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Percussionista toca atabaque no Pelourinho, em Salvador
Percussionista toca atabaque no Pelourinho, em Salvador| Foto: Bigstock

O jargão acadêmico inventou o “racismo religioso” e, mais recentemente, o “racismo ambiental”. É muito simples: toda vez que algo de ruim supostamente acontece com um negro, ou com algo que remeta à África, no âmbito religioso ou ambiental, a culpa é do racismo. Choveu muito, houve desabamento de encostas e morreu muita gente? Racismo ambiental. Todas as pessoas que estavam lá eram pobres, portanto eram negras, portanto foi racismo ambiental. E como vivemos numa sociedade patriarcal e machista, o desabamento com certeza atingiu mais as mulheres negras do que os homens negros. Foram-se os tempos em que os governantes eram culpados pelo desabamento de encostas e pela mortes previsíveis que dele decorressem. Agora é assim: racismo ambiental. É normal; afinal, vivemos numa sociedade estruturalmente racista. Só depois de liberarmos um cabide de empregos (seja no Estado ou em ONGs) para desconstrutores de racismo profissionais é que poderemos esperar uma solução para problemas urbanísticos. Bonito, não?

A bola da vez é o racismo religioso, porque em Salvador queimaram uma estátua da Yalorixá Stella de Oxóssi. É o de sempre: crente com medo de feitiço. Mas os analistas-militantes de plantão já dizem que é racismo religioso. Nisto, há três manobras: a primeira é atrelar religião a raça. O “povo de santo” (ou “os praticantes de candomblé”) não é todo composto por negros; os negros não são todos de santo; os crentes são com muita frequência negros e mulatos – ainda mais em Salvador, uma cidade de muita herança genética africana na qual ser crente ainda costuma ser visto como coisa de pobre. A segunda manobra é varrer para debaixo do tapete a liberdade religiosa. Em vez de assegurar a liberdade de culto – o que inclui os crentes –, fala-se em combate ao “racismo religioso”. O que, é claro, pode ser feito por meio da criminalização dos evangélicos.

A religiosidade brasileira não é racionalista

Para criminalizar os evangélicos, é necessária uma terceira manobra: a de pintar as religiões do Brasil como racionalistas – e o racionalismo aplicado às questões de fé leva ao sectarismo mais intolerante. Hoje isso é visível com os neoateus, que têm certeza absoluta de estarem com a razão pelo mero fato de não acreditarem em Deus. Como, ao seu ver, todo homem tem a obrigação de usar a razão para pensar em teologia, e a Razão é uma só, então todos os homens que não chegam à mesma conclusão que eles são burros e idiotas. Ao menos os neoateus não idolatram entidade nenhuma, de modo que são apenas chatos. No entanto, a ideia de que cada homem deve usar da Razão para apreender as coisas da fé surgiu na Reforma Protestante. Os protestantes, em vez do mero pedantismo dos neoateus, tinham um Deus a servir e hereges a combater. Os católicos, idem. Assim, a Europa viu sucessivos banhos de sangue entre católicos e protestantes após a Reforma.

Embora o católico médio não se sinta obrigado a estudar teologia e se conforme em seguir a autoridade, a teologia católica existe e é capaz de ser defendida racionalmente. Teólogos católicos e teólogos protestantes existem. A briga entre católicos e protestantes existia também. Ao cabo, era viável explicar a guerra por meio da intolerância religiosa, que é uma consequência do racionalismo. Era viável, mas insuficiente, já que mil problemas de ordem política surgiram, sendo provavelmente a Inglaterra o país com maior peso secular nas diferenças religiosas. (Começou com Henrique VIII virando protestante para poder se divorciar, continuou quente com o jacobitismo, quando o herdeiro se converteu ao catolicismo e foi excluído da sucessão.)

O Brasil é herdeiro de Portugal, país que passou incólume pela Reforma e ainda sediou a Contrarreforma. Muitos dos alvos do protestantismo eram as manifestações sincréticas da fé. O paganismo foi deglutido por um catolicismo sincrético na Idade Média; os protestantes saíram purgando tudo. (O exemplo mais famoso talvez seja o São João, mantido pelos católicos e aniquilado pelos protestantes por ser uma cristianização do Midsommer.)

Assim, a terceira manobra é colocar a oposição entre crentes e macumbeiros nos moldes da briga moderna entre católicos e protestantes.

Uma olhadela à volta

Em minha fase metropolitana, eu me sentia propensa a crer na narrativa de que evangélicos ignorantes odeiam adeptos do candomblé porque são intolerantes. A própria narrativa é fomentada por algumas lideranças evangélicas. Em Salvador, houve uma época em que políticos evangélicos queriam tirar os orixás do Dique do Tororó, que têm valor artístico e religioso (de fato, a água doce com estátuas de orixás logo atraiu oferendas para Oxum, orixá da água doce). O resultado foi a criação de uma Praça da Bíblia, conseguida pelo Pastor Sargento Isidório, da base do PT. A escultura é feia; se tem valor religioso, não sei. Mas não ficaria surpresa se aparecesse macumba gospel, porque sincretismo é o forte do pessoal.

No entanto, bastou uma única ida ao interior para constatar que a história estava mal contada. Da janelinha do ônibus, passando por Santo Amaro, dava para ver trocentas igrejas evangélicas… até que aparecia uma casa branca com um letreiro Ilê Axé Oju Onirê. “Ilê axé” é casa espiritual, terreiro de candomblé. O resto eu não sei o que significa, mas o desenho de um arco com a flecha voltada para cima, faz referência a Oxóssi, o orixá caçador que nem é mais cultuado na África. Os terreiros costumam ser discretos e ficar em locais escondidos. Esse não só estava às claras, como ainda junto de uma porção de igreja evangélica. Ora, se fosse verdade que crentes e macumbeiros são intolerantes, como explicar tal coisa?

