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O ditador norte-coreano Kim Jong-un
O ditador norte-coreano Kim Jong-un| Foto: EFE/EPA/KCNA

Que eu me lembre, as duas coisas que mais me fizeram ser xingada no Facebook foram estéticas: falar mal do gosto dos paulistas, que colocaram aquele touro cafona na Bolsa, e reclamar da poluição visual causada por excesso de tatuagens. Deixemos os paulistas de lado hoje. Segundo o protesto uníssono dos tatuados revoltosos, cada um deveria cuidar da própria vida em vez de reclamar das tatuagens. Quem não gosta de tatuagem, não faça, e ponto final. Ênfase no ponto final. Todo o mundo tem o direito de fazer o que bem entender com o próprio corpo. De brinde vem o direito a não ouvir que ficou feio. Ou seja: na cabeça de muita gente dos mais variados tipos de orientação política, a liberdade individual vem acompanhada pelo direito à aceitação social – como se esta não fosse necessariamente espontânea. E dessa crença só pode se seguir uma coisa: limitação à liberdade de expressão. Os pluritatuados têm o direito de ficar andando para lá e para cá no aeroporto com seus rabisquinhos no braço, eu não deveria ter o direito de lembrar a música de Falcão cujo refrão é: “Ô povo fêi!”

Agora todo o mundo é Kim Jong-un

Essa mentalidade se faz evidente com a maneira como os progressistas encaram a questão gay. Não basta haver a igualdade jurídica que dê aos casais homossexuais os mesmos direitos que outros casais estéreis têm: casar no papel, assegurar o patrimônio conjunto, adotar filho etc. É preciso que todo o mundo aceite a homossexualidade – mesmo o velhinho da roça, mesmo o religioso dentro da igreja. Ora, questões jurídicas estão tipicamente dentro do escopo do Estado; questões comportamentais, não. A menos que o jurídico vá crescendo sobre o comportamental até se imiscuir totalmente na vida privada – o que me remete logo à Inglaterra de outrora, onde as leis não admitiam sequer o exercício privadíssimo da homossexualidade, como mostra a triste sina de Alan Turing. Mas me remete também à Coreia do Norte, já que ao menos a homossexualidade é uma prática, e dá para criminalizar práticas sem subverter as consciências. Por outro lado, instituir respeito e aceitação à base de polícia de pensamento é coisa de regime totalitário. Na Coreia do Norte, todos têm que ser respeitosos com a figura de Kim. Não pode apontar o dedo para o retrato dele, nem tirar fotos em que o seu retrato apareça cortado. É claro que ninguém vai falar mal do cabelinho de Kim; e, se Kim tatuasse um hambúrguer com um significado especial, todo mundo teria que achar lindo o hambúrguer e achar muito profunda ideia de tatuá-lo.

Creio que a ideia de liberdade que está na moda hoje presume um mundo em que todos sejam o Kim da Coreia e todos sejam cidadãos norte-coreanos ao mesmo tempo. Se eu fizer um monte de tatuagem feia, vocês têm que respeitar minha individualidade. Se eu quiser usar cocaína, vocês têm que respeitar a minha individualidade. Se eu disser que não sou uma mulher, mas sim uma pessoa não-binária de gênero neutro, vocês têm que aceitar – e o velhinho da zona rural tem que ser reeducado para aprender a falar “Elu é bonite”, para parar de violar os direitos humanos (antigamente esperávamos contar ditadores entre os violadores dos direitos humanos; hoje, há os velhinhos da zona rural. Resta saber se serão julgados pelo Tribunal de Haia também).

Num país onde só um é Kim, esse modelo de liberdade individual pode funcionar. Kim detém a polícia, Kim manda no país e Kim manda prender quem der na telha. Mas se todo o mundo tiver as liberdades individuais de Kim, resta saber quem vai proteger os direitos dos kinzinhos ocidentais. Certamente alguma força grande: ou o Estado, ou essas corporações monopolistas, ou uma concertação entre ambos.

Agora todo o mundo é Caetano

Antigamente, dizer que “é proibido proibir” era coisa da nova esquerda, da contracultura. Agora, o ideal de liberdade é "de direita" e inteiramente individualista. Por isso, está proibido proibir os indivíduos de fazerem qualquer coisa que, supostamente, não cause dano a outrem. Essa concepção de liberdade está fadada ao fracasso, pois leva à tirania.

Não existe uma tabela objetiva de coisas que causam dano e coisas que não causam dano. A própria avaliação do que é danoso ou benéfico é subjetiva; e, quando se considera a educação, a coisa se complica ainda mais. Por exemplo: cigarro é algo danoso à saúde, por isso os fumantes têm sua liberdade de fumar restringida em espaços fechados. Pensando-se no dano aos futuros fumantes, proíbe-se a propaganda de cigarro. Mas o argumento em defesa da liberação das drogas quase sempre passa pela liberdade que o homem tem de fazer o que quiser com a própria vida – e os liberais que defendem a liberação das drogas jamais defenderiam a criminalização da apologia das drogas.

É muito fácil restringir a liberdade de expressão uma vez que se admita a premissa da restrição ao dano. Não é de admirar, portanto, que tanta gente se diga liberal e defenda a censura: basta fazer mágica com a noção de dano. É claro que as pessoas mais sensíveis sofrem danos emocionais com maior facilidade… Daí se entende também por que o vitimismo faz tanto sucesso, já que inflaciona a capacidade de sofrer dano e portanto reivindicar proteção, exigindo o controle do outro. O problema do liberalismo se chama John Stuart Mill, pois não dá para ser liberal e utilitarista ao mesmo tempo, mas ele diz que dá.

É permitido proibir

Ao se trabalhar com a noção de dano, há também divergências de natureza objetiva e factual. O individualista tem certeza absoluta de que liberar o uso de drogas não impõe danos a ninguém além do usuário, já que a escolha de usar é individual. O pai de família normal, por outro lado, terá certeza de que uma sociedade que admite o comércio de drogas a céu aberto é uma sociedade muito ruim para criar os filhos: enquanto pai, sente que sofre dano em suas atividades educativas. Uns individualistas podem ter certeza de que aborto causa dano ao nascituro; outros, que o nascituro é um mero agregado de células e portanto é errado se intrometer na liberdade de escolha da mulher.

Se a maioria do povo tiver certezas contrárias à do individualista, como resolver? O individualista em geral é favorável à descriminalização do aborto e, no mínimo, da maconha. O grosso da população é contra. A maneira que os individualistas encontram para resolver o problema é invocar a Ciência a fim de suplantar as questões factuais. Surgem aqueles estudos segundo os quais a maconha resolve mais problemas de saúde do que óleo de peixe elétrico e garrafada. Estudos sobre os males da maconha, os quais também existem, não aparecem na mídia. Mas não adianta: o povo não dá bola para estudo e quer continuar proibindo.

O povo quer proibir certas coisas e vota em legisladores que as proíbam. Os caetanos, por outro lado, dizem que é proibido proibir. E se discordar, eles prendem e arrebentam, porque são contra a violência.

Democracia é "coletivista"

Ao cabo, os individualistas só terão o direito a usar LSD e abortar quando houver uma força capaz de segurar o povo. Só terão direito a tatuar a cara sem ninguém os olhar feio quando houver um policiamento digno da Coreia do Norte. Numa palavra, sua liberdade só será plena quando não houver mais democracia e o povo tiver perdido a liberdade.

Precisamos restaurar o velho conceito de liberalismo como descentralização do poder. Porque, pelo andar da carruagem, o que se pede é uma ditadura "esclarecida" cujo único objetivo é dar segurança para um bando de hedonista.

Democracias não existem sem que o povo tenha liberdade para proibir.

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