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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumprimenta o novo comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumprimenta o novo comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva| Foto: Ricardo Stuckert/ Palácio do Planalto

Eu vi que o texto de Flávio Gordon era o começo, e que haveria subsequentes. Eu vi que a tréplica a mim está no começo e portanto haverá sequência. No entanto, o primeiro texto começou com uma definição problemática, um erro ligado a ela e um erro factual. A definição problemática é a de progressismo. O erro ligado a ela é dizer que o positivismo, por ser “progressista”, está inerentemente atrelado à desumanização do outro. O erro factual diz respeito à confusão entre a organização terrorista criada pelo Pe. Vaz e seus pupilos (Ação Popular, AP) e uma facção surgida dela (Ação Popular Marxista-Leninista, APML) que logo foi absorvida pelo PCdoB.

Este último erro é repetido no início à tréplica a mim. O erro decorre de ele se basear só num breve texto de Vélez Rodríguez e negligenciar o livro sobre a querela dos liberais e conservadores com a AP: 'Liberdade acadêmica e opção totalitária', de Antonio Paim. No próximo texto voltaremos no tempo e vasculharemos a velharia. Por hoje, vamos com a definição.

Digo que a definição é problemática porque, a rigor, definições não são verdadeiras nem falsas. Há as definições que as pessoas aceitam e usam, e há as definições muito particulares. Um exemplo à vista: segundo o senso comum partilhado neste país por um tempo muito grande, o racismo consiste na crença em uma hierarquia racial, e dessa crença resultam práticas de discriminação racial. Como é coisa importante, esse tipo de definição não ficou só no senso comum e foi parar cedo, muito antes da atual onda neorracista, no nosso código penal. No entanto, um punhado de militantes do movimento negro, muito bem amparado por corporações e dinheiro dos EUA, começou a dizer que “racismo é relação de poder”. Eu li inteiros os livros de Djamila Ribeiro e de Sílvio Almeida que resenhei. Se eles tivessem publicado a prestação, como fazemos Flávio Gordon e eu neste jornal, eu poderia ter escrito desde o começo que eles estavam errados, sem ler as parcelas seguintes.

A definição

O que Flávio Gordon chama de progressismo e de progressista – respectivamente, “uma concepção teleológica e unilinear da história, que seria dotada de um fim predeterminado para o qual toda a humanidade [...] caminharia necessariamente” e “alguém que [...] acredita estar em posição de apreender a totalidade e as 'leis gerais' da história” – foi descrito e condenado por Popper com o nome de historicismo.

O leitor de jornal, sem formação em humanas, pode achar que é coisa pouca brigar por nome, mas estou tratando com um colega acadêmico de humanas. Isso que ele descreveu já tem nome, e o nome é historicismo. Popper é mais conhecido na academia como um filósofo da ciência. E esse conceito foi difundido por ele justamente enquanto mostrava que o marxismo não é científico.

Pode parecer uma obviedade hoje, mas esse consenso existe graças a Popper. Na mesma época, ele defendia que a teoria da evolução não era científica — porque de fato a parte mais barulhenta do darwinismo era o darwinismo social, que de fato é historicista.

Com algum trabalho, os defensores da teoria da evolução conseguiram convencê-lo de que se tratava de ciência, porque permitia “prever” o tipo de fóssil que se esperava encontrar. (Para Popper, a ciência deve ser capaz de fazer previsões precisas, ao contrário das previsões vagas da astrologia, que nunca podemos dizer que estavam erradas. Previsões precisas podem ser falseadas, e a ciência requer falseabilidade.)

O que está em jogo – o motivo

Quando um acadêmico começa a mudar as definições, aí tem. No caso dos neorracistas, eles quiseram destruir a condenação ao racismo que era consensual na sociedade brasileira a fim de impor suas próprias discriminações raciais. No caso de Flávio Gordon, essa forçação de barra se deu contra os militares após Lula subir a rampa sem maiores problemas. Infelizmente o relatório da Defesa não recebeu tanta atenção quanto eu esperava, e o TSE não parecia muito disposto a investigar o TSE. (Eu declaro que confio nos Deuses da Democracia, e que tenho certeza de que o meu colega também confia; do contrário, podemos ter problemas com a lei. Limito-me a dizer que eu, com meu intelecto limitado, tive dificuldade em enxergar a lisura do pleito, mas tive uma epifania depois de Lula ser empossado.)

