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Ativista pró-vida em frente a uma clínica da Planned Parenthood, em Washington
Ativista pró-vida em frente a uma clínica da Planned Parenthood, em Washington| Foto: EFE/ Lenin Nolly

Como vimos, em Contra Toda Censura, Gustavo Maultasch defende que o estado de coisas vigente nos EUA relativo à liberdade de expressão é a realização de uma lei moral universal e apriorística (ou seja, independente da experiência). Só nos EUA se realizou uma dimensão existencial da humanidade: da Grécia de Sócrates à França de Descartes, da Roma de Cícero à Inglaterra de Newton, do Egito Antigo à China de Confúcio, a humanidade não tinha adquirido uma liberdade fundamental que é seu direito. Afinal, a existência dos EUA é um piscar de olhos na história não só da humanidade, como do próprio Ocidente. Ainda assim, a essa lista de trevas é preciso acrescentar os Estados Unidos de Thomas Jefferson. Pois, como explica Gustavo Maultasch, o estado de coisas nos EUA não é uma pura decorrência da Primeira Emenda, mas sim de uma interpretação particular que só se consolidou no século XX. Interpretação feita em 1919 por um juiz progressista da Suprema Corte, Oliver Wendell Holmes Jr. (1841 – 1935). Foi ele quem decidiu que só se deve limitar a liberdade de expressão em caso de risco iminente, dando como exemplo a proibição de gritar “fogo!” no teatro quando não há incêndio. Nesse caso, uma multidão em pânico causaria mortes com pisoteamento.

“Quem adjudica?”

Uma grande objeção pragmática de Gustavo Maultasch à censura é perguntar: “Quem adjudica?” Antes de proibir um discurso, é preciso decidir que o discurso é ruim. Quem decide? Na minha opinião, o povo, por meio de seus representantes eleitos. Ganhar eleições e passar leis sobre temas sensíveis não é nada fácil, de modo que não há razões para temer um furor censório do Legislativo. Aliás, um dos problemas da democracia apontados por Hayek em O caminho da servidão (1944) é justo sua aparência de lentidão: como o Parlamento sempre gasta muito tempo discutindo e negociando, fica fácil passar a impressão de que um homem forte poderia resolver todos os problemas sozinho – ainda mais numa época como a da II Guerra, em que quase todo letrado era dirigista.

O problema a seguir é, quando se proíbe algo como “discurso de ódio”, saber quem vai decidir o que é odioso. De fato, é um problema real. E, creio, é um problema recente. Porque o Brasil pré-progressismo proíbe uma doutrina particular, a saber, o racismo, que considera que a humanidade se divide em raças e algumas são superiores a outras. A Inquisição, que remonta à Idade Média, não proibia discurso de ódio nem coisas que causam dano, mas sim doutrinas particulares, as heresias. (Inclusive o racismo decorre da heresia do pré-adamitismo, ou, em sua versão leiga, a hipótese da poligenia humana.) Censura subjetivista em tempos de paz, ao menos na história do Direito ocidental, é novidade.

Como Maultasch aponta, outro tipo de demanda por censura apela à noção de dano, que foi muito usada na pandemia. Numa reductio ad absurdum, lista uma série de coisas que causam ou podem causar dano, mas não se pensa em proibir, tais como alpinismo (é perigoso) e refrigerantes (não são saudáveis).

