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O Bando de Lampião resulta de uma PPP da República Velha para combater um motim militar. Tornou-se outro problema.
O Bando de Lampião resulta de uma PPP da República Velha para combater um motim militar. Tornou-se outro problema.| Foto: Domínio público.

O último texto lotou a caixa de comentários. Em primeiro lugar, devo dizer que não sou contra a posse de armas por cidadãos particulares. Acho somente que há uma boa distância entre o proprietário rural defender-se com sua arma de fogo e um usuário de drogas psiquiátricas ter o direito de portar metralhadoras. E desta vez escrevo “metralhadora” em vez de “fuzil” para não dar azo a interpretações pedantes e sofísticas do que estou querendo dizer. Afinal, dos treze significados de “fuzil” listados no meu Houaiss de 2001, somente um, o de número dez, é uma arma de fogo moderna: “(1836) arma portátil de cano comprido; espécie de carabina; espingarda.” O significado número um, atribuído ao século XIV, é “peça de metal com que se atritava uma pederneira (p. ex., sílex) para produzir centelhas”.

Em 2001, a violência urbana não tinha tomado conta do país, e ninguém ouvia falar que “os traficantes agora estão de fuzil.” É evidente que os populares não estão preocupados com o comprimento dos canos das armas. Se digitarmos “AK-47 funk” no Google, entenderemos bem a que se referem os pobres quando falam de “fuzil”: é o “fuzil de assalto”, com disparo automático de uma porção de balas. Outras armas de cano longo podem ser adaptadas ilegalmente para ganhar função de disparo automático.

Não é simples para o cidadão comum, não interessado em balística, entender a que se referem os entusiastas de armas de fogo – como mostrei, o dicionário não dá definições muito precisas, e nem na Wikipédia lusófona se encontra muita coisa. Perante essa falta de entendimento, os entusiastas podem adotar uma postura frutífera, que é instruir acerca das diferenças dos fuzis, explicar o que eles defendem e levar em conta que, para a maioria da população que convive com armas (voluntariamente ou não), fuzil é arma de traficante.

Vamos às armas dos traficantes, que é o que interessa no artigo de hoje. Esse tipo de fuzil incorporou a função das metralhadoras, as quais se popularizaram na I Guerra Mundial. No começo elas não eram portáteis: pareciam um telescópio, pois ficavam apoiadas num tripé, voltadas para o lado adversário, e eram acionadas por manivela. O soldado ficava entocado feito um tatu na trincheira e girava a manivela para a metralhadora disparar o máximo de balas contra a trincheira rival. No final da II Guerra Mundial, os alemães inventaram um fuzil com essa capacidade de disparos automáticos. Os soviéticos aperfeiçoaram a técnica e criaram o popularíssimo AK-47, o Automático Kalashnikov de 1947. De sua invenção até os dias de hoje, o AK-47 é uma presença constante onde há anomia, tais como as guerras civis na África, no Oriente, no Leste Europeu, bem como em regiões tomadas pelo narcotráfico.

Fuzis com disparo automático são armas de guerra. Eles podem tanto ser um meio de defesa em caso de anomia, como a própria causa da anomia. Já disse que creio que os cidadãos, sobretudo os da zona rural, têm que ter o direito de possuir armas para se defender dos invasores. Mas um invasor não é um exército, salvo em casos de completa anomia e colapso social, ou seja, guerra civil. Uma guerra civil é desejável?

Armas no campo levaram a… Lampião

É claro que há uma notável fonte de anomia no Brasil rural chamada MST. Ela está entre nós desde 1984 – leia-se: desde a abertura, às portas da redemocratização – e contou com amplo apoio da mídia, da Igreja e dos partidos políticos. O clima só mudou após duas coisas: 1) a ascensão do agronegócio brasileiro como uma nova força político-econômica mundial e 2) a queda do oligopólio midiático causada pela internet. Assim o MST passou a incomodar setores poderosos da sociedade e perdeu muito do prestígio que tinha.

No entanto, conflito armado no campo brasileiro é coisa bem velha. Vide a matança intestina em que viviam os caudilhos nordestinos e gaúchos no final do séc. XIX e começo do XX. Os exemplos mais fáceis de pensar são o prolongado conflito entre maragatos e chimangos, no Rio Grande do Sul, e a Guerra de Princesa, na Paraíba. Tais eventos merecem o nome de guerras civis.

No começo do século XX, houve uma ligação física entre a violência gaúcha e a nordestina: a Coluna Prestes. Para atingir tamanha dimensão, ela introduziu também uma novidade, que foi a ideologização do conflito no campo. O movimento começou como uma rebelião militar contrária à corrupção da República Velha. Chegando ao Nordeste, a Coluna encontrou as milícias de jagunços dos coronéis, que foram armados pela República Velha com o fito de combater os amotinados. Pode-se dizer que foi uma parceria público-privada: o Estado democrático liberal entrou com as armas e os coronéis nordestinos entraram com seus homens, isto é, com suas milícias privadas. Acontece que um desses jagunços armados se chamava Virgulino Ferreira, o Lampião, que se tornou mais um problema de violência. Armados, os jagunços não tinham razão para seguir obedientes apenas aos coronéis; muitos se organizaram em bandos e passaram a tocar o terror pelos sertões.

