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Sob os olhares de D. Pedro, do branco, do índio e da negra, Bonifácio segura a bandeira da nova pátria.
Sob os olhares de D. Pedro, do branco, do índio e da negra, Bonifácio segura a bandeira da nova pátria.| Foto: Eduardo de Sá/Domínio público.

Faz uns anos que me intriga o fato de que Chantal Mouffe, uma intelectual francesa feminista identitária de esquerda, era esposa e parceira intelectual de Ernesto Laclau, um intelectual argentino, se bem entendi, peronista e populista de direita. Ambos são, juntos, autores de Hegemonia e estratégia socialista, que juntou teias de aranhas no meu carrinho de compras virtual até eu finalmente tomar vergonha e encomendá-lo agora. Mas vou dizer por que achei estranho: a esquerda feminista e os populismos (de esquerda ou direita) costumam ser opostos. A ideologia dominante no Ocidente liberal casa três grupos identitários: as feministas, a turma da sopa de letras e as “minorias raciais”. Por outro lado, o populismo argentino, pelo menos desde os tempos de Perón, tem relações com o nazifascismo. E desde Hugo Chávez a Venezuela se filiou a essa corrente ideológica ao adotar o neonazista argentino Norberto Ceresole como ideólogo oficial. Após a morte de Ceresole, a tocha passou para o alemão residente no México Heinz Dieterich, que, até onde eu sei, cunhou a expressão “socialismo do século XXI” para designar o regime venezuelano.

Quem deu uma luz nessa confusão – e usando justamente a obra de Laclau e Mouffe – foi Jeudiel Martínez, sociólogo da Universidade Central da Venezuela, no artigo “Para dar um fim ao juízo militante: fronteira, purificação e censura nas guerras culturais”, publicado na coletânea A crise da política identitária (Topbooks, 2022). De lá da Venezuela chavista, o sociólogo, muito bem inteirado dessas confusões entre “extrema esquerda”, “extrema direita” e woke, investiga as causas psicossociais da cultura de cancelamento e trata por conspiratórias as explicações que se valem das ONGs. (Na mesma coletânea, porém, os artigos de Demétrio Magnoli denunciam a atuação das ONGs para além de qualquer dúvida.) Para Martínez, “o que trouxe à guerra fria entre os Estados Unidos e a extinta URSS, não foi só um alcance totalmente planetário da polarização e do dualismo, mas toda uma ‘computação’ ou ‘informática’ do ressentimento que procura definir o que se tornou cada vez mais difícil determinar: quem é o inimigo? Capitalismo, imperialismo, comunismo, populismo – e, sobretudo, esquerda e direita viraram caixas vazias onde cabia qualquer coisa, o lar do inimigo qualquer. Em El Salvador, os sacerdotes que trabalhavam com os pobres ou criticavam o militarismo eram chamados de comunistas; em Cuba, o homossexual e até o jovem que usava cabelo longo era um contrarrevolucionário.” Com a Guerra Fria, politizava-se cada aspecto da vida alheia com o fito de desmascarar (do lado capitalista) o comunismo ou (do lado comunista) o contrarrevolucionário.

A URSS caiu, mas essa “informática” ficou e teria passado a operar dentro das sociedades. “A política da identidade, tal como existe hoje, parece o resultado dessa flexibilização da ‘guerra fria’ macroscópica, numa proliferação de ‘guerras frias’ microscópicas, espalhadas pelo mundo em meio à incerteza sobre a realidade de amigos e inimigos.” É como se vivêssemos num eterno macartismo, ainda que sem ideologia definida.

Mas vamos à sua análise de Laclau: “ ‘O acima é como no abaixo’, diz a Bíblia, e, no caso das políticas identitárias, acontece que ‘O macro é como no micro’; isto é, o mesmo método, com variantes, é aplicado para construir as identidades sintéticas do populismo e para definir as inumeráveis identidades fractais das políticas woke. O teórico argentino Ernesto Laclau definiu o método do identitário no nível macropolítico, enquanto Judith Butler, a teórica feminista dos Estados Unidos, fez o mesmo no micro. Laclau […], ao formalizar e abstrair os procedimentos do caudilhismo peronista num método (o populismo), entendeu perfeitamente como uma formação política (partido, bando, aliança) ‘só consegue significar-se […] - isto é, constituir-se como tal – transformando limites em fronteiras’ ”. Para Laclau, explica o venezuelano, o “significante vazio (o símbolo ao redor do qual demandas distintas são agrupadas) podia ser qualquer slogan, bandeira ou projeto que permitisse passar das identidades às ‘equivalências’.” É possível pegar qualquer coisa e transformar numa bandeira identitária: desde uma grande nacionalidade até a condição de gordo, autista etc.

