

Mauri em Pacaraima, na fronteira do Brasil com a cidade venezuelana de Santa Helena, em setembro de 2005, quando fez reportagem sobre a exploração de crianças e adolescentes.
“Você nunca mais vai voltar ao Paraguai.” Essa foi a frase intimidatória que o jornalista Mauri König relata ter ouvido de um dos três homens que o espancaram e quase o mataram estrangulado
com uma corrente numa estradinha vicinal do município paraguaio de San Alberto. Um dos autores da agressão vestia farda da Polícia Nacional paraguaia.
König não estava lá por acaso. Ele fazia uma reportagem sobre a existência de jovens brasileiros nos quartéis do país vizinho. O atentado, que virou notícia em vários países e obrigou o governo paraguaio a reconhecer as práticas de violação de direitos humanos no país, ocorreu em 19 de dezembro de 2000. O Ministério Público do Paraguai abriu investigação, mas um ano depois o caso foi arquivado sem que os autores do crime fossem identificados.
Os agressores de Mauri König em San Alberto continuam impunes, mas não só a reportagem teve continuidade – provando que havia jovens brasileiros no Exército paraguaio – como houve desdobramento com a revelação de uma tropa fantasma, criada pelas Forças Armadas para alimentar um esquema gigantesco de corrupção. O aviso dos criminosos não foi suficiente para intimidar o jornalista: desde o atentado, König voltou várias vezes ao Paraguai para reportagens investigativas.
Essa é uma das muitas histórias reais que marcam o trabalho desse paranaense de Pato Branco. São casos pouco mostrados pelos meios de comunicação e que para elucidá-los é necessário ir aos limites do bom jornalismo.
Mauri König começou na profissão em Foz do Iguaçu, na início dos anos 90. Mesmo atuando longe dos grandes centros, suas reportagens extrapolaram as fronteiras do Paraná. Neste ano, ele reuniu alguns dos seus trabalhos em livro, muitos deles premiados por instituições brasileiras e estrangeiras. Narrativas de um correspondente de rua, editado pelo Instituto Cultural de Jornalistas dos Paraná, revela a dura realidade de pessoas condenadas pela miséria e o esquecimento. É também uma denúncia de algumas das mazelas que afetam os países da América do Sul.
Nesta entrevista ao Certas Palavras, Mauri fala abertamente das suas concepções sobre o jornalismo dos dias atuais, defende a exigência de formação universitária para os jornalistas e critica a pressa em se publicar qualquer informação na frente do concorrente.
*****

O jornalista Mauri König após sofrer atentado no Paraguai: vida em risco para revelar o recrutamento ilegal de adolescentes brasileiros pelo serviço militar paraguaio.
Após o surgimento da internet e de outras mídias eletrônicas, não faltam previsões sobre o fim do jornal em papel. Como você vê o futuro do jornalismo impresso?
Essa dúvida campeia o meio jornalístico desde a popularização da internet, há bem uns 15 anos. Mas quem sabe dizer o papel do impresso no mundo daqui a 10, 30, 50 anos? Talvez encontremos alguma luz explicativa no passado. Há muito vem-se dizendo que um meio informativo suprimiria outro. No século 15, Victor Hugo chegou a profetizar que o alfabeto iria matar as imagens ao confrontar o livro com a catedral. Cinco séculos depois, na década de 1960, cogitou-se a morte do livro pela televisão a partir da publicação de A Galáxia de Gutemberg, por Marshal McLuhan. Agora, brotam profecias, e mesmo imprecações, acerca do embate impresso versus internet. De fato, a internet já matou os manuais e enciclopédias, assim como antes o livro havia matado os pergaminhos, obeliscos e outras formas de transmissão de informação hoje tidas como arcaicas. Humberto Eco já prenunciou a passagem de uma memória vegetal para uma memória mineral, isto é, os meios impressos (memória vegetal) começam a ceder espaço aos suportes digitais (memória mineral, que tem por base o silício). Um dos desafios da mídia impressa para sobreviver é interagir e co-habitar com o pixel até onde e quando puder. No caso da imprensa, muitos jornais se tornaram instituições nacionais ao longo de décadas de história. Isso tem valor imensurável, e seus donos não vão querer abrir mão disso tão facilmente.