Penso que a diferença mais evidente na querela dos crentes com os macumbeiros seja o medo do feitiço. Em Salvador, volta e meia enchiam a Pedra de Xangô de sal grosso. Sal grosso, no candomblé, tem poderes profiláticos. Ou seja: o crente usa uma magia do candomblé contra o candomblé. Sinal de que ele ataca o candomblé porque acredita no poder do candomblé. É uma situação totalmente diferente da briga entre católicos e protestantes. Os europeus modernos brigavam por acreditarem em coisas diferentes. Os brasileiros brigam porque acreditam em coisas iguais.

No fim das contas, vemos que os barracos entre crentes e macumbeiros eclodem nas metrópoles. A metrópole é o lugar do anonimato. Em cidades pequenas, todo o mundo se conhece. Quem se desgosta, se desgosta; quem se gosta, se gosta. Se um crente gosta de um macumbeiro, não tem por que temê-lo, pois sabe que não dirigirá nenhum feitiço contra si.

No interior é tudo misturado. Uma mesma família tem crente e tem macumbeiro sem que haja brigas por isso. O que não pode é encomendar “trabalhos” contra os outros. Já na capital, o crente não conhece a horda de macumbeiros, de modo que todo macumbeiro é um potencial perpetrador de feitiços.

Uma olhadela no passado

Crer em feitiços não é nenhuma peculiaridade africana; nem mesmo fazer despachos é. Veja-se que o povo de santo tem o costume de pôr seus ebós em encruzilhadas. A África, com suas cidades nômades, não tinha ruas, portanto não tinha esquinas. Já na Roma antiga, ainda antes da República, o Rei Sérvio instituiu que toda encruzilhada seria o altar dos plebeus. Os patrícios tinham seus altares privados, onde faziam oferendas, e a plebe não tinha nada antes dessa inovação de Sérvio. Surge aí, e não na África, a prática de pôr oferenda em encruzilhada. A própria noção de panteão, implicada pelo candomblé, é estranha à África. Cada cidade cultuava um orixá diferente. No Brasil, os negros passaram a cultuar vários “santos” (com aspas) do mesmo jeito que os cristãos cultuavam vários santos (sem aspas).

Os romanos antigos fundiam divindades de povos distintos: Afrodite virava Vênus, Ares virava Marte etc. Quando se cristianizaram, passaram a fundir deuses pagãos e santos: Santo Antônio virou o santo guerreiro que tinha até soldo no Brasil colônia, embora o próprio santo, em vida, nada mais fosse que um monge asceta. Depois, com a vinda dos africanos, os orixás se fundiram com os santos. Santo Antônio “é” Ogum, o guerreiro; São Lázaro, o leproso, “é” Omolu, bexiguento. Cada qual se especializa em atender um tipo de prece. E a crença nos orixás, tal como a crença nos santos, é complementar à crença em Deus. Daí o povo de santo fazer, na Bahia tradicional, uma procissão macumbeira até a escadaria da Igreja, entrar e assistir à missa.

A crença em feitiço se manteve até entre protestantes modernos, como mostra o caso das bruxas de Salém, ocorrido numa colônia inglesa da América. Ou seja: católicos e protestantes modernos executaram bruxas e acreditavam em bruxas. Tanto acreditavam, que as Ordenações do Reino (a legislação de Portugal da época das colônias) punia crime de feitiçaria.

Crentes fazem magia branca

Já os católicos medievais queimavam herege; não eram dados a queimar bruxas, porque a elite intelectual não costumava acreditar em bruxaria. Que a bruxa fosse à missa, se confessasse, e estava tudo certo – assim como os macumbeiros da Bahia tradicional, que costumavam frequentar tanto a missa quanto o terreiro.

Lendo sobre a Idade Média, conseguimos encontrar o crente brasileiro. Digam se não: “nesse mundo crepuscular, era inevitável que tanto o asceta quanto o santo cristão adquirissem algumas das características dos feiticeiros e das deidades pagãs: o prestígio deles dependia de seu poder de operar milagres e os homens seguiam sua decisão da mesma forma que haviam recorrido aos locais sagrados e aos oráculos pagãos. No entanto, foi apenas nesse mundo de mitologia cristã – no culto aos santos e às relíquias e os milagres associados a ambos – que a transfusão vital da ética e da fé cristãs com a tradição desses novos povos bárbaros do Ocidente pôde ser alcançada. […] Os bárbaros podiam compreender e aceitar o espírito da nova religião apenas quando ela se manifestava visivelmente a eles, na vida e nos atos de homens que pareciam dotados de qualidades sobrenaturais.” (Christopher Dawson, Criação do Ocidente, p. 60-61.)

Em igreja de crente tem milagre todo dia, com especializações variando conforme o dia da semana. (As especializações são saúde, família, dinheiro…) Os exorcismos também abundam. Fiquemos assim: todo brasileiro normal acredita em feitiço. O problema dos crentes – e não só deles – com os macumbeiros é que macumba inclui feitiços maléficos. É a velha distinção europeia entre magia negra e magia branca. Sem conotação racial, obviamente, já que os negros apareceram depois de ela surgir.

Crentes tocando fogo na estátua de uma mãe de santo são como brancos que queimam bruxas brancas no início da modernidade. Nada a ver com racismo.

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