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Cinco policiais armados à espera de um humorista no aeroporto. Foi assim que Graham Linehan, criador das séries Father Ted e The IT Crowd, desembarcou em Londres no dia 2 de setembro de 2025. O motivo da detenção não foi um delito violento, mas o conteúdo de postagens consideradas transfóbicas nas redes sociais. A cena dá a medida de como democracias maduras passaram a tratar a fala como risco de segurança, com direito a interrogatório, cela e ordem de silêncio como condição para a liberdade.
Linehan, que já havia enfrentado perseguições semelhantes, foi liberado apenas após se comprometer a não voltar às redes sociais. J.K. Rowling reagiu com indignação: “O que o Reino Unido se tornou? Isto é totalitarismo.” O comentário sintetizou o espanto internacional diante de um país que, ao mesmo tempo em que se orgulha de sua tradição liberal, se dedica a algemar a sátira e tutelar a linguagem.
Quando o Estado ocupa o lugar do debate com a força, não resta espaço para que a própria comunidade filtre o que merece ou não atenção
O Reino Unido, berço de liberdades que inspiraram constituições ao redor do mundo, ensaia agora um giro cultural e jurídico que troca o desconforto pelo interdito. Termos vagos como ofensa, incômodo e sensação de insegurança foram elevados à categoria de ilícito, sob a promessa de proteger vulneráveis. O resultado é a criação de crimes sem vítima, em que a interpretação do que foi dito importa mais do que o que efetivamente aconteceu. Nessa moldura, a polícia se torna árbitra de sensibilidade e o inquérito substitui o debate.
A sofisticação do problema está no vocabulário com que se justifica a restrição. Não se fala em censura, fala-se em cuidado. Não se assume que se pretende punir ideias, afirma-se que é preciso coibir ódio. A linguagem moral suaviza a consequência jurídica. Ao fim do processo, no entanto, permanece o mesmo mecanismo: quem fala sob o risco de desagradar pode ser calado por autoridade administrativa ou judicial, antes mesmo de a sociedade deliberar sobre o mérito do que foi dito.
Esse expediente corrói dois pilares civilizatórios. O primeiro é a noção de que o direito penal se ocupa de condutas que atinjam bens jurídicos concretos, e não de juízos de valor sobre conteúdos simbólicos. O segundo é a centralidade do contraditório social: a crítica, a réplica, o boicote, a zombaria como antídotos naturais para ideias ruins. Quando o Estado ocupa o lugar do debate com a força, não resta espaço para que a própria comunidade filtre o que merece ou não atenção.
O caso do humorista britânico não é exceção. Ele se acomoda em um ambiente global de desconfiança recíproca e vigilância digital, no qual plataformas, militâncias e burocracias passaram a operar de modo sinérgico. Redes oferecem o palco, patrulhas organizadas apontam o alvo, instituições sentenciam o desfecho. A engrenagem se retroalimenta porque cada elo se apresenta como guardião da civilidade, enquanto produz um efeito pedagógico inequívoco: pense duas vezes antes de dizer o que pensa.
No Brasil, a lembrança é inevitável. A condenação do comediante Léo Lins a quase nove anos de prisão por piadas de humor negro mostrou a mesma lógica: transformar desagrado em delito, crítica em incitação, incômodo em crime. Não se trata de absolver a grosseria, a má fé ou a falta de graça. Trata-se de recusar que gostos pessoais e projetos ideológicos operem como chave para abrir ou fechar a esfera pública.
Há quem argumente que medidas duras são apenas corretivos temporários para tempos turbulentos. A experiência histórica desmente a ingenuidade. Normas de emergência ganham vocação de permanência, vocabulários morais capturam políticas públicas e, quando se percebe, decisões que deveriam ser exceção viram o manual do guarda da esquina. O sinal mais claro de que se cruzou a linha é este: a liberdade passa a existir só para quem concorda.
O que se viu em Heathrow é mais do que um erro operacional. É um símbolo da nossa época. A autoridade que penaliza a sátira, mesmo quando a acha de mau gosto, escolhe um futuro em que a esfera pública será higienizada até a asfixia. Em vez de cidadãos adultos, forma-se um público tutelado, com o Estado como curador de sentimentos. Democracias não sobrevivem a esse regime de afeto administrado.
O humor, por definição, exagera, distorce, ridiculariza. Nem todo exagero é inteligente, nem toda distorção é justa, nem toda ridicularização é aceitável. Mas a liberdade para que existam é a exata medida da saúde de uma sociedade aberta. Se a irritação se tornar critério jurídico, a sátira será a primeira a desaparecer. Em seguida, irão a crítica incômoda, a investigação inconveniente, o dissenso essencial. Por isso, o episódio britânico precisa ser lido sem autoengano: não é sobre um comediante, é sobre todos nós.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos





