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Militares russos controlam a evacuação dos civis de Azovstal em Mariupol.
Militares russos controlam a evacuação dos civis de Azovstal em Mariupol.| Foto: EFE/EPA/Alessandro Guerra

Cerca de 200 anos atrás, muitas das mentes mais aguçadas da humanidade voltaram-se para algo que até então havia sido apenas passatempo de poucos: o desenvolvimento de meios capazes de substituir o trabalho humano e animal. Não que tais meios não existissem; a peculiaridade do fenômeno de que trato consiste na centralidade e preponderância, bem como na rápida difusão e constante modificação, do que antes era basicamente artesanal. Os romanos já faziam moinhos hidráulicos, por exemplo, mas o primeiro moinho de vento só foi aparecer séculos após o fim do império, e levou outros tantos séculos para espalhar-se de seu Afeganistão original à Espanha onde Quixote os tomou por gigantes.

No original grego, tekhné significava “artesanato”. Em latim, “indústria” significava “esforço”. Já hoje a antiga técnica, em proporções industriais, diz-se “tecnologia” (termo pseudogrego que Aristóteles entenderia como “ordenação do artesanato”). Temos até mesmo a tecnocracia, o governo que se considera “técnico”. Há quem confunda técnica e ciência, ou simplesmente divida esta em ciência pura (que não visa o desenvolvimento tecnológico) e ciência aplicada. Em todo caso, quando o que era artesanal tornou-se industrial, quando o processo de desenvolvimento dos meios (e dos meios de desenvolver mais meios, ad infinitum) passou a ser um fim em si, é indubitável que entramos numa nova era. Como tudo o mais debaixo do sol, é boa em alguns aspectos e péssima em outros, ótima em alguns e sofrível em outros.

Em todo caso, tal preponderância dos meios em relação aos fins possibilitou que se chegasse a extremos de negação prática do que qualquer outra sociedade civilizada consideraria principal. Das usinas nazistas da morte às “máquinas de morar” (mal) da arquitetura moderna, das arrepiantes misturas genéticas em que se faz até quimeras parcialmente suínas e parcialmente humanas às tentativas de “construção” de um ser dito transumano pelo enxerto de nano-robôs e outras maquinetas, perdeu-se de vista totalmente o que deveria ser a questão maior: para quê tudo isso? Qual é o nosso objetivo no mundo, e como isso ajuda ou atrapalha na nossa busca desse fim?

A ênfase no “como” que domina tanto a técnica quanto a própria ciência pura tende deixar de lado as muitíssimo mais importantes questões de “por quê” e “para quê”

A fantasia vai tão longe que após menos de 200 anos dessa loucura de meios desprovidos de fins, tendo – até agora – escapado do holocausto nuclear, o que não falta é gente que assuma como não só possível como altamente provável que haja em outros planetas seres com zilhões de anos de “avanços tecnológicos adiante de nós”, como se a loucura peculiaríssima da sociedade ocidental decadente fosse parte de um processo universal de eterno aperfeiçoamento. O que, claro, só faria sentido se houvesse uma perfeição a buscar. A arrogância de tal visão é exemplarmente explicitada no livro Contato, de Carl Sagan – sumo-sacerdote e apologista da tecnofilia cientificista mais desvairada – em que ao fim e ao cabo os terráqueos encontram ETs que mais parecem professores de Exatas de alguma faculdade americana.

Ora, o Unabomber também era professor de Exatas de uma faculdade americana, e provavelmente nem sua amantíssima mamãezinha o consideraria “perfeito”. Aliás, é extremamente comum que terroristas tenham tido excelente formação técnica – Bin Laden, por exemplo, era engenheiro. A razão disso é simples: a ênfase no “como” que domina tanto a técnica quanto a própria ciência pura tende deixar de lado as muitíssimo mais importantes questões de “por quê” e “para quê”. Pior ainda: cheio de si por dominar as mil e uma maneiras de fazer isto ou aquilo em seu limitadíssimo campo, o técnico tende a adotar visões radicalmente simplistas do mundo ao redor, dos problemas sociais, da religião, do que for.

