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Cannabis sativa por Koehler, em Plantas Medicinais (1897)
Cannabis sativa por Koehler, em Plantas Medicinais (1897)| Foto: Franz Eugen Köhler/Domínio público

Já que no último texto entramos na seara da botânica, dos costumes e da inexorabilidade tão amada pelos darwinistas sociais, aproveitemos o motim das vítimas da sociedade para falar dela, que, segundo os amantes da ciência, “é natural, não vai te fazer mal”: a maconha.

Recentemente li sobre a chegada da Cannabis sativa ao Brasil em A história da maconha no Brasil, de Jean Marcel Carvalho França. O livro acaba consistindo num eloquente desmentido da inexorabilidade, porque o uso da maconha já foi um hábito consolidado entre negros pobres, então o proibicionismo conseguiu mudar a moral social e reprimir esse costume, até que, de repente, com a contracultura, a maconha voltou com tudo por meio dos universitários. Só aí, após uma proibição eficaz, o vício em maconha virou uma coisa inexorável que não adianta proibir.

Vou tentar resumir a história. Todo povo, por mais que primitivo, inventa um jeito de ficar alto. Entre os nossos ancestrais europeus, a droga que proporciona isso é o álcool. Há uma ou outra aparição do uso do cânhamo como droga na Antiguidade, sendo os citas descritos por Homero os mais notórios. Mas esse uso do cânhamo sempre foi esporádico na Europa até Napoleão chegar ao Egito (a Idade Média conheceu a planta vinda do Oriente, Santa Hildegarda de Bingen chegou a escrever sobre ela, mas os cristãos ocidentais não deram muita bola para a novidade). No Egito, há muçulmanos. O islamismo proíbe o álcool, então a droga dos muçulmanos do norte da África era o haxixe, feito de maconha, e comido para dar barato. O mundo muçulmano se espalha desde a África até a Índia e suas redondezas. Assim, em Goa, os portugueses encontraram indianos comendo o bangue (isto é, a maconha) para ficarem risonhos e brincalhões, ou para conseguir dormir caso sofressem de insônia. Os registros detalhados do uso do bangue pelos indianos foram feitos pelo médico português Garcia d’Orta (1501-1568). Tudo isso remete mais ao brisadeiro (o brigadeiro de maconha) do que ao cigarro de maconha.

Todo povo inventa um jeito de ficar alto. Entre os europeus, a droga que proporciona isso é o álcool. O islamismo proíbe o álcool, então a droga dos muçulmanos do norte da África era o haxixe, feito de maconha, e comido para dar barato

Como a maconha chegou ao Brasil? O grande interesse dos portugueses pela planta se devia à sua fibra de excelente qualidade, que dava cordas muito resistentes e perfeitas para o fabrico de caravelas. Por isso os portugueses tentaram introduzir o plantio de cânhamo (maconha é anagrama de cânhamo) em suas possessões a fim de deixar o Império Português autossuficiente. No Brasil, a primeira tentativa foi na Ilha de Santa Catarina, mas os ancestrais pescadores dos manezinhos não se revelaram bons plantadores de cânhamo. A iniciativa foi transferida para Pelotas (RS), onde tampouco deu certo, e por fim para o Vale do Rio dos Sinos (RS), aonde os colonos alemães chegaram a tempo de encontrar uma plantação decadente. Essas tentativas ocorreram no século 18.

Outro ponto de encontro entre o mundo islâmico e o Império Português é a África. Sabe-se que os africanos subsaarianos aderiram ao uso do cânhamo em algum momento entre os século 13 e 16. Assim, não se sabe quem levou o cânhamo para lá primeiro: se as caravanas islâmicas que atravessavam o Saara rumo ao Oceano Índico, ou se os portugueses, que, com suas rotas marítimas, comunicavam Portugal, Brasil, África Subsaariana, Índia e China. Sozinhos ou não, os portugueses levaram o cânhamo para Moçambique e Angola, sendo que nesta última a planta adaptou-se muito bem e caiu no gosto da população.

Diferentemente dos beduínos, porém, os negros fumavam o cânhamo, em vez de comê-lo. O historiador não explica por que eles fumavam em vez de comer; assim, acrescento que isso tem todo o jeito de ser coisa de lusófono – porque o europeu aprendeu com o índio a fumar. O tabaco é nativo da América, e os índios inventaram a piteira (palavra de origem tupi com sufixo português), que originalmente era um canudinho no qual se enfiava o tabaco para fumar. Os africanos fumavam maconha com cachimbo (que é uma palavra de origem bantu). Não sei das origens do cachimbo, mas podemos supor, já que o historiador não falou nada, que o hábito de fumar maconha talvez tenha surgido como um substituto improvisado para o tabaco. Vale apontar que o tabaco também caiu no gosto dos africanos negros, pois esse era um dos produtos exportados pelos engenhos baianos que comerciavam escravos diretamente com reinos africanos livres do Golfo do Benim.

