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O presidente dos EUA, Joe Biden, discursa durante um evento pós-eleitoral do partido Democrata no Howard Theatre em Washington, DC, EUA, 10 de novembro de 2022.
O presidente dos EUA, Joe Biden, discursa durante um evento pós-eleitoral do partido Democrata no Howard Theatre em Washington, DC, EUA, 10 de novembro de 2022.| Foto: EFE/EPA/SHAWN THEW

Era dada como certa uma onda vermelha, ou seja, republicana, no legislativo dos EUA. Primeiro a onda dava indícios de ser marolinha, depois descobriu-se que o Senado preservou a maioria democrata. As acusações de fraude se repetiram este ano, mas com menos vigor do que na eleição pandêmica quando o voto pelo correio foi normalizado.

Em que se baseavam as pretensões de crescimento dos Republicanos? Creio eu que na inflação galopante de Biden. Afinal, crise econômica deixa o eleitor irritado; e se o brasileiro já ficou cabreiro com a inflação de Bolsonaro, que dirá o norte-americano com Biden. Lá e cá, são dois países continentais que comparam a inflação atual à pretérita, sem interessar muito o cenário mundial. Mas por isso mesmo a inflação lá deveria ser muito mais sentida do que cá, haja vista o calejamento do brasileiro com o histórico inflacionário. Para piorar, nos EUA há uma coesão partidária muito maior que no Brasil. Assim, é muito mais natural um candidato Democrata ao parlamento ser atrelado aos fracassos de Biden do que um candidato brasileiro ao parlamento ser ligado à inflação ocorrida no governo Bolsonaro. Para começo de conversa, aqui nem há bipartidarismo, de modo que sequer há clareza quanto a quem seria “o candidato de Bolsonaro”. A depender da popularidade do capitão no estado em que há a disputa, esse rótulo é disputado a tapa ou então usado como acusação pelos opositores.

Para piorar, a inflação nos EUA, ao contrário da brasileira, tem causas bastante fáceis de encontrar no próprio governo. Lá e cá houve o fechamento que obrigou à distribuição de auxílios, mas cá o fechamento foi obra do STF em conluio com a imprensa e os governadores, ao passo que lá foi obra da Casa Branca. Além disso, lá houve medidas proativas, da parte do governo, a implicar o aumento do custo de vida. Tenho em mente os obstáculos à exploração de petróleo e a pauta generalista do New Deal Verde, que encarece a energia. Não menos importante, há ainda as despesas colossais com a guerra na Ucrânia, e isso logo após a desastrada debandada do Afeganistão.

Creio que o materialismo não deve servir para explicar o voto nos EUA. O país vai se empobrecer e empobrece por causa de políticas sabidamente tocadas pelo governo Biden. Ainda assim, o povo vota nos Democratas.

Ideologia lá e cá

Os Democratas divulgam propaganda ideológica do partido — diferentemente daqui, onde as propagandas costumam ser vinculadas a candidatos em vez de promoverem simplesmente o partido. Na última eleição, eles divulgaram um vídeo intitulado “The Stakes of the 2022 Midterm Elections”, algo como “O que está em xeque nas eleições de meio mandato de 2022”. Abre com a simpaticíssima (ou não) Kamala Harris alardeando: “As ameaças que enfrentamos enquanto nação são grandes.” Em seguida, aparecem as ameaças: invasão do Capitólio, perda de liberdade (sobe uma placa escrito “larguem os nossos corpos” e entra a notícia de que um Republicano tentou passar uma proibição federal do aborto). Volta Kamala a falar: “Ameaças à nossa democracia em si mesma. E precisamos falar a verdade sobre isso. Imaginem se perdêssemos a nossa maioria Democrata no Parlamento. Os líderes Republicanos deixaram claro: eles querem banir o aborto por toda a nação. E eles não vão parar por aí: o casamento igualitário [i. e., casamento gay] estará em risco. A contracepção estará em risco. Sem uma maioria Democrata no parlamento, quem sabe que direito eles vão perseguir depois?” Entra um letreiro com sugestões: “Cortar o seguro social [algo como um Bolsa Família deles]. Aumentar os preços de remédios com tarja. Banimento nacional do aborto. A escolha é sua.” Volta Kamala: “Este é um momento crucial na história da nossa nação. Esta eleição é como nos levantamos para alcançá-la.”