Daí não apenas os terroristas, mas – bem mais perigosos – os participantes da nefanda interação entre a pesquisa, a política e a guerra. A bomba atômica é um exemplo claríssimo de tal perigo. Quando o físico Robert Oppenheimer contemplou a primeira explosão da bomba que criara, recitou palavras de um livro sagrado hindu: “Tornei-me agora Morte, o Destruidor de Mundos”. O pouco que conheço de hinduísmo me faz crer que na sua visão cíclica do universo tal destruição não seria para sempre. Os velhos, mulheres e crianças chacinados em Hiroshima e Nagasaki, entretanto, dificilmente achariam alívio em tal noção.

Armas são meios, e em si moralmente neutros. Aqui mesmo no Brasil houve uma proposta, durante um governo militar, de usar bombas atômicas para abrir um vasto canal navegável do Rio da Prata ao Centro-Oeste. Sem matar ninguém, claro. Somos humanos, e portanto ideias de jerico são nossa especialidade, mas ainda é bem melhor que explodir os outros. Eu mesmo sou atirador esportivo desde adolescente, mas felizmente nunca baleei ninguém. Creio que a única coisa que já fiz de algum modo comparável à ideia dos tecnocratas de verde-oliva foi implodir tubos de imagem de tevês velhas à bala, colher frutas atirando no cabinho, essas besteiras. Quem nunca?

Mas desde que o primeiro Cro-Magnon abriu a testa de um desafeto com um porrete nós tendemos a usar para fins condenáveis os meios que desenvolvemos. Reclamações com Adão e Eva, no balcão número um. Dada a equação dos progressos tecnológicos com a absoluta previsibilidade de nossa natureza, há hoje quem atropele os desafetos, fazendo do carro uma vasta bala de canhão. Por outro lado, mesmo um uso violento do porrete ou do carro pode ser justificado e até meritório quando se trata de salvar uma vida humana. O conceito de legítima defesa tem longa tradição, e pode ser resumido em “fazer o mínimo para que cesse um ataque ilegítimo contra um inocente”. Seu irmão gêmeo é o conceito de guerra justa, que trata da mesma coisa em escala maior e mais organizada.

No seio do desenvolvimento tecnológico amoral que domina este instante na história humana de que trato, as armas cresceram enormemente em poder de destruição e em quantidade. Um artesão medieval japonês podia levar meses para produzir uma única espada; uma fábrica moderna fabrica centenas de fuzis de excelente qualidade por dia. Uma flecha é perigosa, mas nenhum arco dispara rajadas. Arquimedes já fazia algo que pode ser comparado a uma granada, mas nem a escala industrial de produção nem o poder de destruição das granadas modernas estavam ao seu alcance. A capacidade destrutiva das armas modernas é tão grande que muitas armas tradicionais – como a funda, uma espécie de bodoque, com que Davi matou Golias, ou mesmo o arco-e-flecha – literalmente viraram brinquedos de criança.

No seio do desenvolvimento tecnológico amoral que domina este instante na história humana, as armas cresceram enormemente em poder de destruição e em quantidade

O resultado prático de tal incremento pode ser visto, e deve ser lamentado, na sofrida Ucrânia. Não se trata de uma guerra total, à moda anglo-saxã, em que primeiro se destrói tudo e depois se mata os raros sobreviventes. Afinal, a razão principal que levou Putin a invadir o país vizinho é a proteção dos russos no Sul e, principalmente, no Leste ucranianos. Na medida em que não pretende devolver ao governo ucraniano as áreas dominadas, ele mesmo terá de reconstruir tudo o que ele destruir por lá. Barragens destruidoras de artilharia como as usadas contra os islamistas chechenos (que agora estão lutando do lado russo; como ameaça uma musiquinha chata, “o mundo dá muitas voltas, a gente vai se encontrar”), por exemplo, deram lugar na Ucrânia a lentos avanços de infantaria e cavalaria blindada apoiada por artilharia, tentando não matar os civis russófonos que em tese estariam sendo resgatados. Ou, quiçá, matar menos deles. Afinal, numa guerra moderna a destruição maciça é simplesmente inevitável pelo próprio tipo de armamento usado. Um único atirador num edifício frequentemente só tem como ser abatido com a destruição do edifício inteiro. Até mesmo soldados de infantaria portam morteiros, bazucas, lançadores de granadas e outros meios de matar no atacado a uma certa distância.