Enquanto os militares não dirimiam as dúvidas quanto ao processo eleitoral, a maioria dos olavetes adotava uma destas duas posturas: ou bem apelavam para a autopreservação das Forças Armadas, com esperanças de que elas dirimissem tais dúvidas, ou bem se gabavam de que as Forças Armadas nada fariam, porque são uns positivistas safados. Depois de Lula subir a rampa, veio a catarse. A direita quase toda denegria as Forças Armadas.

Flávio Gordon, ao meu ver, se enquadra nesse cenário. Primeiro a presidência de Lula implicaria a subjugação humilhante das Forças Armadas, como em seu artigo de 28 de dezembro intitulado “Um réquiem para o Brasil? O PT e o destino das Forças Armadas.” Seu artigo está correto quanto às intenções do PT em relação às Forças Armadas e é uma fonte importante, bem documentada, de tais intenções. No entanto, se intenção fosse tudo, Múcio não só já teria caído, como nem teria subido. A própria matéria de Kawaguti sobre a possível venezuelização das Forças Armadas mostra que essa não é uma tarefa tão fácil, já que os petistas querem criar do zero um Exército paralelo para chamar de seu (a Guarda Nacional).

Tal como o governo Bolsonaro, o governo Lula III é uma combinação de forças heterogêneas, e textos de olavetes anteriores a 2019 não bastariam para dizer como seria o governo Bolsonaro, por mais que ele tenha feito seu primeiro pronunciamento de presidente eleito com um exemplar de livros de Olavo sobre a mesa. Alexandre de Moraes não prende general e petistas têm de engolir um no GSI.

Mesmo que porventura as Forças Armadas sejam "venezuelizadas", o Brasil não é a Venezuela. Não somos um país com a população de São Paulo em cima da maior reserva de petróleo do mundo. Lula não pode quebrar a economia toda e viver só de transformar petróleo em cesta básica. Não vivíamos no Paraíso no governo Bolsonaro; não vivemos no Inferno no governo Lula III. Antes não era caso de carnaval, agora não é caso de réquiem. Antes ainda era preciso construir, e hoje é mais necessário ainda.

Como as dúvidas não foram dirimidas pelas Forças Armadas, eis que sai esse texto bilioso sobre os militares. Lemos que quem não compreender a realidade como “os positivistas e demais progressistas” “será tido por algo menos que um homem” (itálicos dele). Tal como nas diatribes de Olavo contra os militares, eles são horríveis porque são positivistas, e positivistas são como comunistas. Agora a coisa evoluiu e os positivistas são ruins porque desumanizam.

Vendo isso, apelei para a formação de antropólogo indigenista de Flávio Gordon e lembrei Rondon. Se ele não estivesse tão absorvido pelos cacoetes de Olavo, o positivismo brasileiro deveria remeter a Rondon, que é a prova viva de que um militar positivista roxo está muito longe de desumanizar ou desrespeitar seres humanos em estado primitivo ou dissidentes políticos. Olavo tem razão numas vezes; noutras, não. A conduta de alguns pupilos lembra a idolatria de Averróis por Aristóteles, que teria sido “criado e dado a nós pela Providência divina para não ignorarmos as coisas possíveis de serem conhecidas”, como cita o Pe. Malebranche em sua Busca da verdade.

O que está em jogo – o futuro

Só me dedico tanto a este assunto porque Olavo de Carvalho foi um grande comunicador e o seu discurso contra os militares tomou conta da direita depois de Lula subir a rampa. Eu tinha escrito em novembro um artigo com o título igual àquele de Flávio Gordon que respondi (“A direita brasileira e as Forças Armadas”). Nele aponto que, desde quando as manifestações de 2013 ganharam feições antipetistas, os velhinhos que pedem intervenção militar são uma constante. E eram uma constante escorraçada pelo MBL e cia.

Quase 10 anos depois, o MBL minguou, Bolsonaro foi para os EUA e as manifestações terminaram em 142 na frente dos quartéis. Na verdade – penso eu – Bolsonaro começou a galgar popularidade colocando-se como um militar golpista. A ideia de Forças Armadas salvadoras sempre foi forte na ascensão dos movimentos de massa de direita. Todo esse período de gramscismo triunfal consagrou os militares como antagonistas dos comunistas.

