cujo título significa, em português, “não estou aqui para fazer amigos”. Essa poderia ser uma frase do repertório da minha avó rabugenta – junto com “eu não sou flor que se cheire” –, mas, como se vê pelo clipe e pela letra, é porque “eu preciso de um amante/ […] os trinta quase me pegaram e eu superei as canções de amor”. O clipe é muito produzido e tem até helicóptero. Não se pode dizer que seja apenas um artista decadente querendo atenção; o orçamento não permite essa inferência.

Gordíssimo, Sam Smith usa um espartilho que aumenta as mamas, cujos mamilos estão tapados por rodelas. À sua volta estão, curvados, homens com as bundas empinadas para cima. Muito pouco pano cobre as bundas, deixando um buraco em forma de coração. Poderoso, ele dança e as bundas os seguem enquanto ele canta que precisa de um amante. Até faz o L de lover com a mão.

Os homens, ainda que vestidos de mulher, têm um físico escultural. É de se perguntar se o clipe não é uma apologia da prostituição, já que um gordão em plumas e paetés exercer poder e fascínio sobre um sem número de belos corpos. (Só no final, quiçá por cota, aparece uma gorda entre os bacantes. É a única que está muito vestida, porém.)

Ainda assim, “apologia da prostituição” é uma descrição vaga. Trata-se de algo mais específico: apologia da prostituição como única relação real entre os que fazem sexo. A música abre com os versos “Todo o mundo está procurando por alguém para levar para casa / Eu não sou exceção a essa regra, eu sou uma bênção de corpo para amar”.

O vídeo não tem censura de idade. O Youtube persegue médico que fala de ivermectina, mas esse tipo de coisa é liberado para menores.

Tendência velha

Sam Smith só é novidade por causa do teor gay do vídeo. Normalmente a apologia desse estilo de vida ficava a cargo das mulheres, das divas pop, que sempre têm um corpo de bailarinos esculturais aos seus pés e um total de zero romantismo em suas músicas.

Pop é abreviação de “popular”. O Brasil seguiu uma trajetória diferente dos Estados Unidos. Aqui, a MPB, bem ou mal, foi conservadora quanto à música e às tradições populares. A grande celeuma da guitarra elétrica dividia os artistas da MPB, por mais que eles fossem unidos na política. E se Chico era o artista musicalmente mais conservador da turma (a ponto de ter suas músicas tocadas por Jacob do Bandolim), Caetano, o mais revolucionário, ainda trazia elementos da tradição em sua música (desde os instrumentos e gêneros tradicionais até a execução do Hino do Senhor do Bonfim e de uma nova melodia para a Ave Maria em latim).

Nos EUA, a música popular, que poderia ter seguido as pegadas do prolífico Cole Porter (1891 – 1964) e sua plêiade de intérpretes de todas as cores, de alguma maneira desembocou na Madonna, a "moça materialista", e em suas imitações cada vez mais pornográficas.

É curioso que Cole Porter e Louis Armstrong não tenham deixado descendentes musicais reconhecíveis. Chico e Caetano podem até concordar com Anitta em matéria de política, mas o que se desenha agora é um apagão cultural similar ao dos EUA. Sai a arte de qualidade, que dialoga com o público, e entra essa propaganda da prostituição como norma da vida.

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