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Amigo secreto

E o ano está acabando e os pedidos por livros para amigos secretos começam a pipocar. Acredito não ter dito antes, mas vendo livros em uns pontos comerciais aqui de Araucária, uns dez apenas. Compro-os em liquidações ou em editoras de ponta de estoque e deixo-os consignados em padarias, floriculturas e mercadinhos – que o dono do mercado não veja que estou chamando seu estabelecimento de mercadinho. É um negócio de baixo investimento, pouco lucro e trabalho tranquilo. Tenho preguiça de crescer.

Deslembrando que esta é uma época em que os livros vendem bem, não gosto muito de amigo secreto. De fato, não gosto muito de dar presentes – e jogo tudo na conta de minha precariedade financeira e desapego por datas festivas. Ontem à noite, por exemplo, dei um chocolate a uma moça. Custaram-me dois reais. Como se trata de uma moça linda de humores incontroláveis, perguntou-me se estava querendo engordá-la. Solicitei, então, o estorno do chocolate, ação que foi efusivamente criticada. Para que ambas as partes chegassem a um acordo amistoso, resolvi abraçá-la.

Ontem também foi dia de distribuição da nova edição do jornal e apareci na loja de calçados que anuncia com a gente desde a primeira edição – a gente, a gente, a gente: é a minha muleta gramatical predileta. Recebi os valiosos cinquenta reais e conversei um tanto com as simpáticas moças do caixa. É, como te disse, ante-época de amigos secretos e estavam elas a especular se este ano vai ter ou não na loja – o pai do proprietário morreu recentemente, era um entusiasta de amigos secretos, acreditam que vai ter, apesar das coisas não estarem em ritmo de comemoração.

O proprietário da loja de calçados é amigo meu também, o que você já poderia intuir quando falei que ele anuncia em um jornal literário desde a primeira edição, quase quatro anos, prova extrema de amizade. Ao ouvir as atendentes, me abateu uma tristeza límpida porque comecei a percorrer os livros que ele me encomendou para presentear seu pai nos fins de ano, pensei que aquele senhor leu alguns livros que vendi e que foram, em alguns casos, folheados por mim, pois tenho o estranho hábito de ler as encomendas antes de entregá-las, com todo o cuidado, reitero.

Semana que vem será a minha banca de TCC. Defenderei a importância de Rubem Braga como jornalista, principalmente em suas coberturas de política e de guerra. Será o fim de um ciclo – também por isso ando a dar chocolate para antigos amores – e neste domingo já me enfio em um novo vestibular. Os corredores da universidade parecem-me cada dia mais imemoriais e distantes.

Uma de minhas professoras anda a passar por delicados problemas familiares de saúde e é fim de ano e ela tem que dar conta de todos estes afazeres que a vida relega sem perdão. Não é nada fácil esta vida. Nossos pais em sua existência precária, nosso coração abarrotado de sonhos inconclusivos, o passado que nos visita sem pedir licença, os antigos amores que andam a chorar longe de nós, a mulher que apaixonamos e quer apenas a nossa amizade, a bebida barata que sobrou de terça-feira, a doença que surge e arrasa e quer levar quem amamos, o frio da cidade, a lua engolida pelas nuvens, quando acordamos com o corpo envelhecido.

Acordei melancólico hoje.

Almoço sozinho no pequeno restaurante aqui ao lado. Uma senhora também. Ela coloca a bolsa numa cadeira vazia, com um certo cansaço. Pergunto se não quer almoçar na mesma mesa que eu. Ela quer, sim.

– Sabe, moço, eu estava precisando falar com alguém, mas não quero te aborrecer, você parece tão feliz…

Me conte sua história, minha senhora.

 

Ricardo Pozzo

Ricardo Pozzo

 

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