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Como o coronavírus mata as pessoas
Imagem divulgada pelo hospital da Universidade George Washington mostra os danos causados pelo novo coronavírus (amarelo) nos pulmões de um homem de 59 anos, que não resistiu à covid-19.| Foto: Reprodução/Universidade George Washington

Milhares de trabalhos de pesquisa científica sobre Covid-19 e Sars-CoV-2 estão sendo desenvolvidos em todo o mundo. Conforme esses estudos vão sendo publicados, uma imagem mais clara do vírus e da doença que ele causa vai se desenhando. Pouco ainda se sabe sobre esse inimigo invisível a olho nu e que já levou a óbito mais de 170 mil pessoas (número que se tem registro até o momento), mas um artigo* publicado nesta semana na revista Science traz uma síntese de como o novo coronavírus ataca.

De acordo com a publicação – mantida pela Associação Americana para o Avanço da Ciência, considerada a maior sociedade científica do mundo – o novo coronavírus afeta não apenas os pulmões – embora esse órgão seja o primeiro alvo do agressor –, mas também rins, coração, cérebro e intestinos.

O que os pesquisadores têm procurado entender é a rápida evolução de como o vírus ataca as células ao redor do corpo humano, especialmente em aproximadamente 5% dos pacientes que ficam gravemente doentes e acabam morrendo. Uma das dificuldades do trabalho, segundo especialistas ouvidos pela Science, é a busca de informações em pequenos estudos e relatos de casos, geralmente publicados em alta velocidade e ainda não revisados por pares.

"[A doença] pode atacar quase tudo no corpo, com consequências devastadoras. Sua ferocidade é de tirar o fôlego e humilhante", declarou à revista o cardiologista Harlan Krumholz, da Universidade de Yale, que lidera vários esforços para reunir dados clínicos sobre a covid-19.

O começo da infecção

O que os pesquisadores descobriram até agora é que, quando uma pessoa infectada expele gotículas carregadas de vírus e outra pessoa as inala, o novo coronavírus, chamado Sars-CoV-2, entra no nariz e na garganta. No revestimento do nariz ele encontra um lar bem-vindo segundo constataram cientistas do Wellcome Sanger Institute e outras instituições. Eles descobriram que, no nariz, o Sars-CoV-2 se aproveita de um receptor específico chamado ACE2 (enzima conversora da angiotensina-2) para entrar na célula. Essa proteína aparece em diversas partes do corpo, como pulmões, coração, rins e intestino, e sua principal função é reduzir a pressão sanguínea. Uma vez dentro da célula, o vírus ‘sequestra’ as máquinas celulares, fazendo inúmeras cópias de si mesmo e invadindo novas células.

À medida que o vírus se multiplica, uma pessoa infectada pode lançar grandes quantidades dele, principalmente durante a primeira semana. Os sintomas podem estar ausentes neste momento. Ou a nova vítima do vírus pode desenvolver febre, tosse seca, dor de garganta, perda de olfato e paladar ou dores na cabeça e no corpo.

Conforme os pesquisadores relataram à Science, se o sistema imunológico não repelir o Sars-CoV-2 durante esta fase inicial, o vírus marcha pela traqueia para atacar os pulmões, onde pode se tornar mortal. No pulmão, o novo coronavírus se multiplica rapidamente nos alvéolos, que são revestidos por uma única camada de células ricas em receptores ACE2.

“Normalmente, o oxigênio atravessa os alvéolos para os capilares, pequenos vasos sanguíneos; o oxigênio é então transportado para o resto do corpo. Mas enquanto o sistema imunológico luta contra o invasor, a própria batalha interrompe essa transferência saudável de oxigênio. Os glóbulos brancos da linha de frente liberam moléculas inflamatórias chamadas quimiocinas, que por sua vez convocam mais células imunes que têm como alvo matar células infectadas por vírus, deixando para trás um guisado de células mortas e fluidas (pus). Essa é a patologia subjacente da pneumonia, com seus sintomas correspondentes: tosse, febre, respiração rápida e superficial”, descreve a reportagem com base no relato dos pesquisadores.

Alguns pacientes com covid-19 se recuperam. Outros, porém, deterioram-se de repente, desenvolvendo uma condição chamada síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA). Os níveis de oxigênio no sangue caem e eles se esforçam cada vez mais para respirar. Nas radiografias e nas tomografias computadorizadas analisadas pelos pesquisadores vê-se que seus pulmões estão cheios de opacidades brancas onde deveria estar o espaço negro (o ar). Geralmente, esses pacientes acabam usando ventiladores pulmonares, e muitos morrem. As autópsias mostram que seus alvéolos ficaram cheios de líquido, glóbulos brancos, muco e detritos das células pulmonares destruídas.