Ou seja: a propaganda institucional da esquerda norte-americana não tem nada a ver com o aumento do custo de vida, nem mesmo com igualdade social. É abertamente voltada para mulheres que fazem aborto e vivem à base de remédios psiquiátricos. O que tem a lhes oferecer é aborto e remédio. Quanto ao ideal de igualdade, tão caro aos americanos observados por Tocqueville no século XIX, aqui ele aparece reduzido a uma alteração na concepção de casamento.

Como seria um equivalente disso no Brasil? Tiram Lula. Uma figura feminina muito confusa, trazida artificialmente dos bastidores burocráticos para o centro da política — Dilma, por exemplo — discursa contra a oposição — os bolsonaristas, digamos — alegando que, se os petistas não tomarem Câmara e Senado, as mulheres não vão poder abortar à vontade, os gays não vão poder casar no papel e os remédios com tarja ficarão mais caros.

O PT só faria uma propaganda dessa se fosse suicida. Por aqui, em eleição comunista vai à missa, diz que acredita em Deus e é contra o aborto. Os lacradores são varridos para debaixo do tapete e em geral preferem o PSOL, cujo eleitorado está concentrado nas áreas nobres dos grandes centros urbanos — sem a menor chance de atingir o sertanejo analfabeto do Piauí.

Muito dinheiro, pouco juízo

Em tempos de preguiça analítica e transposição de roteiros norte-americanos para o Brasil (com um monte de abestalhado falando em versão tupiniquim do ataque ao Capitólio, como se as manifestações não fossem uma constante no Brasil desde 2013 e não estivessem volumosas demais até para caber dentro do Congresso), não custa apontar para diferença entre o discurso público do maior partido de esquerda brasileiro e o partido de esquerda dos EUA.

Não importa que o PT esteja repleto de lacradores; quando quiser ganhar eleições majoritárias, vai escondê-los. Da lacração, o maior tabu eleitoral de todos é o aborto. Já os Democratas, por outro lado, usaram uma comoção real causada pela reversão de Roe v. Wade para fazer uma campanha nacional lacradora centrada na liberação do aborto. Há inflação galopante como nenhum norte-americano viu em vida, mas os governistas fizeram uma eleição falando de aborto e levaram.

As diferenças internas do PT talvez sirvam para lançar alguma luz a essa diferença internacional das duas esquerdas. Em São Paulo, o PT sempre teve uma ala lacradora forte — vide Marta Suplicy, sexóloga eleita prefeita em 2000, e Haddad, o prefeito doutor pela FFLCH/USP que pagava a cracudos para varrerem o chão e defendia a política de “redução de danos”. Já na Bahia, o deputado petista Bassuma foi expulso do partido por propor o Estatuto do Nascituro. E quanto às drogas, a retórica dos governadores petistas baianos é totalmente pró polícia e contra bandido. Inclusive financia a Fundação Doutor Jesus, cujo fundador exibe orgulhoso à Piauí o pau que usa pra bater nos cracudos. O fundador é adorado e chegou a ser o deputado mais votado da Bahia.

Digamos assim: populações mais pobres, menos escolarizadas e, sobretudo, menos urbanizadas, tendem a rejeitar mais a lacração. Mas isso não basta para explicar, já que, como vimos com Gertrude Himmelfarb, essa moral hedonista propagandeada pela lacração também atinge — e de maneira mais custosa — os mais pobres.

No Brasil, é importante anotar que o principal partido de esquerda surgiu de uma cruza de padres hereges com sociólogos uspianos. A Igreja virou esquerdista, o Nordeste permaneceu católico e virou eleitor do PT. Já os nordestinos que migraram para as favelas do Sudeste sentiram na pele o descaso da Igreja com a moralidade e viraram evangélicos, junto com os pobres de lá, e criaram como evangélicos os filhos que tiveram lá. Essa visão cultural ajuda a explicar por que a madame progressista dos Jardins e o lavrador católico do interior do Piauí votam igual. O voto é igual, mas eles são muito diferentes.

Os apontamentos de um nativo

Como não me meto a conhecedora da cultura dos EUA, acompanhei a explicação do nativo Matt Walsh para a votação de lá, dada em seu programa pós-eleições. Matt Walsh mora no Tennessee, é católico praticante, critica a ideologia de gênero (fez o documentário “O que é uma mulher?”) e tem tido êxito em organizar protestos de conservadores contra a mudança de “gênero” em crianças. A meta do movimento é proibir que a “terapia afirmativa de gênero” seja aplicada a menores. Essa terapia consiste em confirmar as suspeitas do paciente de que ele não é do próprio sexo e deve ganhar um novo nome, roupas, tomar bloqueadores hormonais, depois hormônios do sexo oposto e em seguida fazer cirurgias tais como histerectomia ou mastectomia.

Para ele, a vitória dos Democratas é sintoma de uma grave crise moral no país. Dado o objeto do ativismo dele, não me parece uma hipótese ousada. Uma pista interessante é dada ao apontar para a Flórida, que deixou de ser swing state (que oscila entre Democrata e Republicano) e virou red state (Republicano). Segundo ele, a guinada da Flórida reflete a população latina do local, que valoriza a família e tem uma coisa que os gringos chamam de “lares inter-geracionais”. Simples: mais de uma geração mora junto. Aqui isso é tão comum que não damos nome a isso. Que eu me lembre, a palavra pareceu no noticiário para explicar por que os velhos italianos morriam mais que os alemães. A razão seriam os “lares inter-geracionais”, comuns no país latino.

É interessante a guinada apontada na Flórida. Os Democratas já foram um partido mais diverso e hoje são lacradores que querem fazer guerras pelo mundo, como denunciou Tulsi Gabbard ao abandonar o partido. Assim, faz sentido que a onipresença da lacração no Partido Democrata tenha sido a razão de a Flórida se tornar Republicana. Essa mudança se fez sentir para esse estado com muita influência cultural latina.

Matt Walsh aponta algumas questões interessantes, como a crise de saúde mental e o investimento que os Democratas fazem no medo. Não à tua, uma das coisas apontadas por ele é que a Geração Z votou em peso nos Democratas. Segundo um estudo dos EUA, é uma faixa etária com 42% de doentes mentais.

Lacração é atomização

O que a lacração promove é a atomização do homem. As pessoas não devem mais ter cônjuge e filhos; devem se libertar do casamento, abortar e viver para o trabalho. As pessoas não devem mais contar com a ajuda dos familiares ou com a caridade de alguma instituição; devem receber um auxílio anônimo e compulsório do Estado, que lhes permite dar as costas para a família.

Esse projeto de atomização se dá em oposição à família e às comunidades religiosas. Ambas começaram a ser substituídas com a educação infantil compulsória e laica.

Por aqui, somos atrasados e o “ensino integral” é raro a ponto de precisar um nome. Mas nos países ricos é normal as crianças passarem o dia na escola, sendo educadas por pessoas cujos valores diferem dos seus pais. Nos EUA, é comum os filhos saírem do lar dos pais de vez ao cursarem uma faculdade, e aí viram internos. Se os pais brasileiros ficam aflitos com os filhos que vão para a federal estudar às vezes só num turno, imaginem nos EUA, onde os alunos passam anos imersos nesse ambiente, afastados dos pais.

Outra questão que deve deixar o brasileiro de cabelo em pé é o ensino de ideologia de gênero para crianças pequenas — coisa que a Flórida pelejou para proibir. A doutrinação progressista deve ser muito pesada nos EUA: vai desde a pré-escola até a faculdade, e está por toda a cultura pop. Assim, essa agenda de atomização da sociedade deve vir tendo cada vez mais êxito em gerações cada vez mais novas, além de ir investindo na crise de saúde mental, crescente desde a pandemia.

No fim das contas, para um país democrático aderir a uma ideologia tão maluca e destrutiva, sem estelionato eleitoral, só pode haver uma doutrinação poderosa, digna de Estados totalitários.

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