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O comunista brasileiro que desafiou Trotsky e o comunismo internacional

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Os 100 anos da infame Revolução Russa, que matou direta e indiretamente em todo o mundo mais de 100 milhões de pessoas desde a sua eclosão em 1917, também é o início da história da articulação dos comunistas brasileiros que, inspirados pelo marxismo-leninismo, fundaram em 1922, no Rio de Janeiro, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Não foi o primeiro do gênero, contudo, posto que em março de 1919 libertários do Rio de Janeiro (como eram chamados os anarquistas e anarcossindicalistas) fundaram o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que, entretanto, teve vida curta e acabou, provavelmente, no início de 1920.

Porque a militância da esquerda brasileira era fartamente composta por anarquistas, anarcossindicalistas e socialistas de variadas matizes, a fundação do PCB por alguns dos ex-integrantes do PCdoB exibia uma pluralidade tingida de tons de vermelho que os bolcheviques russos tentavam coibir. Ao contrário dos partidos comunistas de outros países, fundados por dissidentes de partidos socialistas e social-democratas, dos nove fundadores do partido no Brasil, sete eram ex-anarquistas e dois eram marxistas.

O PCB, e aqui está uma informação que para muitos pode ser novidade, não surgiu da “vontade espontânea dos militantes, mas da interferência direta de Moscou, que tinha interesse em ampliar, o mais rapidamente possível, o número de partidos da Internacional Comunista”[1], segundo conta Iza Salles no livro Um Cadáver ao Sol – A história do operário brasileiro que desafiou Moscou e o PCB.

A autora conheceu o comunismo desde dentro. No fim dos anos 1960, foi integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), grupo terrorista de esquerda comandado por Carlos Lamarca. Numa entrevista ao UOL publicada em 2014, ao 75 anos, ela disse ter sido presa e torturada.

Ao admitir arrependimento pelo envolvimento com o terrorismo, Iza afirmou que muitos de seus companheiros de luta armada não haviam, até aquele momento, feito “a reflexão de que pregávamos uma ditadura de esquerda que são terríveis. Muitos não queriam ver as denúncias que vinham da União Soviética sobre perseguições e mortes”. Mais claro, impossível.

1922, o ano que não terminou

Rebobinando a história, quando da Revolução Russa, em 1917, o Brasil tinha como presidente Venceslau Brás. Ao longo do ano de 1922, o país teve dois presidentes: até 15 de novembro era Arthur Bernardes, que nessa data transmitiu o cargo para seu sucessor, Epitácio Pessoa. Naquele mesmo ano, mas em fevereiro, realizou-se em São Paulo a sobrevalorizada Semana de Arte Moderna. Na Europa, o modernismo literário apresentou-se como vigorosa novidade na prosa com Ulisses, de James Joyce; na poesia, com Terra Devastada, de T. S. Eliot. Duas obras-primas.

Na Rússia, em 1922, Moscou foi sede do IV Congresso da Internacional Comunista. Tratou-se de mais uma tentativa de corrigir os rumos da revolução de 1917 depois de uma sucessão de fracassos verificados a seguir a cada um dos três encontros anteriores. Embora houvesse pluralismo de esquerda nos dois primeiros congressos (1919 e 1920), o segundo já se tornara instrumento dos marxistas. Será no terceiro, porém, que a uniformidade se impôs e praticamente só comunistas dele participaram.

21 condições para ser comunista

Desse terceiro encontro há aspectos fundamentais para entendermos a estratégia e a luta dos comunistas de lá para cá. O primeiro passo foi impor 21 condições “a que deveriam se submeter os partidos para se tornarem membros”[2] da Internacional Comunista. O modelo já estava definido: o partido soviético deveria ser o exemplo de organização e de ação política para todos os partidos estrangeiros que quisessem integrar a IC. A 21.ª condição era explícita: todos os que se negassem a cumprir as condições e teses estabelecidas “deveriam ser expulsos”, incluindo “os delegados deste partido”.[3]

As 21 condições permitiriam ao Partido Comunista russo centralizar as decisões e controlar todas as ações nas várias partes do mundo onde houvesse representação. Onde não houvesse, emissários do regime soviético eram incumbidos de encontrar alguém confiável para criar um partido comunista nacional, como aconteceu no Brasil, e assim expandir o seu raio de influência e, claro, a revolução. Sem esse trabalho operacional, que envolvia imposições, humilhações, expurgos e financiamento, o comunista brasileiro Luís Carlos Prestes jamais teria entrado no PCB e sido quem foi.

