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A culpa do estupro
| Foto: Pixabay

Após o assassinato de um inocente, provavelmente o crime mais asqueroso é o estupro. Isto é assim por ser o estupro uma perversão completa de uma das coisas mais valiosas para o ser humano neste mundo, quando não a mais valiosa: o amor, especialmente o amor conjugal. O estupro é o ato de arrancar publicamente o que deveria ser fruto e raiz íntimos, intimíssimos, de uma relação de amor. É a substituição de uma lógica de amor por uma lógica de posse: para o estuprador, estuprar é literalmente “possuir” aquela mulher que não se lhe entregou por querer. O que deveria ser uma entrega íntima e amorosa por parte da mulher é substituído por um esbulho brutal da intimidade da vítima, por uma violência física e psicológica (deste lado muita gente boa infelizmente esquece) que dificilmente teria como ser pior.

O estuprador é, em vários níveis, a ralé da ralé da espécie humana, e a culpa de todo estupro é sempre dele, do estuprador. Disto não podemos jamais nos esquecer.

No primeiro, e mais evidente destes níveis, trata-se de uma pessoa que não tem nem sequer interesse em conter seus próprios instintos mais primitivos, colocando-se assim voluntariamente abaixo de um animal; afinal, animais não têm mente racional, e por isso não têm escolha: são sempre governados por seus instintos. O estuprador, destarte, é por definição um idiota que se deixa levar pela própria lubricidade.

Além disso, trata-se de alguém que não reconhece a dignidade do próximo, de alguém que trata como coisa quem na verdade é pessoa. Ora, não reconhecer a dignidade do próximo é algo que só pode acontecer com alguém que não reconhece a própria dignidade, ou pelo menos não tem lá muita certeza dela. Afinal, reconhecemos no próximo o que temos em nós. Assim, o estuprador não se percebe perfeitamente como pessoa; ele é para si mesmo uma genitália ereta com punhos e pernas, o que certamente ajuda a explicar a razão pela qual ele se deixa levar completamente pelos seus desejos lúbricos e violentos. A violência, diga-se de passagem, é outra marca do estuprador, ou ao menos da maior parte deles. Alguns poucos apelam para uma “esperteza” sórdida, que os leva a dopar suas vítimas, transformando-as em bonecos de carne maleáveis, sem personalidade, mas com formas, calor e buracos humanos. A maior parte desses criminosos, contudo, simplesmente ignora a personalidade da vítima, usando da força física (que via de regra é muito maior no homem que na mulher) ou de ameaças para saciar-se com aquela carne despersonalizada.

O estuprador é, em vários níveis, a ralé da ralé da espécie humana, e a culpa de todo estupro é sempre dele, do estuprador

Isto tudo mostra que o estuprador é, primordialmente, alguém que joga fora o seu pertencimento à comunidade social humana, abandonando-o em prol de instantes de um prazer literalmente arrancado de uma pessoa inocente, como um canibal que arrancasse um bife da perna de um passante para o almoço. Ele se percebe sozinho no mundo e dotado de direitos absurdos sobre esse mundo despersonalizado, em que suas vítimas em potencial são percebidas apenas como carne quente que pode saciar seus desejos mais sórdidos. Ele é um criminoso, e do pior tipo de criminoso. Do professor tarado que dopa deficientes mentais e físicos para se servir deles ao tarado que passa meses acostumando uma pobre criança a ele e a seus desejos cada vez mais absurdos; desses ao criminoso comum que, cometendo um assalto, aproveita para “roubar” a dignidade de uma de suas vítimas, muitas vezes fazendo-o diante da família e excitando-se mais com a situação; chegando, então, ao parente que cria dentro da própria casa escravos sexuais, transformando o que deveria ser um lar numa sucursal do Inferno. Todos esses são monstros, são culpados, sem sombra alguma de dúvida.

Mas de onde mais, além da pura maldade tão facilmente perceptível, vem isso? Há quem atribua todo estupro a uma suposta “cultura do estupro” decorrente de um patriarcalismo que, aliás, já praticamente acabou. Estes percebem apenas uma mudança de grau, não de essência, entre o “fiu-fiu” do operário e o depravado que rasga a tenra carne duma criança com seus ataques, aleijando-a para toda a vida. Isso me parece francamente absurdo. Há, sim, elementos culturais e sociais que ajudam na criação de estupradores. Estes, infelizmente, cresceram loucamente nas últimas décadas, o que ajuda a explicar o que parece ser um aumento nos casos deste asqueroso crime tantas vezes subnotificado.