E eis a sacada de Martínez: o culto ao líder, típico de movimentos totalitários, foi miniaturizado pelo identitarismo woke. Em vez de uma nação cultuar um líder máximo que seja considerado a encarnação do povo, bandos de indivíduos cultuam identidades oprimidas que são muito, mas muito menores que um país. Nas palavras dele: “A máquina pode funcionar nos dois sentidos: como operação populista, sintética, para criar um povo, e a operação woke, analítica, da reinvenção moral. (Mulheres, mulheres negras, mulheres negras da favela, mulheres negras lésbicas da favela, mulheres negras lésbicas nordestinas da favela...) […] No primeiro caso, trata-se de fundir todas as identidades boas numa grande síntese; portanto, o populismo é uma forma de criar o Estado, poder estatal. No segundo caso, as identidades boas são multiplicadas, e se trata de fragmentá-las e regular suas relações.”

Está clarificada, então, a ambiguidade do movimento negro. Sua liderança máxima no Brasil, Abdias do Nascimento, começou no integralismo e defendendo Vargas. Parte dos integralistas negros admirava Hitler como um defensor da raça e criou um revisionismo histórico com a figura de Zumbi para fazer dele um Führer de ébano. Por outro lado, o mesmo Abdias do Nascimento foi adotado pelas ONGs como ideólogo oficial de questões do negro no Brasil, e passou a ser usado para denunciar o nosso país como genocida. Ora, o mesmo mecanismo que serve, no modo “sintético” para fundir as pessoas numa nação, serve, no modo “analítico”, para esmigalhar uma nação. Na África do Sul, um país de maioria negra, é possível cultuar o orgulho racial para criar um Estado nacional étnico e matar os brancos (os brancos e, se bobear, mais outras minorias étnicas, já que na África tem muita tribo e os bôeres são mais uma). Por outro lado, no Brasil, o movimento negro é usado para corroer a nacionalidade. Uma figura agregadora como Pelé é maltratada pelos militantes do movimento negro brasileiro porque a sua finalidade é acabar com a ideia de Brasil. Já os antipáticos do movimento negro, que querem se vender como arquétipos do Negro, contribuem para criar animosidade contra negros.

Por aí entendemos também por que o feminismo e a sopa de letras estão sempre do lado da lacração, em vez do lado do caudilhismo: é possível fazer uma nação só com uma raça (matando ou expulsando a minoria), mas não é possível fazer uma nação só de mulheres, ou só de sopa de letras. Por isso o globalismo gosta tanto desse pessoal: esmigalham as grandes nações. E para esmigalhar as grandes, podem também fomentar pequenos nacionalismos, que é o que fazem as ONGs em áreas indígenas.

Uma coisa que não fica muito clara no texto de Jeudiel Martínez é a validade do Estado-nação. Ele pode ser uma coisa patológica, como na Alemanha Nazista, ou pode ser uma coisa perfeitamente saudável e necessária, como no Brasil do começo deste século. Acho que um bom jeito de determinar se uma identidade compartilhada é saudável é saber se ela engole a personalidade de um indivíduo inteira, ou não. Os membros dos grupos identitários são todos iguais; os militantes nazistas eram todos iguais; os brasileiros patrióticos são muito diferentes uns dos outros em matéria de gosto, política e filosofia.

Concordo com ele quanto a “esquerda” e “direita” serem duas caixas vazias nas quais se coloca o que quiser. Lula e seu séquito fizeram o possível e o imaginável para demonizar eleitores de Bolsonaro e vilipendiar toda a região Sul (região de Gleisi Hoffmann, Janja e João Stédile, aliás). A guerra racial não colou, mas Bolsonaro e seu séquito fazem agora o possível e o imaginável para demonizar eleitores de Lula e apartar do Brasil toda a região Nordeste (mesmo que Bolsonaro tenha ganhado em Maceió e perdido na cidade de São Paulo). A cegueira é tamanha, que quando critico o bolsonarismo neste jornal ou em redes sociais, não falta quem xingue o meu estado ou infira que votei em Lula pelo mero fato de ser baiana. Essas pessoas devem achar que, se forem ao semiárido nordestino, vão encontrar um monte de vaqueiro de cabelo rosa. São desconectadas da realidade.

O ex-presidente Bolsonaro, que voluntariamente passou de líder de massas a líder de seita, usou o seu Twitter esta semana para divulgar um youtuber aparentemente adolescente como prova de que os comunistas querem acabar com a liberdade de expressão no país. Do Partido da Causa Operária, que foi incluído no Inquérito das Fake News, que defendeu Monark publicamente mais de uma vez, e que aponta o absurdo da perseguição aos bolsonaristas ele não fala. Ele se esforça para que os seus liderados dividam o Brasil em esquerda-má e direita-boa.

Tal como o anarcocapitalismo (criticado no último artigo), a desintegração nacional é ambidestra. Larguem as redes sociais um pouco e vão socializar com os seus vizinhos e compatriotas que pensam diferente.

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