O impacto do coronavírus em todo o corpo

Segundo a conclusão de estudos feitos até agora, em casos graves, o Sars-CoV-2 aterrissa nos pulmões e pode causar danos profundos nesse órgão. Mas o vírus, ou a resposta do corpo a ele, pode ferir muitos outros órgãos. Os cientistas ouvidos pela Science explicaram que estão apenas começando a investigar o alcance e a natureza desse dano. Com base no que se conhece até aqui, a revista descreveu o que ocorre em vários órgãos do corpo humano atacado pelo vírus:

Pulmões

Células imunes se aglomeram aos alvéolos inflamados, cujas paredes quebram durante o ataque do vírus, diminuindo a captação de oxigênio. Os pacientes tossem, a febre aumenta e é preciso cada vez mais esforço para respirar.

Fígado

Até metade dos pacientes hospitalizados têm níveis de enzimas que sinalizam um fígado em dificuldades. Um sistema imunológico em overdrive (ativação excessiva as células assassinas naturais) e medicamentos administrados para combater o vírus podem estar causando o dano.

Rins

O dano renal é comum em casos graves e aumenta a probabilidade de morte. O vírus pode atacar os rins diretamente ou a insuficiência renal pode fazer parte de eventos no corpo todo, como a pressão sanguínea em queda livre.

Intestinos

Relatórios de pacientes e dados de biópsia sugerem que o vírus pode infectar o trato gastrointestinal inferior, rico em receptores ACE2. Cerca de 20% ou mais dos pacientes têm diarreia.

Cérebro

Alguns pacientes com covid-19 apresentam derrames, convulsões, confusão mental e inflamação cerebral. Os médicos estão tentando entender quais são causados diretamente pelo vírus.

Olhos

A conjuntivite, inflamação da membrana que reveste a frente do olho e a pálpebra interna, é mais comum nos pacientes mais doentes.

Nariz

Alguns pacientes perdem o sentido do olfato. Os cientistas especulam que o vírus pode subir nas terminações nervosas do nariz e danificar as células.

Coração e vasos sanguíneos

O vírus entra nas células, provavelmente incluindo aqueles que revestem os vasos sanguíneos, ligando-se aos receptores ACE2 na superfície da célula. A infecção também pode promover coágulos sanguíneos, ataques cardíacos e inflamação cardíaca.

Reação do sistema imunológico

Alguns médicos ouvidos na reportagem suspeitam que a força motriz em muitas trajetórias da queda de pacientes gravemente enfermos seja uma reação exagerada desastrosa do sistema imunológico conhecida como ‘tempestade de citocinas’, deflagrando uma resposta hiperinflamatória. Citocinas são moléculas químicas de sinalização que orientam uma resposta imune saudável, mas em uma ‘tempestade de citocinas’ os níveis de certas citocinas sobem muito além do necessário e as células imunológicas começam a atacar tecidos saudáveis. Pode ocorrer vazamento de vasos sanguíneos, queda da pressão arterial, formação de coágulos e falência catastrófica de órgãos.

Como o vírus ataca o coração e os vasos sanguíneos é um mistério, mas dezenas de pré-impressões e documentos, segundo a reportagem, atestam que esse dano é comum. Um artigo de 25 de março publicado na JAMA Cardiology – revista especializada em cardiologia, da Associação Médica Americana – documentou danos cardíacos em quase 20% dos pacientes de 416 hospitalizados por covid-19 em Wuhan, na China. Em outro estudo de Wuhan, 44% dos 138 pacientes hospitalizados apresentaram arritmias.

A perturbação parece se estender ao próprio sangue. Entre 184 pacientes com covid-19 em uma UTI da Holanda, 38% tinham sangue coagulado de maneira anormal e quase um terço já tinha coágulos, de acordo com um artigo de 10 de abril da Thrombosis Research. Os coágulos sanguíneos podem se romper e aterrissar nos pulmões, bloqueando as artérias vitais – uma condição conhecida como embolia pulmonar, que teria matado pacientes com covid-19. Coágulos das artérias também podem se alojar no cérebro, causando derrame.

“Quanto mais olhamos, maior a probabilidade de que os coágulos sanguíneos sejam os grandes atores na gravidade e mortalidade da doença por covid-19.”

Behnood Bikdeli, Universidade de Columbia.

A infecção também pode levar à constrição dos vasos sanguíneos. Há relatos coletados pela Science de isquemia nos dedos das mãos e dos pés – uma redução no fluxo sanguíneo que pode levar a inchaço, dígitos dolorosos e morte de tecido.

O fato de a covid-19 atingir os vasos sanguíneos pode ajudar a explicar por que os pacientes com danos pré-existentes nesses vasos, por exemplo, devido a diabetes e pressão alta, enfrentam maior risco de doenças graves. Dados recentes do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) de pacientes hospitalizados em 14 estados dos EUA descobriram que cerca de um terço tinha doença pulmonar crônica – mas quase o mesmo porcentual apresentava diabetes e metade deles apresentava pressão alta pré-existente.

Os cientistas estão lutando para entender exatamente o que causa o dano cardiovascular. O coronavírus pode atacar diretamente o revestimento do coração e dos vasos sanguíneos, que, como o nariz e os alvéolos, são ricos em receptores ACE2. Ou talvez a falta de oxigênio, devido ao caos nos pulmões, danifique os vasos sanguíneos. Ou uma 'tempestade de citocinas' pode devastar o coração, assim como outros órgãos.

