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A margarina foi inventada em 1869 pelo químico francês Hippolyte Mège-Mouriès a pedido de Napoleão III, que estava às voltas com a escassez de manteiga.
A margarina foi inventada em 1869 pelo químico francês Hippolyte Mège-Mouriès a pedido de Napoleão III, que estava às voltas com a escassez de manteiga.| Foto: Pixabay

Uma coisa à qual pouco se atenta é que as substituições de produtos de origem animal por produtos de origem vegetal estão ligadas à centralização econômica. Vejam por exemplo o caso da manteiga e da margarina. A manteiga, feita de leite, remonta à Antiguidade. Onde houver gado e conhecimento tradicional sobre o preparo, haverá manteiga. Analfabeto faz manteiga. Grotões de baixo IDH produzem manteiga. Não existe um inventor da manteiga e, por conseguinte, tampouco existe uma patente da manteiga.

Já a margarina foi inventada em 1869 pelo químico francês Hippolyte Mège-Mouriès a pedido de Napoleão III, que estava às voltas com a escassez de manteiga. A ideia era abastecer os pobres e os militares. Mège-Mouriès patenteou sua invenção e vendeu-a. Mas a margarina original era feita a partir de sebo. O conceito de margarina, segundo o Houaiss, é “produto alimentício semelhante à manteiga, composto principalmente de óleos vegetais hidrogenados, aos quais se acrescentam vitaminas A e D, sal, agentes emulsificantes etc.” Pela Wikipédia em inglês, temos um conceito mais claro: “consiste na emulsão de água na gordura, com gotículas d’água dispersas de modo uniforme pela fase de gordura em uma forma sólida estável. Enquanto a manteiga é feita concentrando a gordura do leite por meio da agitação, a margarina moderna [sic] é feita por meio de um processamento mais intensivo de óleo vegetal e água.”

Então ficamos assim: a margarina de sebo já era margarina (uma margarina “não-moderna”, embora o século XIX não seja nada arcaico), porque margarina consiste em fazer uma coisa parecida com manteiga usando água em vez de leite. Pegue gordura e água e faça disto algo pastoso para passar no pão: eis a dificuldade que Mège-Mouriès resolveu.

Tirar pasta de planta

A humanidade extrai gordura de planta desde a Antiguidade, também. Vide o azeite de oliva, ou óleo de azeitona. Acontece, porém, que essa gordura era sempre óleo.

(Uma exceção pouco lembrada parece ser a do azeite de dendê, usado em pasta na África e conhecido no Ocidente pelo nome de óleo de palma, palm oil. O dendê menos processado, que se vende na Bahia, é bifásico, com a fase inferior, chamada “bambá”, de consistência pastosa. Nos mercados do Sudeste, só vejo garrafinhas monofásicas que contêm a fase superior da nossa mistura, chamada “flor”. Os baianos agitam a garrafa para misturar as duas fases, a flor e o bambá, antes de cozinhar. Em Portugal, segundo ouvi do meu finado tio que foi chef lá, chama-se de “óleo de palma” uma pasta de dendê. Ouvi o mesmo de um emigrante baiano. Como eu mesma não vi, não posso dizer se a tal pasta é o nosso bambá. Mas fato é que, quando sobra o bambá, ele vira uma pasta presa no fundo da garrafa. Se for uma garrafa de vidro, é preciso esquentá-la para tirar derretido. Se for de plástico, basta cortar a garrafa e usar como se fosse manteiga, raspando colheradas. Se você for um químico e tiver ficado curioso, descubra um mercado do nicho e peça “dendê com bambá”.)

Pois bem: em tese, a humanidade só fazia óleo, e não pasta, com a gordura vegetal. A margarina, tendo criado essa possibilidade fazer pasta de gordura com água, criou, por tabela, a possibilidade de fazer uma pasta de gordura vegetal. Ao que parece, quem começou isso foi Henry Bradley, que, ainda no século XIX, patenteou nos EUA uma margarina feita de um mistureba com a gordura extraída de semente de algodão, sebo e banha de porco. A ideia da margarina dos EUA era similar à da margarina francesa: “Os esforços comerciais para criar substitutos para banha e manteiga se intensificaram no século XIX, quando as populações urbanas crescentes e o maior uso de maquinário que necessita de lubrificação aumentaram a demanda por óleos”, segundo lemos no interessante artigo "The Perfect Solution", de David Schleifer, sobre a ascensão da gordura trans.

Assim, as margarinas são mais ou menos como as salsichas: não dá para saber o que vai nelas. É gordura de alguma coisa misturada com água que, de alguma maneira, foi transformada em pasta. Em 1911, a marca norte-americana Crisco, da P&G, com a ajuda das melhores universidades do país, descobriu que hidrogenar as gorduras vegetais resultava nessa consistência – ao mesmo tempo que resultava numa gordura diferente da saturada, a chamada gordura trans. Por causa da patente, a P&G tentou fingir que a Crisco era inteiramente nova, mesmo sendo só um avanço da hidrogenação de gorduras começada na margarina. Por isso a Superma Corte em 1920 decidiu que a patente não valia nada, e o a tecnologia vegetariana da Crisco se difundiu. As margarinas se transformaram, grosso modo, em pasta de gordura trans.

Campanha pró gordura trans do NIH

O problema apareceu nos EUA e se espalhou para o mundo. Sigo as informações do artigo supracitado.

