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Como entender feministas e militantes que defendem o Irã?

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Mulheres participam de cerimônia religiosa no Irã, em 2019. (Foto: Abedin Taherkenareh/EFE/EPA)

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“Atenção, mulherada que defende o Irã: Se você defende o Irã, não opina em rede social. Se opina em rede social, não defende o Irã, desobedece os aiatolás. De nada pela ajuda.”

Foi essa a provocação que publiquei nas redes sociais. Em vez de receber críticas ou contrapontos, fui atacada por uma avalanche de xingamentos, quase todos sexualizados, disparados por militantes que se dizem defensores das mulheres e da população LGBT. As mensagens tinham uma constante: eram humilhações pornográficas, de baixo calão, voltadas a deslegitimar não o argumento, mas a minha condição de mulher que ousa falar fora da cartilha. Não se tratava de uma discussão política. Era uma demonstração de poder violento e covarde, exatamente o que esses militantes dizem combater.

Esse comportamento não é aleatório. Reflete uma característica cada vez mais evidente de parte da esquerda brasileira: a total incapacidade de empatia com vítimas, quaisquer que sejam elas. Diante de uma violência, esses militantes não escutam quem sofreu. Preferem racionalizar, justificar, relativizar. Procuram rapidamente uma desculpa para proteger o agressor, desde que ele sirva ao seu roteiro ideológico. Pode ser um traficante, um terrorista ou um aiatolá. A única coerência é manter o inimigo fixo: o Ocidente, os Estados Unidos, Israel. Quem não ataca o inimigo vira inimigo também.

Foi nesse espírito que a jornalista Hildegard Angel publicou recentemente: “Trump faz com o aiatolá Khamenei o que os EUA fizeram com Osama Bin Laden. Ameaça caçá-lo e matá-lo. Quais as semelhanças de Osama e Khamenei? São muçulmanos e têm a pele mais escura. O Irã não ameaça, não provoca atentado, não ataca. Isso se chama racismo".

Quando feministas e ativistas ocidentais decidem apoiar o Irã, não estão apenas sendo incoerentes. Estão colaborando com um sistema que criminaliza a existência de tudo o que dizem defender. Estão escolhendo não ouvir as mulheres que apanham, são presas ou morrem por desafiar o regime

O presidente responsável pela neutralização de Osama Bin Laden foi Barack Hussein Obama, negro. O aiatolá Khamenei não tem pele escura. Nos Estados Unidos, persas são classificados como brancos. Para além disso, ignora-se que o regime do Irã financia grupos terroristas, oprime seu próprio povo, enforca em praça pública LGBTSs por “valores morais” e prende mulheres por desrespeitarem códigos de vestimenta. A própria existência de quem opina livremente em redes sociais já seria suficiente para ser presa, torturada ou executada por esse regime que tantos insistem em defender.

E quem denuncia essa violência não são governos ocidentais nem think tanks conservadores. São as mulheres iranianas, as refugiadas que conseguiram escapar do terror, as famílias que perderam filhas, mães, irmãs. A ativista Narges Mohammadi, Prêmio Nobel da Paz de 2023, já foi presa 13 vezes e condenada a 31 anos de prisão por lutar por direitos básicos. Hoje está temporariamente em liberdade por razões médicas, e mesmo assim saiu da prisão sem véu e gritando: “Mulher, Vida, Liberdade!”.

Como lembrou Lygia Maria em sua coluna na Folha de S. Paulo, já não é mais possível ignorar que o que se vive no Irã é um apartheid de gênero, um regime institucionalizado de opressão sistemática dos homens contra as mulheres. A campanha para que essa barbárie seja reconhecida como crime contra a humanidade já reúne diversas mulheres iranianas e afegãs, incluindo quatro ganhadoras do Nobel da Paz. Mas a militância progressista no Brasil finge que não viu. Prefere acusar quem denuncia, proteger quem oprime e seguir fingindo que está do “lado certo” da história.

A desconexão entre discurso e realidade atinge níveis surreais. Um influenciador brasileiro, gay assumido, escreveu longamente sobre como escolheu apoiar o Irã mesmo sabendo que o regime “nega sua existência”. Justificou com a ideia de que uma vitória de Israel seria uma derrota para toda a humanidade. É o caso clássico de militante que transforma o próprio algoz em símbolo de resistência. Porque, na cabeça dele, a mofada ideologia antiamericana é mais importante que a vida e que a realidade dos fatos.

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Enquanto isso, do outro lado do mundo, iranianas como Elica Le Bon assistem estarrecidas ao espetáculo: “É estranho ser iraniana agora, rolar o feed e ver todos os meus conterrâneos orando por liberdade enquanto esquerdistas brancos torcem para que o opressor vença... ‘pela humanidade’”, escreveu.

Quando feministas e ativistas ocidentais decidem apoiar o Irã, não estão apenas sendo incoerentes. Estão colaborando com um sistema que criminaliza a existência de tudo o que dizem defender. Estão escolhendo não ouvir as mulheres que apanham, são presas ou morrem por desafiar o regime. Estão praticando o que há de mais perverso na política: transformar vítimas reais em danos colaterais aceitáveis para preservar uma narrativa.

A história mostra que regimes teocráticos caem. O que prolonga sua existência é o silêncio de quem deveria combatê-los. O papel da militância, se ainda tiver alguma relevância moral, é estar do lado de quem resiste à opressão. Parece que isso só ocorreria por um milagre. Ou, quem sabe, por meio de exorcismo.

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