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Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo
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Parece que agora sai mesmo um Ministério da Segurança. Se a situação da segurança pública no Brasil não fosse, infelizmente, um caso tão sério, com 60 mil homicídios por ano, para não falar nos incontáveis furtos, roubos, estupros e outras violências gravíssimas e inaceitáveis numa sociedade civilizada, seria uma piada. Ou, na melhor das hipóteses, um exemplo didático do que há de errado na política brasileira. Mais ainda com o primeiro ministro (no sentido cronológico, apenas. Por enquanto) da Segurança sendo um desarmamentista crônico, egresso do famigerado Partido Comunista.

A segurança pública, ou seja, a capacidade de cada cidadão ou (mais ainda) cidadã de passear pelas ruas sem medo de acontecer-lhe algo violento, é um fruto da civilidade. Foi para demonstrar a civilidade de seus súditos que Lady Godiva passeou nua e coberta de joias, montada num cavalo branco, pelas ruas da cidade que seu esposo governava. Nada lhe aconteceu; ao contrário, as janelas se fechavam à medida que ela passava, para que ninguém lhe causasse vergonha desvendando-lhe a mesma nudez que ela expunha voluntariamente na confiança de que isto mesmo aconteceria. A civilidade, ou seja, o dever de tratar bem ao próximo, que vem da percepção de fazerem ambos parte de um mesmo conjunto cívico em que uns ajudam os outros, é no Brasil de hoje uma piada. Mas ela é a base da segurança pública, como escrevi acima, na medida em que é apenas ela que pode garantir que se tenha um mínimo de chance de voltar para casa ileso quando se pisa nas ruas das grandes cidades.

Notem que não estou falando de espetáculos à la Lady Godiva: aqui o cavalo viraria churrasquinho, ela seria tão mais freneticamente estuprada quanto se soubesse ser ela a esposa do governante, e as joias estariam nas mãos de atravessadores antes que se tivesse tempo de dizer “insegurança”. Aqui não existe mais essa civilidade, a não ser no interior. E mesmo nele ela é inversamente proporcional à concentração demográfica, o que faz com que uma cidade média do interior seja apenas um pouco menos insegura que um bairro nobre de uma cidade grande. E é este fato, esta relação inversa da densidade populacional com a segurança, que indica o quanto está errada a ideia de federalizar a segurança. Ora, bolas, a situação-modelo da crise de segurança brasileira é justamente a da antiga capital federal. Brasília não vale, por ser menos uma cidade que um conjunto de estradas, mas federalizar o que quer que seja é carioquizá-lo. E, se há algo de que ninguém precisa hoje em dia, é ver o lugar onde mora ficar mais parecido com o Rio de Janeiro.

“Federalizar a segurança” é algo que não tem como acontecer, por ser uma tentativa de centralizar o que na verdade deveria ter sido introjetado. É levar para os políticos em Brasília o que é função do superego de cada um. A segurança pública, afinal, depende, antes de qualquer outra coisa, do que vai dentro da cabeça dos rapazes. São os rapazes que se sentem, ou não, parte da sociedade. São eles que escolhem se vão assaltar alguém ou se vão jogar bola, e vale notar que – contrariamente à asquerosa acusação das esquerdas aos membros das classes mais baixas – a pobreza não é um fator de risco. O que mais há é elemento antissocial de classe alta e média; a diferença é apenas a dificuldade que a polícia tem de botar as mãos nestes. Com a civilidade diminuindo, inclusive, aumenta mais ainda o número absoluto e porcentual de elementos antissociais em todas as classes.

“Polícia” vem de pólis, “cidade”. Antigamente, dizia-se “polícia” todo serviço público de manutenção: os jardineiros que cortam a grama das praças eram “polícia”, assim como o pessoal da iluminação pública que alguns políticos creem ser a solução para o tráfico de drogas, o da companhia de águas e esgoto etc. A polícia – no nosso sentido moderno, mais estrito – tem também como missão um trabalho de manutenção, retirando de circulação o que se espera que seja uma ínfima minoria de elementos antissociais. Mas, se a própria sociedade está gerando, pela falta de civilidade geral, proporcionalmente mais e mais destes elementos, a polícia não tem como fazê-lo. Ela depende de que o crime seja a exceção, não a regra, para que possa funcionar a contento dentro de um modelo civilizado.

