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Protesto contra a ditatura no Rio de Janeiro em março de 2019, no aniversário da deposição de João Goulart.| Foto: EFE/ Antonio Lacerda

Nas condições normais de temperatura e pressão, não discutiríamos com a atual elite midiática – do mesmo jeito que não discutimos com Napoleão de hospício. Mas, se as condições de temperatura e pressão fossem normais, a elite da mídia seria diferente da atual. Não teríamos nem a expressão “elite midiática”, já que a elite da mídia seria apenas o topo de uma categoria profissional – e não uma parcela dos mandatários não-eleitos de um país. Agora jornalista cagueta conversa privada para a autoridade que manda prender. Nós definitivamente não estamos nas condições normais de temperatura e pressão.

Outro motivo para voltarmos os olhos para a elite midiática é o poder da propaganda. Hannah Arendt apontava como característico do totalitarismo a quebra de solidariedade entre os cidadãos. Hoje, se você for alguém importante, nunca se sabe quem poderá denunciá-lo ao comissário-jornalista mais próximo. Entre os desimportantes, ronda a possibilidade de um comissário printar conversas e expor a execração pública, ou pôr para circular em âmbitos importantes para o caguetado. O homem acaba calado, com medo. E, sem comunicar os seus pensamentos, nem conhecer os dos seus próximos, fica só ouvindo propaganda. Não tem mais como saber que não está sozinho e começa a duvidar de si mesmo. Mas um monte de gente – talvez, a maioria – pensa como ele. E esses Napoleões de hospício, ainda que agora mandem no país, não são outra coisa que não Napoleões de hospício. Eles é que tinham que se envergonhar do que pensam e dizem.

Falta de clareza do que seja democracia

A democracia volta e meia tem suas redefinições oportunísticas. Ninguém em sã consciência diria que a Coreia do Norte é democrática; não obstante, o nome oficial do país é República Popular Democrática da Coreia. A Alemanha Oriental era a República Democrática Alemã. Olhando para trás, é fácil apontar que a defesa da democracia era algo apenas nominal, uma jogada propagandística do comunismo. O sobrenome “popular”, em “democracia popular”, servia para os comunistas negarem a democracia. A "democracia popular" dos comunistas não era democracia; era ditadura totalitária.

Agora há um novo sobrenome para esvaziar o significado de “democracia”: após se vandalizar também o significado de “liberalismo”, “democracia liberal” passou a designar a ditadura de uns progressistas que vivem de propaganda para mascarar a realidade, e de canetas judiciais para reprimir dissidência ou mera não-observância das novas normas.

Por “democracia”, até anteontem, compreendíamos a forma de governo em que o povo, soberano, elege os seus representantes e cria a lei por meio deles. No entanto, a ditadura que ora adota o nome de “democracia liberal” considera que tudo o que seja popular é populista, portanto, ruim em si mesmo. Em seu vocabulário que faz revisionismo do presente, sequer há povo. É tudo população a ser tangida “democraticamente” por iluminados.

Isso é um problema global, ou ao menos ocidental. Peculiar ao Brasil da Nova República é a definição da democracia por oposição ao regime militar. As categorias políticas são binárias e atemporais: o período de 64 a 85 define a vida política de hoje. Se era contra “a ditadura” – com o artigo definido no singular, como se só houvesse uma única ditadura no mundo inteiro –, então era a favor da democracia. Isso é falso, porque os comunistas estavam contra "a ditadura" e não são democratas em hipótese alguma. Ao contrário: estavam a serviço das ditaduras mais letais do mundo àquele momento que eram a URSS e a China.

No mais, o fato é que os homens e mulheres que realmente se opuseram ao regime estão mortos ou velhos. Jornalistas quadragenários brincavam com lápis de cor na escola quando a constituição de 88 era promulgada. Não têm nenhuma vivência desse período. Por outro lado, alguns velhos não se deixaram definir pelo comunismo de sua juventude. Vide Osmar Terra, que foi liderança comunista no século XX e ministro de Bolsonaro no século XXI.