Nem tudo, porém, saiu como o esperado. Culpa dessa ingrata realidade, que insiste em se contrapor ao comunismo. O resultado foram os fracassos nas “tentativas de insurreição na Itália, França, Inglaterra, Iugoslávia e Tchecoslováquia”[4], na proposta de convocação de greve geral em vários países europeus e na fracassada investida para promover uma revolução na Alemanha.

Lição sofrida, lição aprendida

Dos malogros, algumas lições foram assimiladas e postas em práticas pelos comunistas (e ainda o são até hoje):

1. Posições antes rechaçadas poderiam ser rapidamente adotadas;

2. A estratégia revolucionária para conquistar as massas deveria ser desenvolvida, vejam só, “através de organizações não declaradamente comunistas, criadas para abrir caminho para a influência do partido (Movimento das Mulheres, Internacional da Juventude, Movimento pela Paz, Movimento dos Trabalhadores na Inglaterra, etc.)”[5];

3. “A brutal imposição do pensamento único e a campanha para desmoralizar social-democratas e socialistas”[6];

4. A expulsão de dirigentes e membros que ousassem criticar ou se contrapor às determinações da Internacional Comunista e do Partido Comunista Soviético.

O primeiro a ser expulso foi Paul Levi, secretário-geral do Partido Comunista Alemão, por criticar publicamente a Internacional Comunista pela fracassada tentativa de revolução na Alemanha em 1921. Depois de Levi, assim como na França jacobina do século 18, a Revolução Russa começou a eliminar os seus artífices e representantes comunistas mundo afora. Inclusive no Brasil.

Um comunista brasileiro em Moscou

Naquele ano de 1922 em que o PCB foi fundado no Brasil, um ex-anarquista brasileiro que entrou para a legião marxista ousou desafiar Leon Trotsky e, por extensão, o Partido Comunista russo e brasileiro. Aos 24 anos, o tipógrafo e linotipista Antonio Bernardo Canellas desembarcou em Moscou como representante da sigla brasileira para participar do IV Congresso da Internacional Comunista e a coisa não correu nada bem.

Primeiro brasileiro a pisar oficialmente no país após a revolução de 1917 e um dos mais jovens “entre os 394 delegados credenciados para o encontro”[7], Cannelas viu sua empolgação transformar-se rapidamente em decepção. Acostumado à liberdade de discussão e de intervenção das reuniões anarquistas, sofreu um baque ao verificar que num congresso comunista “tudo é centralizado, precisa-se pedir licença para tudo, não existe um debate animado”.[8]

A desilusão aumentou ao perceber que era tratado como comunista não de segunda, mas de terceira categoria. Enquanto os camaradas russos tinham “direito a discursar à vontade e a se atribuir as comissões que desejassem sem que ninguém (…) pensasse em lhes tirar estas atribuições” e os representantes dos partidos mais importantes “falavam quando queriam, estavam nas principais comissões e eram tratados com deferência pelos bolcheviques”, ele fazia parte de um grupo de delegados estrangeiros que tinha “na assembleia apenas efeito decorativo, sendo-lhes quase impossível obter a palavra ou interferir nos trabalhos”.[9]

Canellas, porém, não era homem de se deixar afrontar sem reagir. Por querer “ser aquilo que lhe haviam dito que era – um delegado com direito a participar e a votar”, começou a edificar a sua derrocada antes mesmo de experimentar a ascensão. Fluente em francês, uma das línguas oficiais do congresso, passou a tentar intervir nas discussões pedindo a palavra e encaminhando por escrito pedidos de aparte. Sem sucesso; suas solicitações eram sistematicamente negadas. Restou-lhe, então, usar algo que não poderia ser cassado: “o direito de voto, recebido da Comissão de Mandatos”.[10]