Não obstante, ele ainda assim admite que “mesmo os mais absolutistas dos defensores da Liberdade de Expressão admitem […] que há exceções” (p. 67). Por isso, é forçoso concluir que alguém adjudica. Quem adjudicou, no frigir dos ovos, foi Oliver Wendell Holmes. E a limitação segue o princípio do dano, mas matizado: seria o do dano iminente. No caso de um teatro pegando fogo, o dano é iminente. De todo modo, poderíamos perguntar quem determina se o dano é iminente ou não. Aí a coisa se complica ainda mais, porque uma fundamentação desse raciocínio está em outra decisão, esta do juiz Louis Brandeis (1856 – 1941) em 1927, referindo-se à panfletagem de comunistas: “Se houver tempo para expor, pela discussão, a falsidade e as falácias, para reverter o mal pelo processo de educação, o remédio a ser aplicado é mais discurso, não o silêncio forçado” (p. 75). No caso do teatro, claramente não haveria tempo hábil de impedir o pisoteamento pela palavra. O discurso comunista deveria ser proibido em 1927 porque em 1927 não havia risco de causar dano iminente: os EUA não estavam à beira de uma revolução comunista. Ou ao menos assim adjudicou o juiz Brandeis.

Do princípio do dano ao coitadismo

Dá para brincar muito com esse tipo de proibição. Se os psicólogos sociais creem que a série da Netflix 13 Reasons Why aumentou a taxa de suicídio entre adolescentes, então pode-se dizer que não houve tempo hábil para demovê-los. Como há muito se sabe que o suicídio é um fenômeno social contagioso, os jornais e a TV têm uma série de boas práticas a serem seguidas. Mas não são codificadas como leis, e o mero constrangimento social costuma bastar para que sejam seguidas. Ainda assim, como mostra a Netflix, não são seguidas sempre. Para garantir isso, não basta nem criminalizar, já que a censura viria após o dano causado. Com o princípio do dano, legitimam-se comitês de censura prévia.

Nós vemos, hoje, censura prévia. As editoras já contratam um “leitor sensível” para, dotado de suas credenciais de oprimido, vasculhar obras literárias e ver se sente algum dano causado pelas palavras. Torturando direitinho os números, dá para dizer que morrem “negros” (pretos + pardos) demais, o que é uma prova da opressão sistêmica causada pelo racismo estrutural. O seu livro que usa a palavra “criado mudo” é parte do racismo sistêmico, de modo que precisa ser censurado para impedir o dano causado aos negros.

Já o movimento trans usa direto a cartada do suicídio. Antes do contágio social da disforia de gênero, transexuais já tinham uma alta taxa de suicídio. Como mostrou Abigail Shrier em Irreversible Damage, os profissionais de saúde ativistas usavam essa estatística para chantagear pais dizendo que, caso não aceitassem a mudança de sexo dos filhos, eles provavelmente iriam se matar. Hoje, o próprio Estado já faz esse papel e nem deixa os pais decidirem. (Veja-se artigo da mesma autora nesta Gazeta.)

Quem adjudica o dano imediato?

Dado histórico relevante

A acreditarmos em Maultasch, Oliver Wendell Holmes foi um iluminado cuja decisão coincidiu com uma lei moral absoluta pela primeira vez na história da humanidade. Ele teria passado por um processo de iluminação, pois uma decisão dele anterior era contrária à Liberdade de Expressão quase absoluta defendida por Maultasch. A saber: na mesma ocasião em que criou o exemplo de gritar “fogo” num teatro, “Holmes julgou que os panfletos [comunistas] de Schenk configurariam sim esse perigo; em meio a uma guerra, obstruir esforços de alistamento seria análogo a gritar ‘fogo!’ em um teatro lotado, em sua interpretação.” A decisão é de 1919. No mesmo ano, Holmes, após correspondência com o cientista político Harold Laski (talvez o marxista inglês mais famoso da primeira metade do século XX), dá uma outra decisão liberando a panfletagem socialista e defendendo o caráter experimental da democracia.

Ele simplesmente mudou de ideia? Eu prefiro continuar com a cronologia, e citar o caso mais espúrio da Suprema Corte dos EUA: em 1927, no furor do movimento eugenista, o estado da Virgínia criou uma lei de esterilização e o pessoal do hospital quis esterilizar certa Carrie Buck alegando que ela era débil mental. (No fim das contas, não era; era só uma redneck pobre.) Holmes decidiu que “três gerações de idiotas eram o suficiente” e ela foi esterilizada com base numa lei de vacinação compulsória. A votação foi de 8 a 1 na Suprema Corte. O único dissidente, o juiz Pierce Butler, era um católico.