O trabalho tradicional da polícia judiciária – no Brasil, a Polícia Civil – tornou-se impossível não apenas pela falta de verba e pessoal, mas pela simples quantidade de crimes. A polícia não tem como investigar; na verdade, ela não tem nem mesmo como registrar todas as ocorrências. Daí os “boletins de ocorrência eletrônicos” e outras invencionices que servem de atestado de falência da polícia. Um BO eletrônico é um papel que registra um furto para efeitos de seguro, mas poderia ser igualmente visto como uma declaração legal de que aquele crime não será investigado, que dirá punido. A outra polícia, dita ostensiva – no Brasil, a Polícia Militar –, por sua vez, tem uma missão simplesmente impossível: evitar que os crimes aconteçam. Essa missão nunca foi possível, mas antes os crimes eram poucos, e a presença de alguns homens fortes e armados rodando pelas ruas da cidade em busca de confusão poderia até, quem sabe, impedir um ou outro. Já nas circunstâncias atuais a PM corre de lá pra cá e de cá pra lá, apresentando dezenas, centenas, milhares de ocorrências por dia à Polícia Civil sem que isso atinja sequer um porcentual mensurável do total dos crimes. Como tantos outros heroísmos, o deles não alcança o objetivo buscado.

Os crimes comuns, de que tratamos ao falar de segurança pública, via de regra, acontecem cara a cara, pessoa a pessoa. São relações pessoais, se podemos falar assim. Há, sim, arrastões e outros crimes coletivos, e seu número só vai aumentar na medida em que são indicadores de uma situação de total desprezo pela civilidade da parte dos bandos de rapazes que os cometem, mas a maioria esmagadora é questão de um ou dois rapazes atacando uma ou duas outras pessoas – normalmente estas sendo menores, mais fracas, e no mais das vezes do sexo feminino. A polícia judiciária pode investigá-los, ou poderia se tivesse meios para tal. A polícia ostensiva, todavia, não tem nem poderia ter meios para impedi-los, a não ser que cobrisse as ruas das cidades de policiais. Mesmo assim, onde houvesse uma mulher sozinha ela ainda estaria em perigo, na medida em que não há mais a civilidade que deveria protegê-la e ela é percebida como presa fácil por qualquer rapaz mal intencionado. Afinal, mesmo que ela saiba artes marciais isso não estará escrito na testa, e via de regra a mulher é menor e mais frágil que o homem. Qualquer homem mal intencionado – e seu número, repito, só faz aumentar – é normalmente capaz de dominar qualquer mulher.

E é aí que entra a possibilidade de uma segurança feita por terceiros, por uma polícia ostensiva. Ela só pode funcionar bem se se tratar de uma força policial intimamente conhecedora de um território pequeno de que ela se encarregue. Só tem como agir efetivamente uma polícia ostensiva que saiba o que é normal em cada vizinhança, e não se afaste nunca da pequena área que conhece e domina. Só uma polícia que sabe que o sujeito andando de cabeça baixa pelo canto da calçada de noite é o chato da casa 286 vai deixá-lo em paz, mas vai, por outro lado, abordar o sujeito com cara de bom menino que nunca antes pisara naquela rua e, ao contrário do chato do 286, pode ser uma ameaça real.

Assim, uma polícia de rua funciona; uma polícia de bairro pode funcionar, com grandes dificuldades. Uma polícia municipal dificilmente fará mais que um serviço de gari de presos, levando para a delegacia criminosos já capturados pela população; e uma polícia estadual, como as que temos, não tem chance absolutamente alguma de funcionar bem numa sociedade em crise. E eis que agora nos vem o Temer com a federalização da segurança pública, que só pode ter efeitos contrários ao desejado. A Polícia Federal, convenhamos, apesar dos generosíssimos salários e das verbas com que quaisquer outros policiais sonham, tem basicamente duas missões policiais: impedir a entrada de contrabando, inclusive armas, e combater o tráfico de drogas. Provavelmente ela consegue ser muitas vezes menos eficiente nisso que as forças policiais cariocas nas suas missões, como não poderia deixar de ser com um território tão gigantesco quanto o dela.

Para que funcione uma polícia que não conheça intimamente o cotidiano do pedacinho de território de que toma conta, o único jeito é a ditadura. É fazer da polícia a razão de ser da sociedade e a fonte única de uma ordem social que – repito – deveria se dever à civilidade, deveria vir de um sentido de cidadania introjetado em cada cabeça de cada rapaz. É o controle invasivo e violento da vida, é a cidade coberta de policiais abordando a todos o tempo todo. É tratar todos os rapazes como criminosos em potencial o tempo todo, e todos os demais como prováveis ajudantes deles. É o fim do direito de ir e vir. É o fim da privacidade. É acordar com um fuzil na cara e o quarto cheio de policiais mascarados e achar isso normal. É a instituição da prisão administrativa para “guardar” em celas todos os que a polícia ache com cara suspeita, até que provem sua inocência. É o abuso de todos esses arquivos pessoais, papiloscópicos e genéticos digitais que vêm sendo colhidos a torto e a direito, com bancos de dados, de DNA e de impressões digitais que possibilitem à polícia judiciária saber o nome, endereço e situação bancária de todos os fregueses de uma prostituta… ou dos participantes de uma reunião política ou religiosa que não interesse a quem está no poder. É, em suma, uma situação tão péssima que pode até mesmo dar saudades da situação anterior, e uma situação que não pode durar mais que um curtíssimo período de tempo, sob pena de serem definitivamente perdidas as liberdades civis sem que se conquiste a segurança que se buscava em troca de abdicar delas. E é isso que se está fazendo (ou querendo fazer) no Rio de Janeiro sob intervenção, e é só isso que se pode fazer a partir de um Ministério da Segurança.

