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Defesa do Estado: a guerra em Israel expôs as contradições na direita também
| Foto: Foto de <a href="https://unsplash.com/pt-br/@pagsa_?utm_content=cPablo García Saldaña/Unsplash

À direita, muita tinta já correu no que concerne à contradição entre os valores da esquerda progressista e o apoio ao Hamas. Obviamente, o fundamentalismo islâmico não é lá muito gentil com mulheres empoderadas ou LGBT. Como este é um jornal de centro-direita e o assunto já foi tratado de modo exaustivo, vou realçar o – igualmente óbvio – outro lado da moeda, que é a contradição entre os valores da nova direita “liberal conservadora” e o apoio a Israel.

1) Estado é bom e necessário

Com o impeachment da incompetenta, o Brasil mudou radicalmente do Estado como panaceia para o mercado como panaceia. Os empresários, rebatizados como “empreendedores”, passaram de vilões marxistas que odeiam pobres a mocinhos randianos que salvam a plebe de si mesma. Obviamente, a realidade é complexa e nenhum dos dois modelos serve para compreendê-la.

Se um dia o slogan da direita brasileira foi “Deus, pátria e família”, hoje é “Menos Marx, mais Mises”. O único papel do Estado na promoção da moral conservadora acaba sendo a criminalização do aborto. Só, mais nada. A liberdade de expressão tem que ser irrestrita (comportando desde blasfêmia até racismo e defesa da pedofilia); a sexualidade é assunto estritamente privado. Se o Estado servir para alguma coisa, é só para garantir que ninguém seja roubado e que os contratos (abusivos ou não) sejam respeitados. É um Estado policial e judiciário. Quanto às Forças Armadas, no Brasil elas parecem servir tão somente para dar um golpe. Não lhes é pedido que vele pela nossa soberania, nem que esteja preparada para ameaças bélicas. Sob a batuta de Olavo de Carvalho, difundiu-se a crença de que as Forças Armadas não passam de cabide de emprego e deveriam ser extintas, transformando do Brasil num Porto Rico gigante.

Seguindo essa linha de raciocínio, os judeus ficariam muito bem sem Estado. Para que manter o povo judeu sob a tutela de um Estado que não consegue (ou não faz questão de) proteger os seus próprios cidadãos, (já que alimentou o Hamas por priorizar a criação do Estado da Palestina)?

2) Descentralização não é panaceia

O melhor exemplo da panaceia da descentralização talvez seja a seita do Bitcoin. A moeda digital promete reviver as vantagens do padrão ouro (que era perfeito, mas caiu) por meio da descentralização. Nenhum Estado nacional emite Bitcoins; em vez disso, computadores os “mineram”. Como o Estado é mau e a descentralização é tudo, era certo que Bitcoin seria a moeda do futuro; por isso, as pessoas saíram comprando como investimento. Quem comprou primeiro e revendeu se deu bem – como em esquemas de pirâmide típicos. E, como em esquemas de pirâmide típicos, o barato é o dinheiro proporcionado pela coisa, e não a utilidade da coisa em si mesma. Herbalife serve para ampliar o número de vendedores de Herbalife, não para emagrecer. Bitcoin serve para os “bitconheiros” prometerem aos novatos que Bitcoin é o futuro e eles deveriam comprar Bitcoin já – mas só nerd consegue comprar feijão com Bitcoin.

No frigir dos ovos, Bitcoin acaba sendo usado como moeda só por nerds (que gostam de tecnologia) e criminosos (que realmente precisam de uma coisa que escape ao Estado). E foi o caso do Hamas!

Por outro lado, se há um caso em que a descentralização parece vantajosa, é precisamente a dos judeus pelo mundo em comparação aos judeus concentrados em Israel. A estratégia mais eficaz em tempos de antissemitismo parece ser a de ter vários passaportes e cidadanias. O Estado judaico demandado pelos sionistas poderia, em tese, ser bom e eficaz; mas o que vemos hoje se parece mais com uma arapuca para pegar a maior quantidade de judeus possível do que com um porto seguro. Quem se sente seguro num país que precisa de um Domo de Ferro “infalível”? Coisa de maluco. E a propaganda enganosa do Domo só faz Israel se parecer mais ainda com uma arapuca de pegar judeu.