Ao mesmo tempo, a quantidade prodigiosa de armamento que vem sendo mandada pelos EUA e – em muito menor escala – pelo resto da Otan só faz aumentar a destruição e o morticínio. Os EUA acabam de aprovar uma ajuda militar à Ucrânia que é maior que todo o orçamento militar anual russo e duas vezes e meia o orçamento militar anual da guerreiríssima Israel. Ainda que no meio da confusão da guerra a maior parte das armas acabe sendo desviada para o mercado negro, evidentemente surgem batalhas e mais batalhas, chacinas e mais chacinas, onde antes haveria rendições e acordos.

Uma coisa, afinal, é certa: a Rússia não vai perder. Ou, melhor dito, a Rússia só perderá se todos perderem, com a deflagração de uma guerra nuclear total. A Rússia não pode perder, e preferiria usar armas nucleares (que ela tem de sobra) tanto na Ucrânia quanto nas sedes da Otan a permitir uma Ucrânia nuclearmente armada e antirrussa. Contando que enfrentaria apenas as Forças Armadas ucranianas, a Rússia enviou menos de 10% de seu exército, e nem mesmo instituiu conscrição militar compulsória. Vendo-se diante de um suprimento aparentemente inesgotável de armas modernas, e, mais ainda, de armas que negam os meios mais tradicionais de avanço em campo aberto da doutrina militar russa (tanques em primeiro lugar e aviação em segundo), o Exército russo está sendo forçado a uma modalidade de combate muito mais destrutiva e ainda mais assassina. A destruição de Mariupol, cidade de maioria russófona onde se abrigava o maior contingente do Batalhão Azov (força paramilitar ucraniana ultranacionalista), é um triste exemplo disso.

Esta demoníaca escalada letal, possibilitada pela técnica enlouquecida em que o “como” é tudo, em que se tornar “Morte, o Destruidor de Mundos” parece supimpa mesmo, pode ser o início do fim do mundo como o conhecemos hoje

Ao mesmo tempo, a situação das forças que guardam o gigantesco estoque militar russo na Transnístria está se complicando pela soma de ações de sabotagem ucraniana na região e pelos planos moldavos de pedir incorporação à Romênia (logo, à Otan). Se a Moldávia voltar a ser romena, a Transnístria passará a ser uma parte ocupada por forças russas de um país-membro da Otan. Aí a coisa vai feder mais ainda, e será quase impossível impedir que a guerra se espalhe. A única solução para os russos é prosseguir no avanço a leste, provavelmente tomando Odessa quase casa a casa, com ocorreu em Mariupol. Ela assim passaria a dominar toda a área da antiga Nova Rússia (inclusive a Transnístria) e fazendo da Ucrânia um país sem acesso ao mar, espécie de nova Bolívia. Como será que se diz “salida al mar” em ucraniano?

A Polônia, ao mesmo tempo, de olho nas terras de sua antiga província da Galícia, está aproveitando a situação para fazer com os polacos de lá coisa muito parecida com a que Putin fizera com os russos do Donbas há alguns anos, dando-lhes cidadania mesmo tendo nascido fora de seu Estado. Não deixam de ter razão, na medida em que é na mesma Galícia que se encontra o cerne do movimento ultranacionalista ucraniano, que é tão antipolaco quanto antirrusso e antissemita. Duvido, contudo, que tenham qualquer pejo em enviar “tropas de paz” e retomar um bom naco da Ucrânia atual se acharem necessário. Ou mesmo possível. Os húngaros estão tentando ficar em cima do muro, mas é bastante improvável que tenham esquecido que há uma região da Ucrânia habitada por gente de etnia e fala húngaras colada em sua fronteira. Muitos deles, claro, já portadores de passaportes húngaros. O fato é que os despojos da Ucrânia já estão sendo ou bem arrancados ou bem cobiçados, numa guerra que – por mais galante que seja a defesa ucraniana – não tem como ser ganha.

