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Ivonaldo Alexandre/Arquivo Gazeta do Povo
Ivonaldo Alexandre/Arquivo Gazeta do Povo| Foto:

O fim da adolescência, na classe média brasileira, é marcado por um rito de passagem estranhíssimo: o longo e árduo processo pelo qual se obtém uma Carteira Nacional de Habilitação, ou CNH. É um pedacinho de papel que serve para garantir o direito de ir e vir diante de atentados despóticos do Estado. Quem cometer a imprudência de sair de casa de carro ou moto sem este patuá mágico de proteção pode até mesmo ter o próprio veículo roubado pelos representantes do Estado, se for flagrado indo a algum lugar nele. Mesmo que tenha pago religiosamente o resgate que o Estado cobra todo ano dos donos de veículos, uma taxação obscena de um bem cujo valor só deprecia. Mesmo pagando uma fortuna de impostos sobre o combustível. Sem este breve para espantar guardinhas que é a CNH, nada feito: o direito de ir e vir fica à disposição do primeiro agente do Estado que resolver implicar com o motorista.

Durante a adolescência, é comum que se seja submetido a miríades de constrangimentos e rituais sem sentido, o que faz com que este seja percebido como apenas mais um. O adolescente normalmente está preso demais ao imediatismo da ocasião, preocupado com a prova teórica, o psicotécnico, a prova prática (a famosa “baliza”), as dezenas de horas perdidas de forma completamente inútil engordando o bolso dos políticos e amigos de políticos que vivem de espoliar o jovem nas autoescolas. Gente tão honesta que nem o próprio governo confia neles: agora já é obrigatório que o aluno seja identificado por biometria; dizem que daqui a pouco os carros das autoescolas terão de ter câmeras viradas para dentro. Tudo coisa cara, que aumenta ainda mais o custo do processo ao mesmo tempo em que demonstra ainda mais a total falta de confiança que o caracteriza. É toda uma economia que se movimenta em torno da obrigatoriedade de se submeter àquele estranho ritual.

Mas eu agora fui, imaginem os senhores, forçado a participar dele novamente, com minhas longas barbas brancas. O fato de eu ter perdido uma perna proporcionou ao Estado uma desculpa para me forçar novamente àquela estranha posição: cercado de jovenzinhas desesperadas passando em série pela humilhação nas mãos de burocratas arrogantes em um pátio escaldante, tudo para fazer alguns malabarismos com o automóvel que pouco ou nada têm a ver com dirigi-lo no mundo real. Dirijo – autorizado pelo Estado, aliás, como se o Estado tivesse, por alguma razão que desconheço, a capacidade de me autorizar ou não a fazer algo que faço bem – há coisa de 30 anos. Para passar na famigerada baliza, claro, tive de tomar aulas de autoescola novamente. Afinal, lembro novamente, aquele ritual pouquíssimo ou nada tem a ver com as habilidades necessárias para dirigir de verdade. Passei uma tarde entrando e saindo com o carro daquela marcação quadrada de cabos de vassoura que quase nada tem a ver com uma vaga (a não ser, talvez, uma vaga especialmente curta entre dois caminhões especialmente largos; em qualquer outra, usar as técnicas demandadas pela prova levaria a subir na calçada), preparando-me para cumprir à risca o ritual no dia seguinte.

