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Durante décadas, direitos humanos foram entendidos como limites impostos ao poder do Estado para proteger o indivíduo. Liberdade de expressão, privacidade, devido processo legal e proteção contra vigilância arbitrária formavam o núcleo desse conceito. O que está em disputa agora não é apenas o respeito a esses direitos, mas o próprio significado deles. Aos poucos, a ideia de liberdade vem sendo substituída pela noção de eficiência, estabilidade e desenvolvimento administrado.
É nesse ponto que a inteligência artificial se torna central. Quando a tecnologia passa a organizar a vida social, jurídica e informacional, o controle deixa de parecer coerção e passa a parecer funcionamento normal do sistema. A vigilância se transforma em gestão, a censura em moderação automatizada, a repressão em prevenção de riscos. Direitos não desaparecem formalmente, mas são redefinidos por meio do hábito.
Grandes empresas chinesas passaram a desenvolver e vender sistemas de censura cada vez mais baratos, rápidos e eficazes, incorporando a repressão ao funcionamento normal da economia digital. A censura não é mais exceção, é parte do negócio
É exatamente esse processo que um relatório do Australian Strategic Policy Institute descreve ao analisar o uso de inteligência artificial pelo Partido Comunista Chinês. O estudo mostra como grandes modelos de linguagem e outros sistemas avançados de IA estão sendo integrados ao aparato estatal para automatizar censura, ampliar vigilância, prever comportamentos e suprimir dissidências de forma preventiva. A tecnologia deixa de ser ferramenta auxiliar e passa a operar como infraestrutura permanente de controle.
O relatório detalha como a IA está sendo incorporada a áreas sensíveis como o sistema de justiça criminal, incluindo policiamento preditivo, tribunais inteligentes e prisões inteligentes. Essa automação aumenta a eficiência do Estado, mas reduz transparência, enfraquece mecanismos de responsabilização e amplia a assimetria de poder entre governo e cidadãos. Direitos humanos, nesse modelo, deixam de ser barreiras e passam a ser reinterpretados como variáveis administrativas.
Outro ponto central é a industrialização da censura. As exigências legais do regime criaram um mercado robusto de tecnologias de controle baseadas em IA. Grandes empresas chinesas passaram a desenvolver e vender sistemas de censura cada vez mais baratos, rápidos e eficazes, incorporando a repressão ao funcionamento normal da economia digital. A censura não é mais exceção, é parte do negócio.
Essa análise foi apresentada ao público brasileiro pelo meu amigo Augusto de Franco, pesquisador e analista político, especialista em democracia, por meio de um artigo publicado no site Dagobah. Ao examinar o relatório, Augusto destaca como a IA transforma o controle estatal em algo difuso, distribuído e quase invisível. O poder não se impõe apenas pela força, mas pela normalização tecnológica. Quando tudo funciona, ninguém questiona. E quando ninguém questiona, o conceito de direito se dissolve.
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Esse modelo também sustenta a estratégia de soft power da China. Diferentemente de regimes como o de Vladimir Putin, cuja projeção internacional é mais bélica e confrontacional, o Partido Comunista Chinês opera por influência gradual. Exporta tecnologia, plataformas e soluções apresentadas como neutras e modernas, mas que carregam embutido um modelo de organização social baseado em vigilância, controle informacional e obediência algorítmica.
O próprio relatório aponta que a China já é a maior exportadora mundial de tecnologias de vigilância baseadas em IA e que essas ferramentas estão sendo utilizadas fora de seu território. Ao exportar tecnologia, exporta-se também uma lógica. Direitos humanos passam a ser relativizados em nome da eficiência, da segurança e do desenvolvimento, sem que isso seja apresentado como escolha política explícita.
Nesse cenário, chama atenção o entusiasmo recente de influenciadores brasileiros de esquerda que visitaram a China exaltando as maravilhas da tecnologia e da digitalização. A partir da leitura do relatório e da análise de Augusto de Franco, a pergunta se impõe: ao naturalizar esse modelo como progresso, essas narrativas não contribuem para uma redefinição silenciosa dos direitos humanos, fazendo com que as pessoas entreguem seus direitos sem sequer perceber?
O alerta não é contra a tecnologia em si, mas contra a perda de consciência crítica. Quando a tecnologia vira hábito, o pensamento se acomoda. E quando o pensamento se acomoda, direitos deixam de ser defendidos e passam a ser administrados. É assim que um regime autoritário, sem precisar de tanques ou confrontos diretos, consegue remodelar o sentido de liberdade no mundo contemporâneo.