No século 19 e início do 20, os jornais foram marcados pelo jornalismo opinativo e literário. Havia mais opinião – artigos, crônicas – do que notícia feita por repórteres. Nos anos 70, 80 e 90 do século passado também houve uma tendência que marcou época: adotou-se um jornalismo “pasteurizado”, igual em todos os jornais. Os artigos e as crônicas, assim como as reportagens longas, se tornaram raras. Hoje, no entanto, há evidências do retorno de grandes reportagens, com textos em que o autor pode mostrar mais seu estilo. Também há mais espaço para opinião. Você acha que essa é a tendência, a de permitir a diferenciação do trabalho dos repórteres?
A grande reportagem ainda é e sempre será a alma do jornalismo. O sedentarismo característico da sociedade moderna parece ter impregnado também as redações. As novas tecnologias reduziram não só o tempo entre os acontecimentos e os receptores, reduziram os ânimos dos jornalistas. A internet inaugurou um novo tempo no jornalismo, um tempo de experimentações que já dura quase duas décadas e ainda não se sabe ao certo até quando e onde vai. Antes, notícia boa era notícia bem apurada; hoje, notícia boa é notícia publicada um segundo antes do que o concorrente. E assim derrubam-se aviões que não caíram, prende-se quem não foi preso, mata-se quem não morreu. A pressa tem provocado barrigadas históricas, engrossando o anedotário jornalístico mundial. O que diferencia um jornal do outro é justamente o conteúdo diferenciado e de qualidade. Com o tempo, o leitor vai se dando conta disso tudo e elege aquele que lhe oferece algo mais do que o noticiário pasteurizado encontrável ipsis literis nos concorrentes. Por isso, repito: a grande reportagem ainda é e sempre será a alma do jornalismo. Ela pode até arrefecer diante dessas novidades, mas nunca morrerá. Sempre haverá repórteres dispostos e ir na contramão dessas tendências em nome do bom jornalismo.
Uma parte da crítica afirma que a mídia tornou-se onipotente. Para alguns desses críticos, a mídia é o Deus da pós-modernidade. Na sua opinião, a mídia pode tudo ou é exagero?
Ninguém pode tudo, obviamente. Não seria a mídia a quebrar a regra, embora parte dela se julgue mesmo onipotente. Essa parcela atua quase sempre no limite da responsabilidade, num vale-tudo para se sobressair à concorrência, nem que para isso seja preciso mentir, subornar e usar métodos ilícitos para obter informações. Fazem isso quando o ideal seria fazer com suas fontes e leitores um pacto baseado na confiança e no compromisso de só publicar a verdade, nunca prometer o que não pode cumprir, não pagar por informações, respeitar a identidade do informante no caso de eventuais riscos para ele. Todo profissional deve exercer seu ofício com tal zelo de forma que dele não se desvirtue nem se lance dúvidas.
O que mais impede o exercício da liberdade no jornalismo, o poder político ou o poder de mercado? E a arrogância de chefes e publisheres não atrapalha?
O cotidiano de uma redação é capaz de abalar qualquer visão romântica sobre o jornalismo. Afinal, empresa de comunicação visa lucro como qualquer outra. Assim, a todo instante está-se sujeito às ingerências do poder político ou de mercado. Mas há meios de furar o muro que põe os interesses públicos de um lado e os interesses corporativos de outro. Cabe ao jornalista encontrar o ponto de equilíbrio dessas forças, sem a necessidade de ficar em cima do muro. Mesmo nesse contexto é possível fazer jornalismo sério e de qualidade. Como? Mais pelo empenho do profissional do que por uma linha editorial. Um chefe ou publisher não resiste ao poder de argumentação de um jornalista com sólida formação intelectual e comprometido com sua missão de comunicador. Ou seja, a cobertura bem feita de temas que sejam efetivamente relevantes para a sociedade dependem mais do interesse do jornalista do que da empresa de comunicação. Em geral, essas pautas são pensadas, estruturadas e executadas tomando-se como base o interesse e o conhecimento do profissional de imprensa. Quanto mais jornalistas engajados tivermos nas redações, maiores as chances de termos ampliado o espaço desses temas. Portanto, o que mais impede o exercício da liberdade no jornalismo é a incompetência ou a falta de compromisso do profissional com um jornalismo voltado aos interesses públicos. Já há algum tempo o “jornalismo de dossiê” transita livremente por muitas redações do país. Isso se deve mais ao comportamento apático e preguiçoso dos jornalistas do que propriamente a uma política editorial das empresas de comunicação, embora algumas tenham adotado o vale-tudo para desbancar a concorrência. Nessa briga, muitos jornalistas não se dão o tempo necessário de maturação profissional e vêem nesses dossiês uma forma de encurtar o caminho para o sucesso. Espertos, os lobistas sabem identificá-los nas redações.