E no dia seguinte lá estava eu. Entendi como deviam se sentir os novos sacerdotes, celebrando sua primeira missa sob a supervisão de um sacerdote mais experiente, antes de a reforma litúrgica fazer disso algo bem mais fácil. Rituais complexos e cheios de simbolismo, e ao mesmo tempo perfeitamente diferentes de quaisquer ações normais que se desempenhe ao longo da vida cotidiana, são sempre difíceis de dominar logo de cara. Tive de prestar atenção suprema a um monte enorme de detalhes que não fazem diferença alguma na vida real, mas que ali são o que separa o aprendiz do “habilitado”. É um ritual, pura e simplesmente, com tudo o que marca um ritual: a aparente arbitrariedade e inflexibilidade das rubricas, o cuidado com o detalhe, a inutilidade para qualquer outra ação prática. Não há diferença alguma entre as habilidades necessárias para passar na prova de baliza e as que se requerem para uma invocação demoníaca clássica, com pentagrama e velas pretas. Ou as necessárias para uma modelo desfilar, fazer carão e bocão, dar meia-volta e desfilar de volta. Ou, ainda, para oferecer um ebó a um orixá na beira de uma cachoeira. Aquilo não tem nada a ver com dirigir; o automóvel, ali, é uma mera desculpa, literalmente um veículo com o qual se cumpre um ritual. Que, como todo ritual, é fechado em si mesmo e alheio à mera ideia de utilidade prática. A CNH é só um papel que atesta que a pessoa teve dinheiro e tempo suficientes para fazer alguns rituais usando um carro especialmente adaptado em um lugar sem trânsito.

O Estado começou a se arrogar o direito de atrapalhar a vida das pessoas que querem dirigir um carro (mas não, curiosamente, um cavalo ou uma bicicleta) por razões históricas bastante curiosas: o surgimento do automóvel como meio de transporte de massa – ou pelo menos da massa da classe média – ocorreu de modo coetâneo ao imenso crescimento do poder do Estado que marcou a primeira metade do século passado, vindo ao seu auge no nazifascismo e no comunismo de meados do século. É fácil imaginar um Getúlio Vargas, no processo de estender totalitariamente suas garras por todos os aspectos da vida nacional, mandando um de seus inúmeros bajuladores escrever um Código de Trânsito que exigisse (por que não?) dos motoristas de automóvel “para uso pessoal ou para simples desporte” e dos condutores de bonde provas práticas e teóricas. Já os motoristas profissionais passaram a precisar, ainda, de aprovação em uma prova oral versando sobre a mecânica do automóvel e a localização dos principais locais de entretenimento da cidade. Sério.

A lei pela qual o Estado se erigiu em árbitro de quem pode e como pode dirigir saiu em 1941, num momento em que pela primeira vez a classe média crescente estava começando a se motorizar. O resultado é que obter uma habilitação tornou-se, desde então, um rito de passagem que mostra que o jovem pertence solidamente à classe média. É até interessante observar que o preço do processo de obtenção da CNH subiu bruscamente, pela introdução de uma nova série de arbitrariedades inúteis e caras no processo, mais ou menos na mesma ocasião em que a classe C se viu perto de ascender à classe média. Foi, parece-me, uma maneira de impedir que esta classe se apropriasse facilmente deste símbolo da classe média tradicional. Os pobres podem ter andado de avião, mas dirigir pelas ruas já seria demais!…

A CNH, claro, não indica absolutamente nada sobre a capacidade real de um motorista. Conheço muita gente que dirige muito bem e não tem habilitação, e conheço quem seja incapaz de ligar um carro, mas é feliz possuidor de uma CNH. A relação entre CNH e capacidade de direção é completamente supersticiosa, traçando paralelos simpáticos onde não existe nenhuma relação de causa e efeito. A prova prática é exatamente o que se chama, em termos técnicos, de “simpatia”: uma imitação ritualística de uma realidade ausente que se pretende magicamente atrair. Assim como algumas moças cozinham a própria roupa de baixo e dão ao pretendente a água para beber, na esperança de que ele se sinta imediatamente apaixonado, o Estado obriga jovenzinhas apavoradas a conter o pânico e fazer alguns malabarismos ritualísticos com o volante e os pedais de um carro, e daí dá um tremendo salto ilógico ao proclamá-las capazes de dirigir no trânsito. E, mais longe ainda da realidade, proclamando incapazes os que não tenham passado pelo ritual. Passar na baliza só mostra que a pessoa não tem grandes dificuldades em lembrar dos detalhes daquele ritual naquele calor, sob a tremenda pressão psicológica gerada pelos custos obscenos do processo. Não tem nada a ver com a capacidade ou incapacidade de dirigir um carro no trânsito, que é o que interessa. Ou deveria interessar.

Ora, pombas, é evidente que o Estado não tem nem o direito nem a capacidade de definir quem sabe, ou pode, dirigir um automóvel. Que ele tente fazê-lo é apenas uma herança da tentativa getulista de totalitarismo, alimentada ao longo das décadas pela cobiça dos envolvidos na mesma economia de compadrio que nos deu o kit de primeiros socorros e nos dá e tira regularmente a “necessidade” de comprar extintores.

Além disso, a incapacidade flagrante do Estado de definir quem é e quem não é efetivamente capaz de dirigir faz com que a CNH seja, mais que um mero perigo público, um atentado ao direito. Quando uma pessoa portadora de CNH, completamente errada e sem capacidade efetiva de controlar o próprio veículo, provoca um acidente vitimando uma pessoa que não a tem, mágica e injustamente o ônus da prova se reverte: a vítima se torna culpado e o culpado, vítima. Do mesmo modo, uma pessoa “habilitada” que suba com o carro num ponto de ônibus e mate todos os que ali estavam não terá de pagar à Justiça mais que uma cesta básica pelo crime. A CNH é literalmente uma autorização para matar, sem ser de modo algum prova de capacidade de direção. Já as penas para quem for flagrado sem portar a carteirinha mágica, claro, são loucamente altas. Matar com o carro pode, se se tiver CNH; dirigir bem sem que a babá governamental autorize, não. Ao mentir oficialmente e por escrito, afirmando a capacidade de dirigir no trânsito das pessoas que tenham cumprido os rituais da prova de baliza, o Estado se torna responsável pelos crimes que cometam as pessoas que ele proclama habilitadas.

Quando se acaba a autoescola e se passa nas provas todas, é chegada normalmente a hora de aprender a dirigir, apesar da mentira legal. A prática atual de dar uma permissão provisória, que será revogada caso a pessoa seja multada, é uma forma de piorar ainda mais a situação ao colocar outras exigências no mais das vezes absurdas à frente da capacidade real de direção. Quem acaba de ser habilitado e não sabe dirigir precisa primeiro aprender a estacionar o carro em uma vaga de verdade. Ao mesmo tempo, precisa aprender as muitas regras de trânsito real – quem cede a vez numa rua de mão dupla em que cabe um carro só, quem vai ter na realidade a preferência nos vários tipos de cruzamento e entroncamento, e inúmeras outras regrinhas práticas que fazem com que haja alguma fluidez no trânsito brasileiro. Da prova prática, a pessoa terá de esquecer de inúmeras irrelevâncias, muitas vezes até perigosas, como a obrigatoriedade de parar completamente o veículo quando houver sinalização horizontal, mesmo que se veja que não vem ninguém. O perigo desta prática é tamanho que uma instrutora de autoescola me contou que o carro deles tem a traseira toda amassada por ser comuníssimo que, ao frear subitamente em meio ao trânsito para cumprir a tresloucada regrinha, alguém seja surpreendido e bata na sua traseira.

É por essas e outras que pessoas de bom senso mantêm-se longe de carros de autoescola no trânsito: eles não se comportam como as pessoas normais. Não dirigem como os outros dirigem. Seguem regras que não são as do trânsito normal, e podem provocar acidentes sérios. E é isso que suas vítimas aprendem, porque estão lá não para aprender a dirigir, sim para aprender a passar na prova, a cumprir aquele bizarro ritual, e é isso que é exigido das pobres jovenzinhas à beira das lágrimas naqueles pátios quentíssimos em que os burocratas divertem-se com sua humilhação. É um ritual vazio, que não deveria ter razão de ser, e ainda por cima é um perigo público. Já passou da hora de acabarmos com essa triste herança da ditadura getulista.

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