Recuemos na cronologia. Em 1919 os EUA viviam a Progressive Era. Estavam sob os auspícios do movimento intelectual que implementou o racismo de Estado, a eugenia e o controle de natalidade. (Uma boa obra para se inteirar do período é Liberal Fascism, de Jonah Goldberg. Saiu em português com o título de Fascismo de esquerda e eu comentei nesta Gazeta.)

Em 1919, o presidente era o cientista político Woodrow Wilson. Ele colocara os EUA na I Guerra Mundial após se eleger prometendo não entrar na guerra. Durante a Guerra, criou o primeiro departamento de propaganda estatal, o Committee on Public Information (CPI), que tinha todas as características de um Estado totalitário. O ministro Göbbels é um imitador do ministro Creel. Os nazistas alemães imitaram os progressistas americanos nisso e nos tribunais de esterilização, no mínimo.

Em 1917, a Rússia passou pela Revolução Comunista. A I Guerra acabou em 1918. Embora tenha sido julgado em 1919, o caso Schenk ainda ocorreu em época de guerra, portanto considerava-se que havia “dano iminente”. Em 1919, os réus eram imigrantes russos, comunistas e anarquistas, que publicavam escritos contra a invasão da Rússia pelos EUA – invasão que de fato não ocorreu. Holmes pode perfeitamente ter considerado que esta não era uma opinião danosa.

Como diz Maultasch, a concepção dele de “Liberdade de Expressão” demorou a valer: “Aos poucos, a Suprema Corte foi se distanciando do medo geral do ‘pavor vermelho’, e assim começou a proteger a Liberdade de Expressão mesmo daqueles que defendiam ideologias autoritárias” (p. 76). Na década de 30, estava liberado defender comunismo. A década de 30 é justo a era do rádio nos EUA.

Liberdade instrumental

Vocês podem achar que todo mundo ficou bonzinho e afeito a liberdades. Quanto a mim, noto que o povo perdeu o poder de proibir a divulgação de ideias infames no momento em que a comunicação de massa centralizada se tornou um fato estabelecido. Cada lar passou a ter uma máquina falante. Do outro lado da máquina estava um punhado de gente que tinha posto muito dinheiro naquilo.

Nos anos 40, o aborto era uma ideia infame nos EUA até mesmo para os vanguardistas adeptos da pílula. Outro dia vi um seriado americano de 2017 com uma cena assim: um casal de meia idade e de classe média descobre uma gravidez improvável e discute com naturalidade se vão mesmo ter a criança, por causa dos custos. É evidente que uma mudança de mentalidade foi efetuada. Foi espontânea ou foi fruto de propaganda? Seja como for, o STF de lá já tinha decidido que não se poderia criminalizar a apologia do aborto. Enquanto isso, instituições como a Planned Parenthood seguiam fazendo dinheiro, e os ativistas judiciais, de caneta na mão, se movem no Brasil para passar o infanticídio de fetos de sete meses. Assim como se moveram para descriminalizar o racismo e implementar o racismo de Estado em 2012.

Então ficamos assim: uma meia dúzia de bilionários botam dinheiro em suas ONGs, tais como a Fundação Ford, a Open Society e a Planned Parenthood. Essas ONGs e esses bilionários podem botar propaganda o dia inteiro na nossa cara e nós não podemos fazer nada, porque isso contraria um princípio apriorístico no qual meia dúzia de libertário acredita. Acha ruim? Ganhe bilhões e faça a sua própria ONG!

Isso não é democracia. Isso é o despotismo de um conluio de bilionários com o judiciário que se esconde debaixo das formalidades que as democracias costumavam ter.

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