Mauri e o repórter fotográfico Albari Rosa, em Santa Helena, Venezuela, em 2005.
Alguns jornalistas condenam a prática de tentar explicar os fatos por meio de especialistas e analistas. Afirmam que os jornalistas estão abrindo mão do seu papel de investigar e esclarecer os fatos. Muitos repórteres ouvem especialistas e analistas e fazem as matérias com base exclusivamente na opinião desses estudiosos. Isso é bom para o jornalismo?
Toda reportagem é uma história, e toda boa história deve conter bons personagens, boas fontes de informações e bons dados técnicos ou estatísticos. Pode-se suprimir um ou outro desses elementos, mas acho difícil construir uma boa reportagem sem pelo menos dois deles. As fontes conferem veracidade às informações, uma vez que o repórter não sabe tudo, não pode tudo e não está em todo lugar para obtê-las por conta própria; os dados técnicos ou estatísticos vão dimensionar o assunto abordado, seja num contexto local, nacional ou mundial; os personagens humanizarão a reportagem e fazer com que o leitor se sinta de alguma forma representado nessa história. Os especialistas e analistas entram na categoria “fontes”, necessárias para explicar as causas e conseqüências do fenômeno reportado. Mas elas podem virar um problema quando o jornalista baseia todo o trabalho unicamente nessas fontes, interpostas como filtros da realidade entre o repórter e seu interlocutor. Obviamente isso é péssimo não só para o jornalismo, mas para o leitor. O ideal é o bom senso do meio termo.
Você está satisfeito com o que se publica hoje nos jornais brasileiros?
Em geral, não. Um dos grandes erros da imprensa é ficar apenas no relato superficial dos acontecimentos. Falemos da violência, tema tão recorrente no Brasil. Grande parte dos jornalistas desconhece os diversos organismos governamentais e não-governamentais que dispõem de dados sobre a temática. Na cobertura jornalística de um crime sofrido ou praticado por crianças ou adolescentes, por exemplo, em geral é lançada sobre a família uma responsabilidade excessiva, sem que se faça a contextualização daquela ocorrência ou uma abordagem sobre a falta de políticas públicas de atendimento aos jovens e às famílias vulneráveis à pobreza. De forma geral, os meios de comunicação não enxergam o contexto da violência porque não discutem soluções para o problema. O conjunto da imprensa se preocupa muito pouco em apresentar as causas, e menos ainda em apresentar soluções. Em uma cobertura ideal seria importante não só discutir soluções, mas também narrar os casos de violência com a trajetória e história de vida das vítimas e dos agressores, pois suas biografias revelam os determinantes sociais, culturais e econômicos, o que poderia revelar causas, contextos e fatores que os levaram à violência. A transformação de um furo em uma grande reportagem, e mesmo a qualificação da cobertura jornalística, passa, portanto, pelo entendimento mais a fundo dos casos retratados na imprensa e pela qualificação do profissional de comunicação. Nesse particular, ainda há um enorme caminho a percorrer. Há nas redações pessoas pouco preocupadas com a função social do jornalismo. Crêem que se trata de exploração da miséria ou uma forma de chocar o leitor. Tenho opinião contrária e por isso mesmo a imponho até os limites de minha possibilidade, pois acredito que é expondo as mazelas sociais e a fragilidade das autoridades que vamos provocar transformações. Este é o papel do jornalismo: interferir na realidade no que ela tem de mais injusto. Não se trata de retórica, se trata de missão jornalística.