Na Era Progressista, os cientistas anglófonos da geração de John H. Kellog cismaram que carne era veneno e vegetarianismo era bom. Nos EUA do pós-II Guerra, esse preconceito seguia vivo na comunidade científica. Ao mesmo tempo, a expectativa de vida subiu e a ciência avançava na detecção de problemas cardíacos. Assim, os nutricionistas e reformadores sociais se empenharam em associar consumo de gordura animal a problemas cardíacos. O cientista pioneiro nisso foi Ancel Keys, que assumiu postos importantes na ONU e levou sua agenda à instituição. Hoje se considera que a correlação que ele apontou entre o consumo de gordura animal e ataques cardíacos não poderia ser alçada a causalidade. Ora, à época, a mistura eggs and bacon era muito mais comum. Seria difícil encontrar um americano que não comesse gordura animal e tivesse um infarto – pelo simples motivo de que seria difícil encontrar um americano que não comesse gordura animal, infartando ou não.

O primeiro apoio a Keys no âmbito federal dos EUA se deu em 1977, quando o senador George McGovern fez um relatório planejando que os cidadãos passassem a comer menos ovos, carne e manteiga, e mais gordura vegetal, porque esta tinha menos gordura saturada. Nos anos 80, uma associação dos EUA começou a duvidar da correlação. Vale citarmos o artigo de Schleifer: “Ao prepararem relatórios sobre dieta e saúde em 1980, 1982 e 1985 três comissões da Academia Nacional de Ciências (NAS) debateram a relação incerta entre a gordura da dieta e as doenças cardíacas. Também debateram a própria ideia de dar à população inteira conselhos de dieta. Quando o relatório de 1980 lançou dúvidas sobre a hipótese dos lipídios [de Keys], organização ativista CSPI acusou a NAS de ser influenciada pelas indústrias da carne, do ovo e dos laticínios — uma acusação repetida diariamente em grandes jornais e revistas. [Os ativistas da CPSI] descreviam essas indústrias como ‘o lobby da gordura’ a desafiar programas e políticas feitos para aprimorar a saúde pública. Referia-se à ‘montanha de evidências científicas que condenam a dieta rica em gordura como a maior assassina, uma assassina de muito mais americanos do que as guerras da nossa nação somadas’. O relatório do NAS de 85 sobre dieta e saúde foi descartado antes da publicação. Porém um relatório consensual dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) de 84 já recomendava dietas de baixa gordura, baixa gordura saturada e baixo colesterol para todos os americanos com mais de dois anos, e não só para aqueles com riscos de doenças cardíacas. […] No final dos anos 80, os médicos, nutricionistas, mídia popular sobre saúde, currículos educacionais e livros de culinária eram quase unânimes na promoção de dietas baixas em gordura saturada.”

Daí, tome-lhe gordura trans.

Manteiga não tem lobby

Assim, o consumo de gordura trans foi difundido graças à parcela hegemônica da ciência, impulsionada por uma ONG de direitos dos consumidores (a CPSI) e pelo rufar do bumbo da imprensa. Governo (NIH) e jornalistas fazem propaganda uníssona de que quem é contra as mudanças alimentares, iniciadas desde a tenra infância, deseja a morte de concidadãos.

Cerca de 20 anos depois do furor anti-gordura saturada, quando já estava todo o mundo acostumado a se sentir saudável comendo gordura vegetal hidrogenada (trans), eis que esta passa a ser a nova vilã, e uma ameaça real à saúde. Ainda assim, o suposto “lobby da gordura [animal]” não deu as caras. O máximo que aconteceu foi as marcas de margarina começarem a querer se dizer diferentes das outras. O governo veio então legislar sobre o uso de gordura trans nas margarinas e, se a Wikipédia anglófona estiver correta, as margarinas de última geração, mais naturebas e transfóbicas, são as de óleo de coco e de palm oil, ou seja, o bendito dendê. Será que é só pegar o bambá, salgar e dar um tratamento para mexer no gosto? Seja como for, vemos que os químicos da UFBA tinham uma pasta de gordura vegetal natural diante dos narizes e não aproveitaram.

Mas voltemos à vaca fria: qualquer grotão faz manteiga; qualquer analfabeto faz manteiga. Isso faz da manteiga um produto pouco propenso a gerar monopólios. Já as margarinas precisam de mais capital e tecnologia. Por isso, é de se supor que, mesmo com a derrubada da patente, a fabricação de margarinas ainda tenha sido propícia à formação de oligopólios. Ademais, a campanha contra as carnes gordurosas não se reverteu na adoção de uma dieta mediterrânea à base de peixes frescos. Em vez disso, podemos supor que os ganhadores da cruzada trans foram os fabricantes de comida ultraprocessada, que agora podiam se alegar saudáveis e práticos, ainda que menos gostosos. Súbito tornou-se um dever comer essas coisas livres de gorduras saturadas. (Hoje mesmo, uma porção de alimento ultraprocessado tem rótulos com os dizeres “orgânico”, “fit”, “integral”, que passam uma falsa sensação de saúde.) Quando a campanha contra a gordura trans chegou, já havia tempo para as empresas que fabricam terem se multiplicado pelo mundo.

Há pouco, vimos nas drogas de Alzheimer mais um exemplo como são promíscuas as relações entre as agências públicas dos EUA, as corporações e a ciência. A pandemia deixou muita gente alerta, mas, como mostra a margarina, o problema é velho e tem consequências planetárias.

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