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Começou como tantas convulsões do nosso tempo: inflação, desigualdade, escândalos de corrupção, a fagulha de uma proibição de redes sociais. O que se viu em Katmandu, no Nepal, porém, ultrapassou o roteiro.
A juventude tomou as ruas, o Parlamento ardeu, o governo ruiu e o Exército impôs toque de recolher. O saldo, trágico, contou dezenas de mortos e mais de mil feridos. Foi nesse cenário que a analista e criadora indiana Divya Gandotra Tandon, empreendedora que comenta política e tecnologia, condensou o padrão que já foi visto em Sri Lanka e Bangladesh: crise econômica, movimentos liderados por jovens, descrédito nas instituições e renúncias obtidas sob pressão popular. No Nepal, a sequência foi idêntica, só que acelerada e muito mais visível.
Depois do sangue veio a fala militar. Em pronunciamento em vídeo, o comandante do Exército apelou por calma, diálogo e normalização da vida cívica. Horas depois, a mesma juventude que incendiara símbolos do poder empunhou vassouras: mutirões varreram escombros, repintaram muros e devolveram móveis saqueados. A cidade começou a ser reconstruída pelos braços que haviam derrubado o governo. É o gesto ambivalente da política contemporânea: a multidão que desordena, em seguida, organiza.
O Nepal mostrou o que é possível quando a arquitetura digital é apropriada como infraestrutura de deliberação: imperfeita, ruidosa, vulnerável a sabotagens, porém capaz de organizar preferências e projetá-las para dentro do sistema
Enquanto patrulhas ocupavam avenidas e a internet manobrava sob bloqueios, a política migrou para uma sala de bate-papo: o Parlamento do Nepal agora é o Discord, disse um participante.
Em poucos dias, um servidor criado por civis do grupo Hami Nepal reuniu mais de 100 mil pessoas. Moderadores instalaram ordem mínima, abriram rodadas de fala, rodaram enquetes. Não era representação formal, mas funcionou como mini-eleição: os jovens foram instados pelos militares a indicar um nome para a transição. O consenso emergiu, com atritos, trolls e confusão típicos do meio, em torno de Sushila Karki, ex-presidente da Suprema Corte. O Exército recebeu os organizadores e a presidência também. A conversa digital atravessou a praça e chegou ao palácio.
No dia seguinte, Sushila Karki, 73, tomou posse como primeira-ministra interina, a primeira mulher a chefiar o governo do país, com dissolução do Parlamento e data de eleição marcada.
A escolha, chancelada na urgência, amparou-se menos na aritmética tradicional e mais na autoridade moral de uma magistrada anticorrupção, vista pela juventude como antídoto provisório para o sistema que contestam. A fonte de legitimidade foi híbrida: rua, quartéis e, um fórum de voz e texto.
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Isso amplia e qualifica o debate sobre redes. O Nepal mostrou o que é possível quando a arquitetura digital é apropriada como infraestrutura de deliberação: imperfeita, ruidosa, vulnerável a sabotagens, porém capaz de organizar preferências e projetá-las para dentro do sistema.
Há lições aqui para o Brasil, que discute respostas a crimes graves cometidos ou articulados on-line. O deputado Guilherme Boulos, por exemplo, defende a suspensão do Discord no país até adequação legal, citando casos de aliciamento de menores e planejamentos criminosos. É um remédio simplista: criminaliza o meio e terceiriza o esforço de investigação, quando o que protege vítimas é perseguir o crime, responsabilizar pessoas e impor deveres de cooperação às empresas, sem interditar um espaço inteiro de sociabilidade.
A moral do episódio do Nepal não é que o Discord salvou a democracia nem que plataformas substituem instituições. É outra, mais difícil: as redes são hoje parte da topologia do poder, tanto para o mal – como aliciamento, conspiração, linchamento – quanto para o bem – como coordenação, prestação de contas, deliberação.
Ao Estado cabe distinguir meios de fins: tipificar condutas, punir autores, exigir transparência e rastreabilidade proporcionais, e negociar protocolos céleres de entrega de dados sob devido processo. Bloqueios genéricos, como os que incendiaram o Nepal, fracassam politicamente e, não raro, retroalimentam a violência.
No limite, a escolha é civilizatória. Ou admitimos que a esfera pública do século XXI inclui salas de áudio e canais de chat, com todas as suas feiuras e belezas, ou terceirizamos à censura tecnológica a ilusão de segurança.
A primeira via exige trabalho: investigação profissional, cooperação internacional, educação midiática, desenho institucional que transforme calor social em autoridade legítima. A segunda promete paz e entrega silêncio. O Nepal, com sua eleição improvisada, lembrou o óbvio: não se proíbe uma ferramenta para resolver o que só se resolve com lei, polícia e democracia.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos





