• Carregando...
O filósofo russo Alexander Dugin
O filósofo russo Alexander Dugin| Foto: Reprodução/Facebook

Perante a percepção internacional, Aleksandr Dugin (pronuncia-se Dúguin) está para Putin como Olavo de Carvalho estava para Bolsonaro: ninguém fora do círculo de iniciados conhece direito, mas todo o orbe terrestre tem certeza de que basta decifrar a sua filosofia para compreender os planos maléficos do governante malvado e antidemocrático a que servem. Raramente as coisas são tão simples, então convém matizar essa importância. Matizá-la não significa negá-la. Se entender Olavo não era a mesma coisa que descortinar as intenções de Bolsonaro e os rumos do Brasil, ao menos era informativo sobre uma corrente importante do pensamento brasileiro atual.

Para matizar as diferenças entre Dugin e Putin, é bom frisar que o primeiro tem uma vida política agitada; criou um partido (o Nacional-Bolchevique, que funde as identidades visuais do comunismo e do nazismo) e é apontado como líder de um movimento político interno à Rússia (o Movimento Eurasiano). Ele apoia Putin, mas entre apoiar e ser um guru há uma diferença bem grande. É difícil de mensurar a influência dele sobre Putin sem conhecer a política russa.

Vale também matizar as diferenças entre ele e Olavo. O brasileiro liderou um movimento dentro do Brasil. É possível encontrar olavetes portugueses, não duvido de que haja angolanos e moçambicanos. Olavo parece ter gozado de vida intelectual também na Romênia, cujos nativos têm facilidade em entender o português. De todo modo, é seguro afirmar que a influência de Olavo, ao menos em vida, não ultrapassou as barreiras da lusofonia. Nem no espanhol chegou, e sua moradia nos Estados Unidos parece ter sido um acidente mero corpóreo, pois sua mente seguia no Brasil.

Já Dugin impressiona pela quantidade de línguas para o qual foi traduzido. Em seu site, há uma porção de bandeirinhas nas quais você pode clicar e escolher a sua língua – desde o japonês ao ucraniano. O conteúdo do site varia conforme a língua, ou seja, não é um conteúdo uniforme todo traduzido. Resta saber se ele tem militância aguerrida no Japão, a ponto de fazer traduções grátis, ou se há dinheiro por detrás do projeto, e, havendo dinheiro, de onde vem ele.

Dugin no Brasil

No rol de bandeirinhas, consta a brasileira, não a portuguesa. Dugin se fez razoavelmente conhecido no Brasil através de Olavo de Carvalho, que o apresentou aos seus leitores. O debate entre ambos resultou no livro Os EUA e a Nova Ordem Mundial, publicado primeiro em 2012. Dugin fixou uma pequena porém aguerrida militância no Brasil chamada Nova Resistência, simbolizada por uma estrela verde. Pelo que vejo das redes sociais, o amor durou pouco. Os olavetes têm certeza de que os duguinistas são comunistas, e os duguinistas têm certeza de que os olavetes estão a serviço da CIA. Os olavetes politizados estão partidos entre os que apoiam Bolsonaro e os que acreditam em Weintraub. Já os duguinistas estavam se aglutinando em torno de Aldo Rebelo, crentes na sua candidatura à presidência.

Pois bem: mês passado a Escola Superior de Guerra, em conjunto com a UERJ, convidou Dugin para apresentar uma conferência. Depois de protestos, foi cancelada pela UERJ. O Comandante Robinson Farinazzo, que o assinante da Gazeta já conhece pelas lives no YouTube da coluna Jogos de Guerra, recebeu-o no seu canal, com o compromisso de manter a conversa com o russo – que entende português e se expressa numa mistura de espanhol com italiano inteligível para o letrado médio, mas não para o zé da esquina. Dado que Dugin honrou o compromisso e participou de mais uma entrevista, resolvi assisti-la e trazer as minhas notas.

Dado o histórico de cancelamento, as acusações de fascismo, a identidade visual do partido nacional-bolchevique e o tratamento como guru de Satanás (i. e., Putin), na certa a trilha sonora de Psicose, de Hitchcock, está tocando na cabeça do leitor. Agora abre-se a cortina do chuveiro e…

Nada de mais

Nada de mocinha gritando, nem facada no banheiro. As opiniões filosóficas de Dugin expressas ali me pareceram bem familiares, e eu não li nada dele (encomendei o debate com Olavo enquanto escrevia a seção anterior). Mas parte do que ele disse coincide com o que Jonah Goldberg diz e parte com o que John Gray diz. Tal como Jonah Goldberg, ele usa a expressão “fascismo liberal”. Não sei se ele tirou de Goldberg, se tirou da fonte de Golberg (a saber: o influente e hoje bem reputado H. G. Wells, que propôs a sério um fascismo liberal, um nazismo esclarecido), ou se é coincidência. Não pude pescar qual seria a formação intelectual dele, então é possível que seja coincidência.

Se eu quiser chamar alguma coisa de plágio, estou frita, porque mês passado me perguntaram como eu via a guerra da Ucrânia e eu respondi que via um conflito entre um Estado nacional e órgãos supranacionais. Preferi falar num imperialismo ESG (“governança ambiental e social”), supranacional, que visa a solapar Estados nacionais. Também senti necessidade de acudir ao conceito de “fascismo liberal”, mas creditei-o a Goldberg e Wells. Se eu vi a mesma coisa que Dugin sem ter lido Dugin, é porque essa coisa deve ser fácil de ver para quem não romanceia o atual Ocidente rico.

Ele fala de fascismo liberal querendo dizer a mesma coisa: “o liberalismo novo, ou neoliberalismo” é diferente do liberalismo velho. Um dizia que você pode fazer o que quiser; o novo, que você é obrigado a fazer o que eu quero, o que é um traço fascista. Qualquer um que olhe para o politicamente correto sem aderir a ele fará essa associação entre ele e o fascismo, independentemente de sua orientação política. E qualquer um que não seja um americanófilo deslumbrado há de convir que o politicamente correto é exportado na marra pelos EUA (até para o Afeganistão!).

No mais, a fala de Dugin me lembrou Missa Negra, de John Gray, no que concerne ao assunto da democracia. Perguntado, Dugin diz que o povo russo enxerga Gorbatchov como um traidor e odeia Ieltsin. Muito se fala que Putin é um autoritário etc., como se fosse óbvio que ninguém gostasse de autoritários. Ora, John Gray lembra que, à queda da União Soviética, os liberais esperavam que a Rússia fosse virar uma democracia liberal com uma economia de livre mercado. Na verdade, seguiu-se o caos, e o governante pró-Ocidente (Ielstin) sofreu derrotas acachapantes perante Putin, o ex-agente da KGB que governa o país com mão de ferro. Ao meu ver, é mais sensato julgar a satisfação da população com o seu regime verificando a emigração. Se um país tiver que trancar sua população, é porque as coisas vão muito mal; do contrário, significa que há poucos incomodados dispostos a se mudarem.

Segundo a ótica de John Gray, parte dos EUA é tão ideológica quanto os comunistas, pois pretendem alcançar o Fim da História implementando um regime político-econômico por todo o mundo. De fato, o filósofo hegeliano Francis Fukuyama dissera que os EUA eram a primeira sociedade do mundo a alcançar o Fim da História, com sua democracia liberal e sua economia de livre mercado. Consequência disso seria a disposição do país a sair dando tiro, porrada e bomba para estabelecer a democracia no Oriente Médio, quer ele queira ou não queira. Cito John Gray, em passagem que comenta a simbiose entre Tony Blair e George Bush às vésperas da Guerra do Iraque: “Na década de 1990, era bem-visto afirmar que o mundo chegara a uma era ‘pós-westfaliana’ – referência ao Tratado de Westfália, de 1648, geralmente considerado o momento em que o Estado moderno ganhou foro jurídico. Acreditava-se que esse sistema chegara ao fim no período posterior à Guerra Fria: a soberania do Estado já não estava no centro do sistema internacional, que era governado por instituições globais” (Missa Negra, p. 150). O livro é de 2008. Em 2008, um professor da London School of Economics podia falar de globalismo como uma ameaça à soberania sem passar por teórico da conspiração. John Gray está longe de ser um teórico esquerdista; ele é um estudioso de Hayek.