Se o sonho sionista de colocar todos os judeus num Estado fosse levado a cabo, bastaria uma bomba atômica para acabar com toda a etnia. E do jeito que os sionistas são maus vizinhos (no meu tempo de escola, todo o mundo sabia que o Israel moderno tem terrorismo sionista em suas fundações), e já que o Irã tem o propósito expresso de acabar com o Estado de Israel, esse genocídio está longe de ser uma ideia absurda.

3) Rave é bom

O Direito rege a legalidade; não rege, porém, a comoção causada por um crime, que é coisa humaníssima. Se um médico estava a caminho do hospital quando foi atingido por uma bala perdida e morreu, houve um crime. Se um encostado estava a caminho do cabaré quando foi atingido por uma bala perdida e morreu, houve o mesmo crime, mas certamente não a mesma comoção. O noticiário, caso queira comover, enfatizará a profissão de um morto e omitirá a condição do outro. Entrevistará a família e os amigos para mostrar que era um sujeito querido. Seria difícil vermos um âncora contrito, dizendo algo como: “Coitado, estava justo a caminho do cabaré quando morreu!”

Pois foi assim que me soou a comoção com a morte de jovens na rave. O que é uma rave? Uma festa para ficar doidão ao som de batida eletrônica e sair se pegando com estranhos. Por ficar doidão, entenda-se: usar drogas. Rave é baile funk de rico.

É compreensível que jornalistas, que costumam ser progressistas, enfatizem que os jovens estavam numa rave, porque o ponto alto da vida pra esse povo é isso. Mas é espantoso que ditos conservadores considerem o fato especialmente tocante porque “poderia ser o seu filho”. Ou seja: eles acham normal ter filho na rave. Depois o filho faz bobagem na faculdade e a culpa é do “marxismo cultural”, não da falta de educação doméstica. Rave, assim como baile funk, tem que ser criminalizada. E se um dia eu tiver um filho em rave, vou morrer de vergonha, em vez de falar isso na TV.

4) A questão do aborto não é essencial ao apoiar um país

Os olavetes têm estado em campanha aberta contra a Rússia, alegando que é um país ruim não só por causa do seu passado comunista, mas também, e sobretudo, por ser o primeiro país do mundo a descriminalizar o aborto e ter ainda hoje as marcas disso. O aborto se entranhou na cultura russa e segue permitido pela lei.

Se o aborto é o fundamental, então deveríamos rechaçar Israel e comemorar a Revolução Islâmica no Irã (ou Pérsia), além de apoiar os governos árabes de modo geral. Em Israel, o aborto foi liberado “sob certas circunstâncias” em 1977. Qualquer mulher podia solicitá-lo a um “tribunal de aborto” formado por médicos e assistentes sociais. Uma das razões que consta na lei para pedir o aborto é a possibilidade de o feto ter defeitos congênitos – o que, em bom português, é eugenia. Além disso, qualquer um que tenha estudado eugenia vai saber que a ideia de uma junta médica dar um veredito sobre a reprodução de um indivíduo remonta aos EUA de Buck v. Bell, à Alemanha Nazista e ao Chile sonhado por Allende. De todo modo, como informava o Haaretz, a lista de permissões previstas em lei era letra morta, já que quase todos os pedidos de aborto eram aprovados. Em 2016, 9% das gravidezes em Israel terminavam com um aborto legal.

Digo “eram aprovados”, no passado, porque Israel reagiu à reversão de Roe v. Wade acabando com o tribunal de aborto e distribuindo pílulas abortivas à vontade, como noticiou a Associated Press.