Como fazer inimigos e não influenciar pessoas

Movido pela combinação entre sua “intuição revolucionária” e o “desejo de protestar contra a forma como eram conduzidos os trabalhos”[11], Canellas atrapalhou o plano dos bolcheviques de aprovar por unanimidade as teses de interesse da Internacional Comunista. Porque “um voto contra era suficiente para suscitar dúvidas sobre o domínio da IC em determinada situação”, o comunista brasileiro ousou romper a unanimidade “num congresso de quase 400 delegados”.[12]

Para começar, Canellas insurgiu-se contra a aprovação de um projeto do delegado do Partido Comunista alemão, Hugh Eberlein, que visava ampliar o poder, já excessivo, da IC. Se aprovada, a resolução permitiria a intervenção direta “nos partidos (de qualquer país do mundo) através de ‘emissários’ encarregados de controlar se faziam o que lhes fora ordenado”, ou seja, se estavam a cumprir as 21 condições em vigor. Nas atas do IV Congresso, o registro denunciava a participação de Canellas: “As teses foram aprovadas com o único voto contrário do delegado brasileiro”.[13]

Numa outra votação, ainda mais delicada, Canellas votou novamente contra todos ao dizer que, sim, um comunista poderia pertencer à maçonaria. A questão foi posta em debate para resolver um problema interno do Partido Comunista Francês (PCF) e assim enquadrar os socialistas e sindicalistas franceses que se orientavam pelo reformismo anarcossindicalista e não pelo comunismo.

Para eliminar as “frações em luta no partido”, Trotsky inventou uma mentira eficiente segundo a qual “numerosos funcionários do PCF eram membros da franco-maçonaria e da Liga dos Direitos do Homem, organizações secretas da burguesia francesa”.[14] Deu certo – menos para Canellas, que votou a favor para evitar a expulsão do partido de dois amigos, Cristiano Cordeiro e Everardo Dias, que eram comunistas e maçons.

Desafiando Leon Trotsky

Foi na intervenção seguinte, porém, que Canellas selou o seu destino. Após ouvir metade do discurso de três horas e meia de duração no qual Trotsky, mentindo, defendia uma solução para o PCF “que reforçasse a linha ‘internacionalista’ em detrimento da “sindicalista’”, o brasileiro pediu um aparte. Para sua surpresa, foi autorizado a falar. O que ele disse? Que Trotsky, um dos grandes nomes da Revolução Russa, tentou “manipular e enganar o plenário para conseguir que sua resolução sobre a crise do PCF fosse aprovada”. Escândalo.

Para piorar as coisas, foi “informado que os tradutores (do evento) haviam transformado seu aparte em ofensas a Trotsky”.[15] Novo escândalo. Tentou, mas foram infrutíferas as suas tentativas de exigir uma apuração que o inocentasse. Na hora de votar, entretanto, repetiu-se: votou contra a unanimidade que pretendia enquadrar o PCF.

Ao término do Congresso, a fama de Canellas estava estabelecida: um simpatizante do sindicalismo-revolucionário que se identificava “com os velhos adversários dos marxistas, com a velha ideologia inimiga – o anarquismo”.[16] Para coroar sua participação no Congresso, ainda teve de levar na bagagem para o Brasil a resolução aprovada pela Internacional Comunista que recusava a entrada do PCB como partido membro. O motivo? Não era “ainda um verdadeiro partido comunista” por conservar “restos de ideologia burguesa, como demonstra a presença da maçonaria entre seus militantes, e é influenciado por anarquistas”.[17] A resolução descrevia como aspectos condenáveis as posições apresentadas por Canellas nas votações.

Volta ao Brasil: queda sem ascensão

O que veio a seguir ao seu retorno ao Brasil era o esperado. Primeiro, o governo de Moscou comunicou a ida de um emissário argentino para intervir no PCB. Depois, os membros do Comitê Executivo do partido decidiram que Canellas era responsável pela decisão negativa tomada pela Internacional Comunista: “se a resolução fora injusta e inexata a culpa deveria ser atribuída a Canellas e não à Internacional”.[18]

O relatório escrito para ser enviado à IC era demolidor: elencava todos os erros cometidos por Canellas no Congresso ao votar contras as resoluções e destilava “críticas desnecessárias e humilhantes”.[19] Sua personalidade bélica e impulsiva agravou a sua posição dentro do partido e aprofundou o conflito.