Informação importante

Qualquer um diria que aquilo que se chama hoje de liberalismo não é o liberalismo de há pouco. Qualquer um poderia apontar traços de fascismo nele, e, sobretudo no Brasil, não falta quem aponte traços de comunismo. Dugin resume a confusão geral dizendo que as três ideologias políticas do século passado se fundiram numa só. Por isso, precisamos de uma Quarta Teoria Política, que é a dele próprio.

Pela avaliação dele, esse Ocidente liberal-fascista enfrenta a Rússia durante a “operação especial” da Ucrânia. Dugin simpatiza com Bolsonaro por ele ter sido aliado de Trump, o qual Dugin vê como um opositor do liberalismo fascista e, portanto, um opositor do globalismo.

Uma novidade é ele dizer que o liberalismo fascista fomenta pequenos nazismos, isto é, pequenos nacionais-socialismos, para atacar as grandes nações. Esta me parece uma avaliação judiciosa, dado que há muito tempo as ONGs globalistas se empenham em falar de nações indígenas oprimidas pelo Estado brasileiro, e não é de hoje que os militares temem a instauração de um país Ianomâmi. Essa associação entre indigenismo e nazismo não é invenção minha nem de Dugin, mas de Victor Farías, que mostra como o indigenismo nos países de língua espanhola – sobretudo no Chile e na Bolívia – faz uso do mesmo léxico de Heidegger para tratar do seu povo, bem como de sua especial ligação com o solo e a natureza. Vide Heidegger e sua Herança, publicado no Brasil pela É Realizações.

Sobretudo na questão da Rússia, vê-se que as reivindicações de separatismo não são todas recebidas de maneira idêntica pelos órgãos supranacionais. A Revolução da Dignidade, ocorrida em 2014, derrubou o governo pró-Rússia usando armas e acusações de corrupção. Ora, a milícia neonazista Azov foi fundamental nessa batalha, e por isso foi incorporada ao Estado ucraniano. No mesmo ano, as regiões da Ucrânia habitadas por cidadãos de etnia russa convocaram, à revelia de Kiev, um plebiscito para se separar da Ucrânia, poder usar o idioma russo e escapar do jugo dos neonazistas. No caso da minoria étnica russa, não vale o princípio de autodeterminação dos povos. Neonazista pode ser Estado, que a ONU não reclama e a mídia internacional acha bonito. Mas um monte de ongueiro pode fazer um fuzuê com ianomâmis e o Brasil passa por vilão.

O fato importante trazido por Dugin é que há um filósofo ocidental, Bernard-Henri Lévy, explicitamente alinhado com os Azov. Ele fora à Ucrânia durante o Euromaidan (os protestos de 2013 que levaram à Revolução) promover a causa ao lado dos Azov. E agora, com todo mundo sabendo que os Azov são neonazistas, Bernard-Henri Lévy publica uma entrevista baba-ovo com Iliá Samoilenko, o segundo comandante do movimento. Ou seja: é perfeitamente factível que o Ocidente apoie a Ucrânia por causa dos neonazistas, e não apesar deles.

Lévy pertence a uma corrente francesa opositora do marxismo e é um defensor de alguma coisa que ele chama de liberalismo. Mais intrigante ainda, ele é judeu. Mostra, afinal, de que o século XXI é uma confusão dos diabos.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]