Já o Irã fez o caminho oposto, que a Rússia não teve coragem de fazer. Em 1977, o xá da Pérsia liberou o aborto até 3 meses (estendendo-se o prazo em caso de risco à vida da mãe). Em 1979, a Revolução Islâmica proíbe de novo. Hoje a lei do Irã, e a de vários países árabes, se parece com a brasileira, que permite em caso de estupro e risco de vida. A Palestina e o Líbano, mais rigorosos, só permitem em caso de risco à vida.

5) Um membro politizado de uma minoria vale por toda a minoria

Sionismo e etnia judaica estão sendo tomados como a moralmente a mesma coisa. Ninguém escolhe ser negro, ninguém escolhe ser mulher, ninguém escolhe ser lésbica. Do mesmo jeito, ninguém escolhe nascer de um ventre judaico (ou, para ser mais precisa, ninguém escolhe ter uma matrilinearidade judaica); logo, ninguém escolhe nascer judeu do ponto de vista étnico. Ser judeu étnico é acidente de nascimento. O sionismo é um movimento político nacionalista judaico que culminou na criação do Estado de Israel. O judaísmo é uma religião à qual podem aderir os judeus étnicos. Assim, ainda que seja teoricamente possível todo judeu étnico aderir à religião judaica e ao sionismo, a realidade é muito mais complexa. Chomsky e Greenwald, judeus étnicos ateus, se manifestam ativamente em favor da Palestina e contra Israel. Em Nova Iorque, judeus religiosos, ditos ultra-ortodoxos e anti-sionistas, se manifestaram em favor da Palestina e contra Israel.

Do mesmo jeito, ser mulher não implica ser feminista, ser LGBT não implica ser woke, ser negro não implica ser racialista nem panafricanista. Se por acaso a maioria dos negros fosse racialista, azar. Eu tenho que ter liberdade de ser contra cotas raciais sem ser chamada de racista e de ser contra o sionismo sem ser acusada de nazista. Quem domina a chantagem emocional (ex: “se Bolsonaro se eleger, os gays vão morrer!!!”) é a esquerda identitária. Não existe isso de obrigar todos a serem favoráveis a um movimento político. Podem até tentar; depois o antissemitismo sobe e ninguém sabe por quê.

6) Destruição arbitrária da propriedade privada

Há pouco mais de um século, os palestinos sob o domínio britânico se depararam com fanáticos religiosos dizendo que aquelas terras não eram deles, porque eles não eram judeus, e Deus havia as prometido aos judeus. Esses judeus, que haviam nascido na Europa e cujos bisavós haviam nascido na Europa, estavam “de volta” após quase dois mil anos e vinham reclamar a sua propriedade instituída por seu Deus, não interessando os títulos de propriedade originados no finado Império Otomano.

Agora o Brasil passa por uma situação semelhante com a criação arbitrária de reservas indígenas e com a campanha pela derrubada do Marco Temporal. Assistimos à vergonha de o Estado brasileiro, aparelhado por ambientalistas malthusianos, ser usado para expulsar brasileiros a bala de sua própria terra (inclusive matando um). Com o fim do Marco Temporal, as alegações malucas ao estilo sionista seriam feitas não só contra árabes no Oriente Médio, mas também contra brasileiros de qualquer área do território nacional. Os ongueiros indigenistas dirão: “Nada vale esse título de propriedade que remonta ao seu bisavô, porque em 1500 os portugueses cometeram genocídio e esta terra é destes índios.” Depois, se o ódio aos índios surgir em áreas assim, ninguém há de se surpreender.

Então ficamos assim: para a direita brasileira formada por Olavo de Carvalho e outros liberais americanófilos, só quem pode ter Estado é judeu sionista; propriedade privada, todos podem ter, menos os árabes; abrir o livro de História para se vitimizar é feio, exceto quanto o evento é o Holocausto; todos os países podem ter aborto, menos a Rússia; e ninguém pode usar droga, exceto o meu filhinho na rave.

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