Dentre estes fatores contamos indubitavelmente em primeiro lugar, disparado, a pornografia, por ser um mecanismo de dessensibilização à personalidade. A pornografia ensina a olhar as pessoas como postas de carne morna e móvel dotada de interessantes buracos e protuberâncias, desprovidas de personalidade, que servem apenas para proporcionar prazeres venéreos ilusórios (na medida em que nenhuma relação conjugal real corresponderá aos delírios com que o viciado em pornografia encheu a imaginação). O viciado em pornografia estaria muito mais à vontade diante de um robô sexual, como parece aliás já existir, que diante de uma pessoa que o ame. O que ele considera sexo não tem nada a ver com amor, não tem nada a ver com intimidade, não tem nada a ver, em suma, com a situação em que o ato seria perfeitamente ordenado. Ele só concebe o sexo desordenado, que foi treinado para apreciar. Passar dessa visão distorcida à prática do estupro, assim, é um pequeno pulo. Não digo que seja uma diferença apenas de grau, na medida em que o componente de violência física, ameaça ou abuso de drogas não é decorrência direta da pornografia, sendo apenas muito facilitado por ela. Mas a pornografia é a escola do estupro.

O segundo problema é a facilidade ilimitada de um sexo casual tratado como necessidade de todos. A revolução sexual prega que sexo é uma forma de diversão, em quase nada diferente de, sei lá, jogar bola, mas ao mesmo tempo algo necessário como beber água. Assim, há uma enorme quantidade de pessoas que saem à noite com o objetivo manifesto de ir para a cama com alguém. Afinal, é uma diversão apenas, não é mesmo? E faz até mal não recorrer a ele, dizem! O único problema que poderia ocorrer seria engravidar ou pegar uma doença venérea, e é para evitar isso que serve a camisinha. Deixando de lado o fato de que a famosa camisinha não é tão eficaz assim, podemos perceber nesta cultura do sexo casual um desrespeito básico àqueles que se há de tomar como parceiros. Só para começar, a tal da camisinha é uma barreira de borracha que grita “não quero nada com você, não quero que se misturem nossas sementes”. Além disso, a própria ideia de sair de casa com uma camisinha no bolso já mistura e bate num liquidificador mental e moral todas os possíveis parceiros sexuais da noitada. Nenhum deles é uma pessoa, em última instância, e cada um deles será medido por sua forma física e pouco mais.

A pornografia é a escola do estupro

E aí começa o problema mais sério no que diz respeito a estupros, que é o fato de que a moça ou o rapaz de forma física impecável consegue rapidamente um parceiro, enquanto o feio ou fora de forma não o consegue. E muitos destes, furiosos ao ver, noite após noite, sempre os mesmos outros saindo acompanhados do bar enquanto ele mesmo volta sozinho, são frequentemente quem acabará por apelar à violência, por considerar-se no “direito” de, eles também, ejacular dentro de alguém. É um falso, falsíssimo direito, mas como provar isso quando a prática da noitada parece indicar outra coisa? Como pode o bonitão sair com sua camisinha e voltar sem ela, enquanto o feioso – que se percebe como em nada ficando atrás do bonitão – volta com ela noite após noite, até que acabe seu prazo de validade? A frustração de uma expectativa francamente absurda, mas tratada como natural, só pode levar a um sentimento de frustração geral, que acaba vitimando inocentes.

Outro problema sério é a confusão feita por muitas moças entre estar sexualmente apelativa e estar bonita. Lembro-me de uma vez em que cheguei a ficar constrangido com a (falta de) roupa escolhida por uma familiar de minha esposa para sairmos juntos aos casais, à noite, num lugar quente. A moça – que não era feia – queria usar uma espécie de faixa que lhe tampava os bicos dos seios e a genitália e não muito mais. Minha esposa, vendo o quanto aquilo me constrangia, convenceu-a a usar algo mais decente. Para a mulher, expor-se como se fosse uma peça de picanha no açougue é algo degradante, e é justamente esta confusão entre a beleza e a exposição de carne quente que cria na cabeça dos mais pervertidos o desejo do estupro. Notem que não estou botando a culpa na pobre moça, que é uma vítima de um problema social grave. A exposição do corpo feminino e a confusão entre a sensualidade baixa e a beleza é algo que ela aprende da tevê, das fotografias que encontrava há uns anos nas revistas e hoje vê no Instagram etc. As moças simplesmente estão seguindo uma moda – como moças sempre fizeram ao longo da história de nossa espécie; moças e modas sempre andaram juntas – que as degrada, sem que consigam perceber a degradação justamente por perceberem aquilo como apenas uma moda, e assim confundirem sua transformação em alcatra com uma exposição ordenada de sua beleza. Mas o fato é que o homem, que é um ser predominantemente visual, percebe esse tipo de exposição de uma maneira muito diferente da da mulher. Via de regra, a moça é absolutamente incapaz de entender o efeito que sua apresentação como alcatra tem sobre a libido masculina, o que gera uma situação em que os sinais se perdem e são mal-interpretados, situação extremamente perigosa para ela. Assim, desfilar alcatramente à rua, especialmente à noite e em lugares mais desertos e menos iluminados, é, a seu modo, como sair com alguma outra coisa valiosíssima (ainda que nada seja tão valioso quanto a dignidade feminina, que o estuprador visa roubar): um relógio caríssimo, joias de ouro e pedras preciosas, o que for. É um risco sério, que a moça no mais das vezes não percebe. Ela é como um estrangeiro que sai à rua numa capital brasileira com uma máquina fotográfica cara, um telefone idem, um relógio caríssimo etc., tudo à mostra, por nunca ter andado por um lugar em que a criminalidade fosse um risco real.

