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Estátua de João Calvino no Museu da Reforma Protestante, em Genebra, Suíça.
Estátua de João Calvino no Museu da Reforma Protestante, em Genebra, Suíça.| Foto: Wikimedia Commons

Em sua notória A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Max Weber trazia uma refutação de Marx: o capitalismo não surgia das meras condições materiais humanas; em vez disso, necessitou da Reforma protestante e do surgimento de uma seita particular – o calvinismo – com uma teologia que fomenta o acúmulo de riqueza. O homem sempre trabalhou para se sustentar, não tinha por que pensar muito além da subsistência. A fábula da cigarra e da formiga não trata do acúmulo irracional de riquezas, mas sim do acúmulo que tem em vista a previdência – o que não deixa de ser a subsistência pensada no longo prazo. Com o calvinismo, não: o acúmulo de riqueza é interpretado como um indício de que o fiel está entre os poucos que irão para o Céu. Assim, após se alcançarem a subsistência e a previdência, segue-se trabalhando sem pensar em ócio ou lazer.

Por toda a Idade Média, a cristandade via no pobre a imagem do Homem. Dizia-se que Jesus se disfarçava de mendigo para testar a bondade dos homens. Com o calvinismo, parte da cristandade passou a ver no pobre a imagem do preterido por Deus. Isso foi uma mudança cultural (ou espiritual) de monta, e necessária ao surgimento do capitalismo.

O calvinismo teve embates sérios com a Igreja Católica. Os huguenotes franceses foram derrotados em casa e no Brasil; a Holanda, porém, associou o calvinismo à sua identidade nacional na independência da Espanha. O calvinismo teve também uma relação conflituosa com a Igreja da Inglaterra (com os puritanos tentando torná-la calvinista) e com a Igreja Luterana. Nas guerras religiosas da Europa, eles tinham um destino certo: os Estados Unidos da América. Em especial, a Nova Inglaterra. E durante o século XIX, o puritanismo tinha vencido uma guerra cultural na Inglaterra. Esses dois países protagonizaram o apogeu do capitalismo sem limites, que, na Inglaterra, teve um custo humano colossal.

O capitalismo mudou

No capitalismo tal como conhecíamos, todos devem trabalhar e poupar. No entanto, um tópico amiúde apontado é que o capitalismo atual não compensa mais a mesma conduta. Você trabalha, poupa e num minuto o seu dinheiro some por alguma razão atrelada a questões que estão fora do seu controle – o banco cometeu fraude, a moeda se desvalorizou da moeda, o fundo de aposentadorias foi roubado. Por outro lado, o homem não muito trabalhador que tenha algum know-how do mercado financeiro pode pegar um pequeno quinhão, ficar apostando em ações na bolsa e enriquecer. E essa riqueza será tão volátil quanto o humor do mercado.

Com o calvinismo, parte da cristandade passou a ver no pobre a imagem do preterido por Deus. Isso foi uma mudança cultural (ou espiritual) de monta, e necessária ao surgimento do capitalismo

Nas palavras de John Gray, “no tipo de sociedade necessário para atender ao livre mercado, as virtudes antiquadas da poupança e do planejamento para o futuro já não fazem mais sentido. A incessante mobilidade do capitalismo de hoje requer um estilo de vida em constante mutação. O endividamento crônico passou a ser visto como sinal de prudência, e a disposição de arriscar parece mais útil do que a dedicação diligente ao trabalho. Embora uma geração anterior de teóricos sociais previsse que o capitalismo, com seu desenvolvimento, fomentaria o aburguesamento – a disseminação de um ethos de classe média por toda a sociedade –, foi o contrário que aconteceu. A maioria da população pertence ao novo proletariado, com níveis mais elevados de renda, mas nada parecido com uma carreira com desdobramentos a longo prazo. A deliquescência da sociedade burguesa não foi causada pela abolição do capitalismo, mas pelo seu funcionamento sem peias.” (Missa negra, p. 119-120)

John Gray está longe de ser um comunista; é um profundo estudioso de Hayek. E para tornar palpável essa mudança, pensemos nas profissões do médico e do professor, outrora típicas da classe média. Com os grandes conglomerados que compram hospitais, clínicas, planos de saúde, escolas e universidades, esses profissionais estão numa condição mais similar à do proletário inglês dispensável que pula de fábrica em fábrica do que à dos seus avós que tivessem a mesma profissão. Não é que o proletário virou burguês; o burguês se proletarizou. O mundo pode estar mais rico, mas está também mais instável.

Seria muito difícil que isso, por si só, não tivesse efeitos sobre a cultura.

Indução da mudança

Voltemos ao esquerdista americano que vínhamos acompanhando noutros textos, Chris Hedges. Para ele, os Estados Unidos vivem uma estratégia das tesouras: as empresas financiam ambos os partidos, a grande mídia e as universidades. Além disso, corrompem as igrejas e as artes.