Só quem discordava da força dos militares no imaginário nacional eram os olavetes, que tinham raiva das Forças Armadas porque elas permitiram o comunismo no Brasil. Em função dessa crença, parte dos olavetes causou uma confusão danada no começo do governo. Atribuíam a eleição de Bolsonaro à difusão da obra de Olavo de Carvalho, que despertou as massas. Denunciavam os militares do governo chamando-o de positivistas. E quando o texto do Prof. Vélez denunciando o conluio de militares com marxistas voltou à tona, ele ganhou nada menos que uma indicação de Olavo ao MEC. Quando o Prof. Vélez foi exonerado, tanto Bolsonaro quanto Olavo alegavam não conhecê-lo direito. Tem como essa obsessão antimilitar ser boa para o país?

As Forças Armadas são uma instituição permanente do Brasil. FHC se empenhou em sucateá-las; os petistas se empenharam em difamá-las e os olavetes se juntaram ao coro. Seria bom que os jovens desejassem se tornar militares. É claro que só podemos desejar isso se houver realmente uma carreira digna para eles, bem como aceitação social. No que depender dos olavetes, as Forças Armadas serão sucateadas e a profissão será mal vista.

A influência de Olavo de Carvalho foi muito importante para renovar a cultura brasileira. Ao mostrar que as humanidades são nobres e importantes, Olavo levou uma porção de jovens a ocuparem as vagas de filosofia, história e letras, além de fundarem editoras. Seu efeito sobre as ciências humanas institucionalizadas foi, sem dúvida, positivo.

Ele poderia ter tido um efeito positivo sobre as Forças Armadas, mas foi estúpido nesse particular.

Qual a proposta?

O pior de é que tudo isso é puro chilique, sem nenhuma proposta concreta. Sem militares, como fica a soberania do Brasil na Amazônia? Mas vamos ao caso em tela, que Olavo não viveu para ver: digamos que os militares tomassem medidas contra o TSE. Alguém acha que os EUA de Biden ficariam ao lado do Brasil, e que não haveria uma reação contra o maior queimador de girafas do mundo?

Hoje o Brasil não tem condições de peitar militarmente os EUA e seus aliados, então teria de partir para a diplomacia. O Brasil se aproximaria de quem? Em sua polêmica com Dugin, vi que Olavo considerava a Rússia um país globalista, um prolongamento da URSS, um mal e algo de que o Brasil não deveria se aproximar. Da China o Brasil tampouco pode se aproximar. Quem ajudaria o Brasil contra os EUA, então? A Índia? Coitados de nós e da Índia.

Com o culturalismo de Olavo, parece que basta o povo tomar consciência, derrubar uma Bastilha e fazer uma revolução. Eis o que ele dizia em 2019: “O mecanismo político mais eficiente e quase infalível já registrado na História – por exemplo, na origem do reino português ou no triunfo de Ivan, o Terrível – é a aliança do governante com a massa popular para esmagar os poderes intermediários corruptos e aproveitadores. Deus queira que o Bolsonaro entenda ser essa a sua grande oportunidade.” Isso se parece com o Capitólio, seja em sua versão original ou tupiniquim. Lembra também Ceresole, mas ele é sensato o bastante para incluir o Exército em sua fórmula Caudillo, Ejército y Pueblo.

Olavo não tem razão neste ponto. Ainda bem que temos os militares como adultos na sala fazendo o que dá: meter-se tanto no governo Bolsonaro quanto no governo Lula. Hora de crescer e parar de difamar essa instituição insubstituível que tanto bem já fez ao país.

Quero terminar este texto dizendo que eu não fiz confusão alguma entre esquerdismo e historicismo. Na verdade, se ele e Olavo tivessem lido Antonio Paim (o orientador de Vélez), saberiam que o introdutor do marxismo no Brasil era um positivista chamado Leônidas de Rezende, segundo o qual Marx e Comte diziam o mesmo e discordavam somente quanto aos métodos. Paim conseguiu que sua obra obscura, por ele desencavada, fosse editada pela Biblioteca do Senado. Leônidas de Rezende também teria sido o responsável por aproximar os militares do comunismo, fato que culminou na Intentona.

Mas, como eu não vivo presa nos anos 70, eu nem precisaria ler Paim para saber que os historicistas se misturam, pois basta tomar conhecimento da trajetória de Prestes e da própria Intentona para ver como as ideologias se confundem.

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