E, finalmente, o derradeiro culpado cultural do estupro, o último problema social que permite àquela ínfima minoria de depravados, que sempre houve e sempre haverá (assim como sempre houve e sempre haverá uma ínfima minoria de santos, de gênios, de deficientes mentais etc.), atingir e violentar a dignidade de suas vítimas: o desaparecimento cultural do cavalheirismo e da civilidade. Esta é uma virtude que consiste em ver-se como parte da civis, da organização social que a todos une, ou deveria unir. O liberalismo individualista eliminou esta virtude, e assim transformou a maioria das pessoas em indivíduos desprovidos de laços com a comunidade como um todo. Assim, não apenas o estuprador se sente à vontade – como ser solitário que ele é, como vimos acima – para atacar como uma fera noturna a vítima que passa, mas ninguém se sente na obrigação de impedir tais ataques. A resposta imediata a eles deveria ser dada pelo cavalheirismo, que deveria fazer com que quase todos os rapazes vissem sua força física como estando à disposição da civis e, mais ainda, de todo o sexo feminino. Há alguns anos seria inimaginável que um depravado ejaculasse na orelha de uma moça num transporte público; hoje, para nossa vergonha, quando isso ocorre – e não é raro! – os demais ocupantes do carro fingem que não viram nada. Isso é falta de civilidade da parte de todos, claro que especialmente do depravado – o único culpado individual no caso –, e falta de cavalheirismo dos rapazes. Se algo assim acontecesse quando eu tinha 20 anos de idade, no primeiro “ai” da moça o sujeito já estaria no chão, a caminho da delegacia de polícia mais próxima.

Mas hoje os rapazes fingem não ter nada com isso. Ficam horas na frente do espelho admirando as bolinhas que lhes cresceram nos braços às custas de dúzias e mais dúzias de ovos deglutidos e sei lá quantas horas perdidas levantando ferros, mas, quando uma moça inocente pede socorro, para eles é como se nada acontecesse. É uma vergonha, uma tristeza, e um elemento social que dá aos mal-intencionados a certeza de poderem agir impunemente. Afinal, a polícia não está em toda parte, nem pode estar. Sua função é conduzir para a delegacia o mau elemento apreendido pelos cavalheiros, pelos rapazes que percebem qual é o reto uso de sua capacidade física. Há gente por todo lado, e no meio dessa gente há sempre muitos rapazes. Eles são, ou deveriam ser, os primeiros a responder a um pedido de socorro feminino, sendo seguidos por outras mulheres. Passado o perigo imediato, chamar-se-ia a polícia para conduzir o meliante à cela. Mas, quando não há nem civilidade nem cavalheirismo, cada um de nós está só no mundo. Inclusive e especialmente aquelas que são, sempre foram e sempre serão, por sua menor força física, as presas preferenciais dos realmente maus: as mulheres e as crianças.

Discernir a culpa individual inegável do estuprador não deve nem nos cegar aos elementos da (des)ordem social que os auxiliam, que listei acima, nem, muito menos, nos fazer imaginar besteiras, tratando “fiu-fiu” de pedreiro como espécie de estupro ou achando que a sociedade como um todo deseja o estupro. Não é o caso. É a decadência terminal de nossa sociedade, não suas bases sólidas, que facilita tão horrendo crime. E a solução não está em campanhas nem em confusões mentais, mas na educação de nossos filhos, para que cresçam cavalheiros, e na busca da ordenação da sociedade como um todo, não em sua desconstrução. Tijolo a tijolo.

Enquanto isso, permanece a dica que sempre dou a todos os mais frágeis: armem-se. Comprem armas de choque, borrifadores de gás lacrimogêneo, armas de fogo, o que estiver ao seu alcance. Afinal, estamos sós.

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