Se fosse uma guerra lutada com espadas, ou mesmo com mosquetões e arcabuzes, o sangue também correria pelas ruas. Seria contudo muito menos difícil fugir dos invasores, na medida em que os guerreiros, a priori, só atacariam outros guerreiros. Já numa guerra moderna não se tem como saber ao certo se uma massa de velhos, mulheres e crianças na estrada não oculta guerreiros ou armas. A única maneira de ter certeza é tacar-lhes uma bomba, matando-os todos e deixando a triagem a cargo de São Pedro, como se viu tanto em vídeos vazados da ação americana no Afeganistão. Do mesmo modo, nenhum comandante moderno pensaria duas vezes antes de usar um obus para eliminar um atirador solitário; todas as demais opções custariam a vida de soldados seus. É praticamente impossível evitar matar inocentes numa guerra moderna, o que coloca sérios problemas morais até mesmo para o lado que está se defendendo justamente.

O objetivo americano ao provocar a Rússia até que ela fizesse uma barbaridade é assumidamente a criação de um segundo Afeganistão para a Rússia, nem que seja necessário resistir até o último ucraniano. A guerra soviética no Afeganistão, não esqueçamos, foi um dos fatores do fim da União Soviética. Mas o Afeganistão é longe e separado da Rússia pela maior cadeia de montanhas do planeta. A Ucrânia é ali do ladinho (Putin diria que édentro) da Rússia, sem que haja nenhum obstáculo geográfico, com bitola de trem igual, língua semelhante etc. Ao contrário do Afeganistão, ela simplesmente não é um país defensável. Destarte, para garantir que a guerra continue, e assim aumente o desgaste do exército russo, os EUA mandam mais e mais armas, possibilitando uma resistência desesperada que só pode fazer com que aumente ainda mais o cômputo de vítimas da guerra, sem modificar seu resultado. Como a Segunda Guerra Mundial fartamente comprovou, o que não falta na Rússia é soldado para gastar; mesmo contando com os alemães mortos na limpeza étnica da Europa Oriental no pós-guerra imediato, morreram cerca de quatro russos para cada alemão. Sendo, ainda mais, a questão ucraniana considerada pelo Kremlin uma “ameaça existencial” à própria sobrevivência da nação russa, como escrevi, para o invasor a possibilidade de perder é inimaginável. Antes o holocausto nuclear que a derrota...

Esta demoníaca escalada letal, possibilitada pela técnica enlouquecida em que o “como” é tudo, em que se tornar “Morte, o Destruidor de Mundos” parece supimpa mesmo, pode ser o início do fim do mundo como o conhecemos hoje. A detonação da menor parte dos arsenais nucleares russo e americano já provocaria uma mudança climática extrema, com efeito avassalador até mesmo no Hemisfério Sul. Para piorar, ao contrário do que ocorria na Guerra Fria – em que havia uma linha telefônica sempre conectada ligando a Casa Branca ao Kremlin, para evitar uma guerra acidental –, os EUA e a Rússia simplesmente não estão se falando. Comunicação zero, capacidade destrutiva virtualmente infinita.

Após um curto período em que tanto uma guerra na Europa quanto uma versão nuclear dos famosos duelos do Velho Oeste pareceram finalmente inimagináveis, voltamos, em versão pós-moderna piorada, ao horror do século passado, em que por vezes pareceu certo que nossos herdeiros seriam apenas as baratas.

Que o sangue de tantas vítimas inocentes chacinadas nas guerras modernas brade aos Céus e livre o mundo de tal fim.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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