A decisão foi, então, tomada: no dia 6 de junho de 1923, o PCB aprovou a resolução que condenava as atitudes de Canellas no Congresso em Moscou. No dia seguinte, ele foi preso sob suspeita de participar “de uma insurreição contra o governo de Arthur Bernardes”.[20] Ficou quase três meses encarcerado. Uma semana depois, foi suspenso do partido para logo em seguida declarar-se comunista independente.

Para expor a sua versão da história e defender-se dos ataques dos seus ex-camaradas do PCB, Canella publicou em novembro de 1923 o livro Relatório da delegacia à Rússia. A direção do PCB reagiu e o expulsou do partido “como desertor dos exércitos da Internacional Comunista, (…) traidor da causa proletária”.[21] Era pouco, porém. Sete meses depois, o PCB publicou um violento ataque sob o título O Processo de um Traidor – O caso do ex-comunista A. B. Canellas. Um trecho do livro resumia o estado de espírito dos seus autores e o que pretendiam: “A questão está para nós morta e liquidada, como liquidado e morto para o movimento revolucionário está Bernardo Canellas, traidor indigno e vil. Mas é necessário dissecar este cadáver. É preciso desnudá-lo, rasgar-lhe o couro mau, desfibrar-lhe as carnes ruins, pôr-lhe as vísceras ao sol, espremer-lhe o fígado esgorgitado de torpeza. Temos o punho rijo e o ferro é de qualidade”.[22]

A Revolução devora seus próprios filhos

O que aconteceu com Canellas também vitimou comunistas no mesmo período, a começar pelos da Rússia. Stalin iniciou um processo de humilhação, ameaça, prisão e eliminação de velhos bolcheviques que teve no assassinato de Trotsky sua ação mais conhecida. Nenhuma outra ideologia política matou mais comunistas do que o comunismo. Em briga de comunistas de fé, ninguém metia a colher.

No Brasil, Astrogildo Pereira e Octávio Brandão, os dois que expulsaram Canellas do PCB e seriam os autores de O Processo de um Traidor, foram humilhados e em seguida afastados do partido. Canellas ainda voltou a trabalhar como jornalista e parece ter reassumido a sua vocação anarquista. Por ausência de fontes, o livro termina sem a informação de quando e como ele faleceu.

Há dois aspectos importantes na história do comunista brasileiro que desafiou Trotsky e o Partido Comunista (russo e brasileiro): primeiro, o comunismo não é uma simples ideologia política, mas um compromisso pleno com o mal; segundo, essa é uma daquelas histórias extraordinárias em que os dois lados estão errados e um dos lados está mais errado do que o outro.

Os 100 anos da Revolução Russa representam exatamente isso: um século de mentira, manipulação, infâmia, humilhação, prisão e morte. O revolucionário é alguém que, iludido pela utopia de um futuro redentor, destrói tudo o que vê pela frente, coisas e pessoas, para depois ser destruído moral ou fisicamente pelos seus antigos companheiros. É assustador – embora revelador que em 2017 haja muitos que no Brasil, até mesmo no Congresso, celebrem uma data que nada mais representa do que o contrário de humanidade, rios de sangue e milhões de cadáveres.

NOTAS

[1] Salles, Iza. Um Cadáver ao Sol. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 69.

[2] Ibidem, p. 81.

[3] Ibidem, p. 84.

[4] Ibidem, p. 85.

[5] Ibidem, p. 86.

[6] Idem.

[7] Ibidem, p. 11.

[8] Ibidem, p. 115.

[9] Ibidem, p. 117.

[10] Ibidem, p. 118.

[11] Ibidem, p. 116.

[12] Ibidem, p. 119.

[13] Ibidem, p. 120.

[14] Ibidem, p. 124.

[15] Ibidem, p. 126.

[16] Ibidem, p. 130.

[17] Ibidem, p. 136-137.

[18] Ibidem, p. 145.

[19] Ibidem, p. 146.

[20] Ibidem, p. 150.

[21] Ibidem, p. 156.

[22] Ibidem, p. 161.

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