Esse papo importado de “armas não causam violência, pessoas causam”, é verdade até a página dois. É um truísmo no âmbito individual (que até vale ser relembrado, já que a elite progressista quer explicar tudo por condições externas ao indivíduo), mas é falso no âmbito social. Lampião estava lá; as milícias de jagunços também, mas o acréscimo de armas de fogo serviu para desestabilizar o equilíbrio de forças regionais.

Ao cabo, quem deu fim ao bando de Lampião, já durante o Estado Novo, foi a Polícia Volante da Bahia, cujos métodos dificilmente seriam liberados hoje. Hoje vivemos sob um regime não-eleito, uma democracia aparelhada na qual é feio a polícia matar bandido, ou seja, na qual o combate à “letalidade policial” é superior ao combate ao crime violento.

O poder que emana das armas

Um discurso importado diz que as armas são importantes para enfrentar o Estado, porque nos EUA é assim. Os norte-americanos não conseguem sequer impedir que o Estado busque seus filhos em suas casas para mudar o sexo deles, mas tem gente que acha que eles são melhores do que nós só porque são mais ricos. Esse problema não se deve ao “tamanho” do Estado, mas sim à eficácia da aplicação das leis e da jurisprudência nos EUA. A lei funciona. Os pais têm o direito de portar armas e por isso terão a capacidade de metralhar o agente estatal que for buscar o seu filho. Mas seu destino certo é a cadeia, porque homicídio é crime. E o filho ainda é levado para mudar de sexo do mesmo jeito, se for o que as autoridades tinham decidido. No Brasil, se imitássemos as leis de armas dos estados mais liberais dos EUA, deveríamos ter em mente que a nossa justiça continuaria tão ruim quanto. As armas seriam um complicador extra, e não uma solução para o problema da impunidade dos bandidos.

E se os fazendeiros do Centro-Oeste pudessem armar milícias contra o MST, nada impediria de surgir uma situação análoga à do cangaço. Vale lembrar que os pobres do Rio de Janeiro das áreas despoliciadas começaram a pagar policiais para fazer a segurança por fora. Resultado: acabaram refém das milícias.

O Estado pode e deve combater o banditismo organizado. A novidade histórica está nos capitalistas transnacionais sediados nos EUA usarem e adulterarem o arcabouço do pós-guerra para promover o famigerado Direito dos Manos.

Hoje a elite ocidental recrimina as potências orientais por não serem democráticas. No entanto, a tirania exercida pelos pequenos déspotas de favelas é explicada por meio das “desigualdades sociais” e firmemente protegida por ONGs milionárias. Quando um pequeno país latino-americano como El Salvador usa o poder do Estado para reprimir as gangues de traficantes, é condenado pela The Economist como um risco à democracia e aos direitos humanos. Isso é tirania terceirizada.

O MST

O cangaço é ilustrativo de mais um fenômeno importante: a exploração, por parte de potências estrangeiras, das nossas guerras intestinas. A União Soviética insistia que Lampião era um “guerreiro da justiça social” que daria início à Revolução movendo os camponeses nordestinos revoltados com o feudalismo. O fiasco da Intentona provou que a adesão do camponês nordestino era um delírio de burocratas nefelibatas, mas fica registrada essa intenção de cooptação. Consta que a Alemanha Nazista também tentou cooptar o cangaço, história que, segundo eu soube (mas não tive acesso), foi contada por Frederico Pernambucano de Mello na obra Benjamin Abrahão: Entre anjos e cangaceiros, de 2012. Os nazistas ainda fizeram uma expedição no Amapá, sabe-se lá com quais propósitos.

Desde a redemocratização, o MST é uma organização que faz e acontece, que tem logomarca, tem mídia e… Não tem sequer CNPJ. Ninguém sabe de onde vem o financiamento do MST, porque oficialmente o MST não existe. O MST é tão oficial quanto o PCC e o CV.

Ainda assim, por mais estragos que o MST tenha causado, é difícil argumentar que ele tenha causado mais estragos no campo do que as decisões relativas às reservas da Raposa Serra do Sol e dos Ianomâmi. São áreas de fronteira, cheias de minerais, que sempre estiveram sob a cobiça estrangeira – e sob a mira das ONGs.

Não é que o Estado seja um mal. O Estado é necessário e não pode ser privatizado. Roubaram o nosso Leviatã; temos de recuperá-lo.

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