"Ainda estamos no começo. Realmente não entendemos quem é vulnerável, por que algumas pessoas são afetadas tão severamente, por que ocorre tão rapidamente ... e por que é tão difícil [para alguns] se recuperar."

Harlan Krumholz, cardiologista da Universidade de Yale.

Várias frentes de luta contra o coronavírus

Os temores mundiais de falta de ventilação por falha nos pulmões têm recebido muita atenção. Mas há outro equipamento que também requer prioridade em meio à pandemia: máquinas de diálise. "Se muitas pessoas não estão morrendo de insuficiência pulmonar, estão morrendo de insuficiência renal", declarou à revista a neurologista Jennifer Frontera, da Universidade de Nova York, que tratou milhares de pacientes com covid-19. Seu hospital está desenvolvendo um protocolo de diálise com diferentes máquinas para dar suporte a pacientes adicionais. A necessidade de diálise pode ser porque os rins, abundantemente dotados de receptores ACE2, apresentam outro alvo viral.

De acordo com um levantamento, 27% de 85 pacientes hospitalizados em Wuhan apresentaram insuficiência renal. Outro estudo relatou que 59% dos quase 200 pacientes hospitalizados com covid-19 nas províncias de Hubei e Sichuan, na China, tinham proteína e sangue na urina, sugerindo danos nos rins. Aqueles com lesão renal aguda (LRA) tiveram uma probabilidade cinco vezes maior de morrer do que os pacientes com covid-19 sem ela.

“O pulmão é a principal zona de batalha. Mas uma fração do vírus possivelmente ataca o rim. E, como no campo de batalha real, se dois lugares estão sendo atacados ao mesmo tempo, cada um fica pior”, explicou Hongbo Jia, neurocientista do Instituto de Engenharia Biomédica e Tecnologia de Suzhou da Academia Chinesa de Ciências.

Golpeando o cérebro

Outro conjunto impressionante de sintomas em pacientes com covid-19, segundo pesquisas, centra-se no cérebro e no sistema nervoso central. Frontera revelou à reportagem que os neurologistas são necessários para avaliar de 5% a 10% dos pacientes com coronavírus em seu hospital. Mas ela diz que "provavelmente é uma subestimação grosseira" do número cujos cérebros estão lutando, principalmente porque muitos são sedados e usam ventiladores.

A médica da Universidade de Nova York contou que há pacientes com encefalite por inflamação cerebral, convulsões e uma "tempestade simpática", uma hiperreação do sistema nervoso simpático que causa sintomas semelhantes a convulsões e é mais comum após uma lesão cerebral traumática. Algumas pessoas com coronavírus perdem a consciência brevemente. Outros têm derrames.

Robert Stevens, médico intensivista da Johns Hopkins Medicine, explicou que os receptores ACE2 estão presentes no córtex neural e no tronco cerebral, mas não se sabe em que circunstâncias o vírus penetra no cérebro e interage com esses receptores.

Há ainda outros fatores que poderiam estar danificando o cérebro de pacientes com covid-19. Por exemplo, uma tempestade de citocinas pode causar inchaço no cérebro, e a tendência exagerada do sangue para coagular pode desencadear derrames.

Atingindo o intestino

Há crescentes evidências de que o novo coronavírus, como seu primo Sars, pode infectar o revestimento do trato digestivo inferior, onde os receptores cruciais da ACE2 são abundantes. O RNA viral foi encontrado em até 53% das amostras de fezes dos pacientes da amostra. Em um artigo publicado na Gastroenterology - veículo oficial de informação da Associação Americana de Gastroenterologia -, uma equipe chinesa relatou encontrar a casca de proteína do vírus nas células gástrica, duodenal e retal nas biópsias de um paciente com covid-19.

Relatórios recentes sugerem que até metade dos pacientes, com média de cerca de 20% nos estudos, experimentam diarréia, afirmou à Science Brennan Spiegel, do Cedars-Sinai Medical Center, em Los Angeles.

Os pesquisadores observam que os intestinos não são o fim da marcha do coronavírus pelo corpo. Por exemplo, até um terço dos pacientes hospitalizados desenvolvem conjuntivite – olhos rosados e lacrimejantes – embora não esteja claro se o vírus invade diretamente o olho. Outros relatórios sugerem danos no fígado: mais da metade dos pacientes com covid-19 hospitalizados em dois centros chineses apresentavam níveis elevados de enzimas, indicando lesão no fígado ou nos dutos biliares. Mas vários especialistas disseram à Science que a invasão viral direta provavelmente não é a culpada. Eles avaliam que outros eventos em um corpo em falha, como drogas ou um sistema imunológico em excesso, são mais prováveis de causar danos ao fígado.

Este mapa da devastação que o novo coronavírus pode causar no corpo ainda é apenas um esboço, segundo a avaliação dos cientistas ouvidos pela reportagem. Levará anos de pesquisas minuciosas para aprimorar o quadro de seu alcance

*Parte desse texto foi extraído na íntegra da revista Science, editada pela Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS).

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