Um monte de jornalistazinho nem era nascido quando Osmar Terra fugia da Repressão. Não obstante, usa os feitos do próprio Osmar Terra, um “guerreiro da democracia”, para se sentir moralmente superior a Osmar Terra, um “populista negacionista”. Com que direito? É ridículo.

Não eram democratas em 64

Se os jornalistas não tinham nascido ou desenhavam a lápis de cor, as instituições midiáticas já existiam. Não só existiam, como clamaram por uma intervenção para encerrar as turbulências de Jango e restaurar a ordem no país pela mão militar. Em 2018, Bolsonaro lembrou isso à Globo, que pôs no ar, pela boca de Miriam Leitão, uma nota na qual admitia o erro e lembrando, além disso, que todos os veículos tomaram a mesma atitude, exceto pelo jornal Última Hora. O jornal defendera o fim da democracia para preservar as instituições democráticas.

A elite midiática não tem a menor condição de reivindicar um histórico de “defesa da democracia”. Antigos esquerdistas costumavam acusar a Folha de S. Paulo de emprestar sua frota de veículos para a Repressão. A versão foi incluída na Comissão da Verdade, e não pude encontrar nenhum desmentido da parte do jornal.

De minha parte, não vou aderir ao inconsequente mote fiat iustitia ruat caelum e dizer que os ritos legais têm de ser seguidos de modo incondicional. A justiça formal, na qual se calca a democracia, serve justamente para que o céu não venha a ruir; para que a sociedade viva em paz e em estabilidade. Às vezes as leis foram mal feitas (vide a eleição separada de presidente e vice), às vezes as turbulências internacionais impedem que as democracias deliberem sobre assuntos importantes em tempo hábil. Longe de mim colocar a norma “a democracia deve ser defendida” no mesmo pé que “crianças não devem ser castradas”. Dá para ser incondicional num caso e não no outro. Dá para dizer que uma cultura é odiosa se permite a segunda, mas não dá para dizer o mesmo da maioria da história da humanidade, que não é democrática.

Assim, longe de mim atirar pedras em quem defendeu o golpe de 64. Se eu vivesse o período e estivesse convencida de que as duas únicas opções viáveis no médio prazo eram ditadura militar provisória ou ditadura comunista longeva, não hesitaria em ficar com a primeira. Mas se uma instituição se arrependeu de defender publicamente o golpe de 64, por favor não faça isso posando de paladina da democracia, de sua defensora incondicional. Que não se faça de superior à plebe populista e ignara, ou aos fascistas malvados. Fica difícil crer na sinceridade de quem adota essa postura tão farisaica.

São menos democratas hoje do que em 64

Felizmente, o apoio à ação policialesca contra os empresários que conversavam em privado sobre a possibilidade de um golpe não é tão uníssono quanto aquele de 64. Ainda assim, pelo menos umas daquelas entidades – talvez a mais sôfrega das madalenas arrependidas – manifesta entusiasmo pela salvaguarda da “democracia liberal”. Outra vez temos a conversa de acabar com a democracia para salvar a democracia.

E aqui voltamos à vaca fria do Napoleão de hospício. Porque ou bem você arranca os cabelos e se diz horrorizado com os atos arbitrários da Repressão voltados ao combate dos comunistas, ou bem você admite os atos arbitrários do judiciário contra os empresários. Os comunistas pelo menos conspiravam mesmo para implementar uma ditadura atroz, e importavam armas com esse fito. Os empresários, pelo que foi divulgado, apenas discutiam se haveria sanções ao Brasil em caso de golpe militar. Alguns podiam considerar o golpe militar desejável; outros, não.

Com base em que se protesta contra a repressão a facções comunistas armadas, mas se insufla a repressão a empresários que papeavam em privado? Em nada, senão na loucura e na luta contra a realidade.

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