
No último fim de semana, depois de um bom tempo desde o lançamento, finalmente assisti a última parte da trilogia romântica protagonizada por Ethan Hawke e Julie Delpy e dirigida por Richard Linklater. Antes da Meia-Noite (Before Midnight) foi lançado em junho de 2013 e nos fornece um mergulho momentâneo na vida conjugal dos personagens Jesse e Celine, depois das idas e vindas vividas nos dois filmes anteriores, Antes de Amanhecer (Before Sunrise, 1995) e Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004).
Já falei aqui no blog sobre a trilogia e as desventuras do casal e, pra resumir meu respeito e admiração pela série, repito o que disse no post anterior: enquanto as comédias românticas e afins insistem em mostrar reviravoltas previsíveis, personagens clichês e finais redondinhos, os filmes escritos e dirigidos por Richard Linklater nos encantam pela verossimilhança da história e pelo carisma dos personagens – tão humanos como cada um de nós, repletos de medos, defeitos, arrependimentos e desejos.
No desenrolar da trilogia, a saga de Jesse e Celine acabou se mostrando ser o que eu chamaria de um “anti-romance”, o que é certamente capaz de desencorajar espectadores eventuais em busca de uma história água com açúcar que produza suspiros apaixonados. O casal mostrado na tela por Linklater está longe de ser aquele idealizado nos romances da literatura e do cinema. Não há aqui um “felizes para sempre”. Sim, como mostrado em Antes da Meia-Noite, os dois terminam juntos, mas é justamente neste momento que começam os percalços da vida a dois e a felicidade precisa ser buscada de forma rotineira. Se é difícil ser feliz durante um fim de semana, imagine para sempre.
Talvez eu leve a ficção de maneira geral a sério demais, mas, para mim, este último filme deveria ser lição de casa obrigatória para casais recém-formados e aqueles que já se aturam há um bom tempo. O recorte de um fim de semana do relacionamento de Jesse e Celine, que depois de encontros e desencontros finalmente se uniram e constituíram uma família, é um choque de realidade. Os dois têm duas filhas gêmeas lindas, estão de férias em um recanto paradisíaco da Grécia, rodeados de bons amigos. O que poderia dar errado num momento desses?
A questão é que os personagens vividos por Delpy e Hawke são humanos, gente como a gente, suscetíveis aos pequenos dramas que, caso não cuidemos, se transformam em obstáculos afetivos faraônicos. Relembrando as aventuras vividas antigamente e casos pitorescos das infâncias de cada um, os dois passam horas andando a esmo pelas ruínas da cidade. Conversam, conversam, conversam, como já é característico da série. Um pedestre qualquer os veria como um casal apaixonado. No entanto, mesmo com tanto bate-papo, há pouco diálogo de fato entre os dois. Jesse amarga a saudade do filho e as circunstâncias que o separaram da antiga esposa. Cogita voltar para os Estados Unidos. Celine sofre de uma insegurança crônica em relação ao seu relacionamento e ao seu papel como mãe. Teme ter se tornado a mulher de que sentiria pena quando jovem, amarrada ao marasmo da vida em família.
Preocupações que, sem dúvida, são capazes de minar o ânimo de qualquer um. O problema é que nenhum dos dois está realmente ciente das frustrações do outro. Levam a vida como dá e, como em geral não há brigas furiosas nem ninguém arrancando os cabelos, acham que está tudo bem. Não ousam levantar a voz sobre a crise que ronda os dois, até porque, veja bem, depois de tantas desventuras no passado, eles são obrigados a serem felizes. É essencial que o companheiro(a) acorde e veja estampado um sorriso no rosto do outro(a).
Até que, enfim, as máscaras caem. Justamente na ocasião em que o casal aproveitaria um raro momento íntimo a dois, começam a emergir aquelas frustrações, anseios e histórias mal resolvidas. Como há toda uma bagagem emocional represada há tempos, não há como ter uma discussão razoável. Terreno fértil para cobranças e acusações, mesmo aquelas infundadas. Os dois falam coisas um para o outro que não falariam em um momento racional. E, assim, colocam em xeque o que viveram até aquele momento. No filme, ao fim da discussão, Celine abandona Jesse no quarto de hotel deixando para trás um amargo “acho que eu não te amo mais”.
Pense bem. O relato representa perfeitamente parte da trama de Antes da Meia-Noite. Mas não se encaixaria perfeitamente na rotina de tantos casais que você conhece, talvez no seu próprio relacionamento? Jesse e Celine mostram como é realmente chato e desgastante discutir a relação. Se já é tenso para quem está assistindo aos dois do sofá de casa, imagine para quem está passando por um momento desse. Olhamos para o casal e imaginamos: mas eles eram tão perfeitos, viveram uma história tão romântica, como puderam chegar a esse ponto?
A resposta, no caso do filme e de tantas ocasiões que já vivemos, parece simples. Na frente dos amigos que os acompanham, Jesse e Celine são vistos como um exemplo a ser seguido. Representam a imagem de uma família quase perfeita. E, assim, acabam assumindo esse papel. Precisam mostrar o quanto são apaixonados, o quanto são felizes. Ao invés do “bom dia” e o “boa tarde”, apelam para o automático “eu te amo”. Não há espaço para discussão. Amor presume um estado de dedicação incondicional, certo? Todos temos de ser felizes em nossos relacionamentos e deixar isso claro para quem nos conhece — e mesmo para desconhecidos.
O que faltou por muito tempo para Jesse e Celine e o que nos falta também, diversas vezes, é reconhecer que não somos fadados à felicidade irrestrita apenas porque estamos vivendo um relacionamento sério com alguém. Relacionamento esse que pode, sim, ser muito especial e cativante, mas está sujeito às eventualidades que cercam os gostos pessoais, anseios e ambições de cada um. Dourar a pílula parece ser mesmo o mais fácil a fazer. Talvez porque o próprio cinema, ao longo do tempo, tenha tentado nos convencer de que não há outra alternativa a não ser um “happy ending”. Mas não imagino algo mais doloroso do que enganar a pessoa que se ama ou enganar a si mesmo.
Em certo momento da discussão, Jesse fala para Celine: “essa é a vida real. Não é perfeita. Mas é real”. Uma fala sucinta que diz muito. Não espero que a minha — ou a sua — vida conjugal seja perfeita, mas que seja real. Que transborde sinceridade, mesmo quando ela machuca. Que seja honesta, antes de ser um conto de fadas. Que ser feliz para sempre seja uma expressão restrita aos filmes românticos e fábulas. Afinal, a felicidade é algo que se busca a cada dia, a cada despertar — e precisa ser reconquistada novamente na manhã seguinte. Se você possui uma boa companhia nessa empreitada, muito melhor. Mãos à obra. E pés no chão.
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