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Nazismo e eugenia contra gays: da promoção à perseguição
| Foto: Wikimedia Commons

Os nazistas tiveram uma obsessão e um ódio constante pela identidade judaica, a qual eles se esforçaram por definir e moldar em termos raciais, antes de atribuí-las às suas vítimas. Nisso, como vimos, têm um ponto em comum com o sionismo, que também foi um movimento obcecado pela determinação de uma identidade judaica, não raro resvalando (como era normal à época) para os termos raciais (vide a importância da raça para o sociólogo Arthur Ruppin, por exemplo, mesmo no pós-guerra).

Outros grupos que terminaram etiquetados e categorizados como odiosos pelos nazistas não foram alvo de um ódio constante. Um exemplo são os eslavos, grande grupo étnico que inclui desde russos, bielorrussos, ucranianos e poloneses, que falam línguas eslavas. No entanto, se o importante for a raça, vale incluir romenos e húngaros, que têm antiquíssimo intercâmbio cultural e “racial”  com os seus vizinhos eslavos. Hitler considerava os eslavos uma raça inferior que tinha que ser reduzida e escravizada. Seu alvo era o maior de todos os países eslavos: a União Soviética. Por isso, quando Hitler invadiu a União Soviética, saiu fazendo limpeza étnica na atual Bielorrússia. No entanto, entre os seus países aliados que enviaram tropas para a Operação Barbarossa,  estavam os “Untermenschen” da Romênia e da Hungria. Além da própria dubiedade pessoal de Hitler, o autor de cabeceira dos nazistas, Moeller van den Bruck, era um admirador dos russos. Em sua obra Das dritte Reich (O Terceiro Império, ou III Reich), ele acreditava que os russos haviam criado o socialismo nacional russo, e cabia aos alemães criar o socialismo nacional alemão, que seria o III Reich.

Outro grupo cuja reputação variou entre os nazistas são os homossexuais. Os franceses nunca deixaram de debochar dos militares nazistas por causa de sua pretérita postura favorável à homossexualidade masculina. O caso mais notório com certeza é o de Ernst Röhm, o líder das SA, um homossexual viril, cheio de cicatrizes de guerra, que comandava uma legião de guerreiros incendiados por Eros. Praticamente uma nova Esparta. Outra presença homossexual importante, porém menos famosa, é a do George-Kreis, ou Círculo George, do poeta Stephan George, simbolista e homossexual. Seu poema principal era sobre o imperador romano Heliogábalo, uma figura agora reivindicada como transexual. Vários literatos nazistas frequentavam o George-Kreis. O círculo acabou, porém, em 1933: no mesmo ano em que Hitler chegou ao poder, Stefan George morreu. Quanto a Röhm, sua posição militar e carismática constituíam uma ameaça a Hitler. Assim, na Noite das Longas Facas (1934), os nazistas eliminaram os SA e criaram as SS, guiadas por Himmler, leal a Hitler.

Teria sido, então, a condenação aos homossexuais apenas instrumental, servindo para os nazistas eliminarem eventuais simpatizantes de Röhm? Não creio. Afinal, o nazismo, com seu ecletismo ideológico, abraçou com força a eugenia. Os grupos liderados por homossexuais eram nacionalistas românticos e não tinham nada a ver com as pretensões científicas do movimento eugenista, que lastreia o nacionalismo na superioridade racial e se dedica a aumentá-la cada vez mais. O nazismo juntou homens de letras românticos e médicos eugenistas. Os segundos prevaleceram.

Nos dias de hoje, tenta-se criar uma oposição entre a Ciência e o obscurantismo no III Reich que não corresponde à verdade. Veja-se o caso do sexólogo Magnus Hirschfeld, diretor do Institut für Sexualwissenschaft (algo como “Instituto de Ciência Sexual” ou “Instituto de Sexologia”) em Berlim. A versão dourada da história de Hirschfeld é que ele abriu a primeira clínica de gênero em Berlim, mas, sendo um cientista gay e judeu, foi perseguido pelos nazistas, que invadiram o Instituto e queimaram os seus livros. Mesmo assim, o Instituto fora capaz de realizar uma mudança de sexo, a de Lili Elbe, em cuja história se baseia o filme A Garota Dinamarquesa (2015). Tudo preto no branco, bem contra o mal, luz da ciência tolerante contra trevas do obscurantismo preconceituoso.

Mas não foi bem assim. Como muitos médicos do período, Hirschfeld era um eugenista empenhado em melhorar a raça; e, como um homem do seu tempo, via a homossexualidade como algo ruim. Leiamos um longo trecho do artigo “O legado sombrio de Magnus Hirschfeld”, do ativista gay veterano Fred Sargeant, que vale a pena: “O livro de Hirschfeld de 1908, Da Sexologia,  defende que se evite o casamento com ‘tipos indesejáveis’, desde os deficientes até aqueles com criminosos na família. ‘As pessoas fogem de casar com um anão defeituoso, ou com alguém cujo pai esteja numa penitenciária ou num hospício’, escreveu, ‘e com razão, porque só se casarmos os mais saudáveis, os mais formosos, os mais inteligentes e os de melhores modos, ajudaremos a enobrecer a raça’.

“Com essas ideias em mente, ele ajudou a fundar a Sociedade Médica para a Sexologia e Eugenia (Ärztliche Gesellschaft für Sexualwissenschaft und Eugenik) em 1913. Lá, pesquisou ‘sinais de degeneração’, tais como assimetria facial, com o interesse de ‘criar’ (‘breeding’) uma raça superior.

“Em 1919, ele abriu o Instituto de Ciência Sexual (Institut für Sexualwissenschaft) em Berlim. Foi lá que ele pôs suas teorias e princípios eugênicos em funcionamento. Encorajou a esterilização e castração voluntárias, particularmente para homens gays. E estava aberto às esterilizações forçadas dos ‘débeis mentais’ e hiper-sexuais, bem como deficientes.

“Hoje, é claro, esse lado sombrio do Instituto de Ciência Sexual de Hirschfeld está previsivelmente apagado. A instituição é elogiada por fazer ‘as primeiras cirurgias de afirmação de gênero modernas no mundo’. Hirschfeld defendeu muito que a homossexualidade indicava a existência de um terceiro sexo intermediário, entre homens e mulheres – que alguns homossexuais, tal como Hirschfeld entendia, poderiam ter ‘uma alma de mulher presa no corpo de um homem’.”

Aí está, pois, a raiz mais antiga da ideologia de gênero. Isso é anterior a John Money e a Judith Butler.

Mas a história ainda fica mais sinistra. Com o nazismo, Magnus Hirschfeld tem que sair da Alemanha e ganha o mundo. O segundo nome mais importante da clínica na certa é o do cirurgião que fez as primeiras operações de mudança de sexo: Erwin Gohrbandt. Foi ele o cirurgião da famosa Lili Elbe (e da pioneira Dora Richter). No entanto, ele é mais conhecido por ser um nazista criminoso de guerra que fez experimentação em humanos no campo de concentração de Dachau.

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