No livro que você acaba de lançar, Narrativas de um correspondente de rua (Editora Pós-Escrito), as reportagens denunciam a dura realidade de pessoas que pertencem ao Brasil que não deu certo. Como diz o título, é um trabalho de quem vai para a rua. Você não acredita no jornalismo dos bastidores do poder – palácios de governo, Legislativo, Judiciário?
O jornalismo é antes de tudo um instrumento de transformação de pessoas e de realidades. Cada reportagem pode ser um estopim de mudanças ao interferir na realidade naquilo que ela apresenta de mais injusto, ou a partir do instante em que leva o leitor à reflexão. Para quem vive da escrita, não há nada mais frustrante do que não ser lido. Escrever para ninguém é se anular profissionalmente. Invariavelmente, o jornalismo burocrático de gabinete ou dos bastidores do poder cai nesse buraco negro, porque é escrito para uma minoria. A cobertura desses bastidores é fundamental para o entendimento da política local ou nacional, mas não da forma descontextualizada como se costuma fazer. Em geral, o leitor não se identifica com esse tipo de cobertura porque não se vê representado nas reportagens.
O Supremo Tribunal Federal (STF) está para julgar um recurso do Ministério Público Federal sobre a legalidade da exigência do diploma em curso superior de Jornalismo para o exercício da profissão. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) entregou ao STF um abaixo assinado com mais de 20 mil assinaturas pedindo a manutenção da exigência. De que lado você está?
Em qualquer profissão, a formação acadêmica é um tempo não só para o aprendizado de normas técnicas, mas sobretudo para reflexão, para se criar vínculos e assumir compromissos com a carreira escolhida. O que se deveria discutir é a qualidade do ensino, não a dispensa da formação específica para exercer o jornalismo. A proliferação de cursos e a conseqüente baixa qualidade na formação de profissionais ocorre também em outras áreas, como a Medicina e o Direito, só para citar dois exemplos. Não estou aqui querendo fazer comparações ou estabelecer graus de importância entre uma profissão e outra, pois o trabalho de um jornalista pode ser tão importante para a sociedade (como de fato é, para o bem ou para o mal) quanto o de um médico ou advogado. O público sabe dessa importância, tanto que pesquisa nacional feita pelo instituto Sensus, divulgada dia 22 de setembro, revela que 74,3% da população brasileira é a favor da exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista. Dos dois mil entrevistados em todo o país, só 13,9% se disseram contra e 11,7% não souberam ou não responderam à consulta popular.
Qual reportagem que você não fez e gostaria de ter feito? E a que você sonha em fazer um dia?
Até há pouco, tinha a ambição de cobrir uma guerra, mas percebo-me realizado profissionalmente como correspondente de rua mesmo. É desta forma, tratando de temas mais próximos e de interesse imediato dos leitores, que me sinto mais útil como jornalista. Ainda assim, sonho com a possibilidade de ir a uma guerra, para melhor traçar o paralelo de ambas as coberturas.
Você já conquistou vários dos principais prêmios do jornalismo brasileiro e também teve seu trabalho reconhecido no exterior. O que mais você espera da profissão?
Espero ser capaz de continuar aprendendo. O que de pior pode acontecer a uma pessoa é julgar-se incapaz de novos aprendizados, ou, pior, se considerar plena de saber. A preguiça e a soberba são extremos a serem evitados. Minha intenção agora é dedicar-me, também, à ficção.
*****
Quem é
Mauri König nasceu em Pato Branco, sudoeste do Paraná. É graduado em Letras e Jornalismo. Trabalhou no O Estado do Paraná e Folha de Londrina, além de ter sido correspondente de O Estado de São Paulo. Atualmente é repórter especial da Gazeta do Povo, em Curitiba. Entre os prêmios que conquistou estão dois Esso regional, dois Vladimir Herzog, dois Lorenzo Natali (União Européia) e dois Embratel regional.