A maconha fez o mesmo percurso social que a coca, que passou de erva tradicional, usada por pais e avós, a mania enlouquecedora de degenerados, quando os europeus do 19 tiveram contato com ela

Assim, são duas questões bem diferentes, as que o historiador se propõe a responder: quem trouxe o plantio de cânhamo para o Brasil? E quem introduziu o uso como droga? A primeira é que os portugueses trouxeram, no século 18, com a finalidade de produzir cordas para as suas importantíssimas embarcações. Quanto ao uso como droga, é difícil bater o martelo porque a maconha se tornou uma droga de marinheiros, mas é inegável que, no Brasil, o hábito de fumar maconha era associado aos negros. Não existia a palavra “maconha”. O termo culto, de origem latinha, é cânhamo. Os nomes populares do cânhamo nos séculos 19 e meados do 20 eram “diamba”, “pito de pango” e “fumo d’Angola”. Diamba é o nome pelo qual os angolanos chamam a maconha até hoje, e Pango, coincidência ou não, é o nome de uma cidade angolana.

Voltemos a Napoleão. Sua campanha egípcia levou uma porção de franceses ao Egito e, assim, pôs uma porção de franceses em contato com o milenar haxixe dos beduínos islâmicos. Em suma: ela fez o mesmo percurso social que a coca, que passou de erva tradicional, usada por pais e avós, a mania enlouquecedora de degenerados, quando os europeus do 19 tiveram contato com ela (escrevi sobre isso aqui). No entanto, o cânhamo não caiu no gosto dos psiquiatras, como a cocaína. Em vez disso, virou modinha de poetas e, portanto, de qualquer alma que se pretendesse sensível e refinada. Virou moda entre os jovens europeus de classe alta, e assim ficou até o começo do século. Quando os pais ficaram desesperados com seus filhinhos se entupindo de haxixe, a coisa virou assunto de polícia e de psiquiatria.

No Brasil, os psiquiatras eugenistas, que ganharam mais poder com o Estado Novo, não demoraram a se preocupar com os efeitos da diamba sobre a saúde da raça brasileira. Após a Segunda Guerra (na qual os EUA usaram cânhamo na indústria naval), o Brasil assinou tratados internacionais capitaneados pelos EUA que visavam à erradicação do cânhamo. Assim, na primeira metade do século o Estado brasileiro se empenhou em combater um costume arraigado de boa parte da sua população, além de brigar contra a própria natureza. O cânhamo nascia nas ruas do Rio de Janeiro. Na obra Nordeste, Freyre apontava que os engenhos de cana de açúcar, quando não estavam produzindo açúcar, produziam tabaco, cachaça e diamba para consumo próprio nas “férias”. Os documentos policiais dão conta de um velhinho encrencado com a polícia por plantar no quintal a diamba que ele usava “desde menino”. Em terreiros, o fumo d’Angola era usado com finalidade ritualística. Ainda assim, a mentalidade da população brasileira mudou; a diamba passou de familiar a terrível. Nenhum pé cresceria mais à toa, como mato.

Na primeira metade do século 20 o Estado brasileiro se empenhou em combater um costume arraigado de boa parte da sua população, além de brigar contra a própria natureza. O cânhamo nascia nas ruas do Rio de Janeiro

Outro diferencial do Brasil em relação à Europa é que aqui, nessa fase, a diamba não se tornara droga chique de poetas boêmios. Era coisa de preto pobre com a qual os jovens românticos não quiseram se misturar. O máximo que havia era o “uso medicinal” de cigarrilhas de cânhamo para asmáticos. Esse era o uso de classe média: discreto e sem alarde.

Na segunda metade do século 20, tudo muda de novo, desta vez com a Contracultura. Agora os hippies da Contracultura vendiam a maconha como um jeito de se tornar um rebelde sem se levantar do sofá: “Assim que dá o primeiro trago, você se transforma em inimigo da sociedade”, como disse em 70 o ativista contracultural Jerry Rubin (por óbvio, quem fumar maconha para ser revolucionário precisará fumar sempre, sob pena de deixar de ser revolucionário. Drogar-se para manter uma identidade é algo sem precedentes na história pré-moderna, e é bem diferente de se drogar por diversão). De alguma maneira mais misteriosa ainda, usar maconha fazia do jovem parte da badaladíssima “ameaça comunista” – e foi nessa época que a esquerda americana abandonou seu tradicional foco nas reivindicações trabalhistas para se ensimesmar na subjetividade freudiana.

A Nova Esquerda, após muito estudar a repressão à diamba no Estado Novo, diria que toda repressão à maconha era uma questão de raça e classe, porque os maconheiros eram pretos e pobres

No Brasil, os psiquiatras do Instituto Pinel se descabelaram com os jovens que queriam macaquear tudo o que vinha dos Estados Unidos. Depois do sucesso do Estado Novo no combate à diamba, o consumo da “maconha” (só agora se usava o anagrama de “cânhamo”) era entendido como uma importação.

Mas dessa vez os psiquiatras é que ficaram doidos à toa. Porque os artistas da Tropicália, os jornalistas descolados, os universitários trotskistas, todos, aderiram à maconha como a nova droga. Perante os filhos maconheiros, os pais que buscassem ajuda especializada encontrariam na pedagogia conselhos piegas de aceitação incondicional e não repressão. Como cereja do bolo, a Nova Esquerda, após muito estudar a repressão à diamba no Estado Novo, diria que toda repressão à maconha era uma questão de raça e classe, porque os maconheiros eram pretos e pobres.

E hoje ainda temos de ouvir das ONGs estrangeiras que o uso de todo tipo de droga é inexorável, de modo que é necessária uma “redução de danos” indiscernível da apologia.

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