Hedges também considera que o capitalismo de hoje está contrário ao puritanismo essencial ao seu surgimento. Mas ele vai além e considera que hoje esse Estado sequestrado por grandes empresas tem como projeto atacar todo tipo de virtude puritana porque ela é um obstáculo ao consumismo. Cito Hedges, que reproduz as ideias de um certo Malcom Cowley em Exile’s Return: “O novo capitalismo corporativo e a produção de massa [, diferentemente do tempo de Max Weber,] se sustentam por meio da promoção de uma nova ética que promove o consumo de lazer, autoindulgente e com desperdício […]. O consumo era mais importante do que a produção. Cowley observou que, depois da guerra, os artistas também ficaram voltados à autoexpressão, cinismo político e hedonismo, incluindo o culto ao corpo. Tais valores foram abraçados em nome da contracultura, mas foram também as qualidades centrais que o capitalismo corporativo buscou inculcar no público. Esse culto do eu era fulcral para os boêmios e, depois, para os beatniks”.

No frigir dos ovos, o ideário romântico de viver on the road (na estrada) era patrocinado pela GM e por petroleiras. Essa nova ética, oposta ao puritanismo, passou a militar contra toda autodisciplina e continência. Um reflexo disso seria “a ideia da salvação pela criança”, na qual a missão da escola seria deixar a criança brotar como uma flor, em vez de dar-lhe limites. Outro reflexo seria a vulgarização da psicanálise, que teria como missão liberar os homens de suas repressões. Adotou-se a igualdade entre os sexos e um neopaganismo segundo o qual “o corpo é um templo no qual não há nada sujo, um altar a ser adornado para o rito do amor”. Ao cabo, a sociedade não precisava de mudanças econômicas e tudo passou a ser resolvido com terapia (curiosamente, foi da contracultura que saiu a esquerda armada dos EUA, a saber, o Weather Underground e o Black Panther Party. O primeiro desses grupos é pouco famoso, mas, como diz Christopher Rufo, suas ideias são dominantes nas instituições dos EUA). A contracultura fomentou ainda o uso de drogas para "abrir a mente" -- e ele poderia lembrar que drogas são objeto de consumo difícil de dispensar.

Ao mesmo tempo, “essa autoexpressão e esse paganismo […] só aumentaram a demanda por novos produtos, desde mobília a batas. O clamor para viver o momento […] levou as pessoas a comprarem bens de consumo por impulso, de carros a rádios. A igualdade feminina foi usada para dobrar o consumo de produtos como cigarros.” De fato, o cigarro foi vendido para as mulheres como empoderamento feminino. Mas possivelmente foi o menor dos males, já que o ingresso compulsório da mulher no mercado de trabalho da classe média implicou a duplicação da oferta de mão de obra, sendo bem improvável que não tenha causado a diminuição dos pagamentos individuais da classe média.

Arte vazia e arte de traficante

Hedges tira como consequência de tudo isso o esvaziamento da arte. O maior exemplo disso seria o MoMa, financiado por grandes capitalistas e pela CIA (em exposições no estrangeiro), e Jackson Pollock, cujo possível financiamento pela CIA é frequentemente apontado e bem discutido (para não dizerem que é coisa de teóricos da conspiração obscuros, aqui estão um link da BBC e da JSTOR). A arte foi confinada ao “mundo da arte”, definhou e perdeu a capacidade de se comunicar com o público.

Se a universidade e a arte ficaram herméticas, uma das poucas áreas que teve de continuar tendo contato com o público é o jornalismo. “A mídia diz aos membros do público quem eles são. Diz-lhes quais aspirações deveriam ter. Prometem ajudá-los a alcançar tais aspirações. Oferecem uma variedade de técnicas, conselhos e esquemas que prometem o sucesso final. A mídia comercial […] também ajuda os cidadãos a se sentirem como se fossem exitosos mesmo que não sejam. Tendem a negligenciar a realidade (não contam histórias sobre como a vida é difícil, como a fama e a fortuna são fugidias, como as esperanças se frustram) e, em vez disso, celebram identidades idealizadas – aquelas que, numa cultura de commoditiy, giram em torno da aquisição de status, dinheiro, fama e poder, ou ao menos a ilusão de tais coisas”.

O ingresso compulsório da mulher no mercado de trabalho da classe média implicou a duplicação da oferta de mão de obra, sendo bem improvável que não tenha causado a diminuição dos pagamentos individuais da classe média

Aqui eu devo observar que lá nos EUA a mídia pode fingir que a vida só é dura na África. No Brasil, é interessante observar que a imprensa tradicional, adotando uma retórica idêntica à do PT, tenta convencer a classe média de que no Brasil só quem sofre é o pobre, e a classe média fosse um mar de rosas. Não é. O custo de vida não para de subir, há uma crise de saúde mental e os jovens têm cada vez menos expectativas de ter o mesmo nível de vida dos pais. Diploma não serve para mais nada. O pobre, que às vezes é um pequeno proprietário rural com despesas ínfimas e uma certa autossuficiência, tem uma vida estável – mas aí vêm os economistas pegar tabelas e mostrar que aqueles, sim, são sofredores e miseráveis, de modo que a classe média está por cima da carne seca.

Mas voltemos à arte. Com a apologia da subjetividade e da autoexpressão, a arte acabou sendo o de menos. Mais vale ser um cara de “atitude”. Essa “atitude” é toda orientada para o consumo e para a ruptura da moral tradicional. Ao cabo, substitui-se a arte pela pregação de uma moral de prostituta e traficante (que já descrevi com maior detalhe aqui, mas você pode assistir às peças premiadas pelo Grammy, que são prova eloquente).

Definitivamente, as ditaduras simpáticas ao comunismo estão longe de ser o nosso maior problema.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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