Ora, a solução seria fazer exatamente o contrário!

A imensíssima maioria da população é honesta e no mínimo lamenta a perda da civilidade. Ao mesmo tempo, os fatores que dão aos rapazes “superpoderes” de arrancar pela força o que desejarem das mulheres e dos mais velhos têm remédio. Bastaria equalizar as forças individuais, fazendo com que cada vítima em potencial fosse percebida como potencialmente igual em força e periculosidade a um ou dois rapazes para que as mulheres e os idosos deixassem de ser atacados sistematicamente. O equalizador já foi inventado há muito tempo, e é a arma curta de repetição: o revólver ou a pistola, que cabe num bolso e pode disparar cinco ou seis vezes sem precisar ser recarregado. Os bandidos já as têm, mas, por serem os únicos a tê-las, o poder que lhes é dado pelas armas é absurdamente desproporcional. As pessoas que deveriam tê-las, contudo, não as têm.

A existência de apenas umas poucas armas faz com que cada uma delas seja, em relação ao povaréu desarmado ao redor, poderosíssima. Já a existência de muitas armas, democraticamente espalhadas, cria uma situação em que uma arma individual não tem mais poder que um pedaço de pau, mas em que, ao mesmo tempo, a mulher e o homem, ou o idoso e o jovem, são exatamente parelhos em força e em perigo potencial. E assim desaparece a superioridade que na situação atual dá aos rapazes a possibilidade de facilmente tomar pela força o que quiserem de qualquer outra pessoa.

Se os políticos que nos desgovernam tivessem a decência e a honestidade de fazer valer o resultado do plebiscito que mandou acabar com essa pouca-vergonha de Estatuto do Desarmamento das vítimas e passassem a tratar das armas de fogo e munições exatamente como se tratam tantas outras ferramentas perigosas, como os serrotes, cordas, martelos, facas de cozinha etc., o grosso da criminalidade violenta desapareceria e, aos poucos, a civilidade voltaria a reinar, sem a necessidade de um período ditatorial que a cada dia parece mais inescapável pela crise atual. Se os rapazes antissociais, ao ver uma pessoa se aproximando sozinha pela rua, soubessem que ela teria uma forte chance de estar carregando uma arma de fogo, dificilmente a atacariam. Sua antissocialidade seria desviada para quaisquer outras coisas que não implicassem em ataque direto e violento a concidadãos mais frágeis. O serviço das polícias diminuiria tremendamente (aliás, é raríssimo, se é que existe, o policial que seja a favor do desarmamento da população honesta. Mas os ideólogos não se interessam por ouvir quem conhece o mundo real e seus problemas).

Resumindo, se os resquícios em franca putrefação de Estado que ainda temos no Brasil deixassem de abusar da parca autoridade que ainda têm impedindo as pessoas honestas e obedientes de exercer o próprio direito e dever de autodefesa, a criminalidade brasileira diminuiria estrondosamente. Não é necessário nenhum Ministério da (in)Segurança. Na verdade, ele é menos que desnecessário: é uma péssima ideia. O que é necessário é o respeito ao direito de autodefesa dos cidadãos, com o fim do obsceno Estatuto do Desarmamento. O que é necessário é que o Estado pare de pisar no pescoço dos cidadãos honestos, que são os únicos que obedecem por bem, para que possa correr atrás dos desonestos, que não vão obedecer a lei alguma. O que é necessário é que as vítimas em potencial deixem de ser a presa fácil que são hoje, e que os criminosos saibam disso. Se os políticos brasileiros tivessem um mínimo de vergonha na cara, com o país na situação em que está hoje por obra e graça de Suas Excelências, já teriam esvaziado Brasília e voltado para casa, não sem antes suspender o Estatuto do Desarmamento e isentar de impostos as armas e munições para que alguma ordem social pudesse voltar a se estabelecer sem muita demora.

Os predadores precisam ter medo, pois infelizmente é só assim que eles largam a presa. O medo pode ser de uma ditadura odienta, que impeça os direitos civis da totalidade da população, ou pode ser do revólver na bolsa da velhinha ou na cintura do coroa. Eu – e imagino que praticamente toda a população, com a exceção dos que tenham sido cegados pelas ideologias alienígenas – prefiro a segunda hipótese. Combatamos o crime com a liberdade, não com a ditadura. Chega de ditaduras, chega de proibições, chega de desarmamentismo de vítimas. Que o excelentíssimo senhor ministro da insegurança bote a viola no saco e vá cuidar da própria vida, que esse negócio de comunista arrancando armas das mãos dos cidadãos de bem já deveria ter acabado há muito tempo.

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