Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

As fotografias post-mortem paranaenses

Paulo José da Costa
14/12/2022 15:02
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Família de colonos. Cruz Alta, RS, anos 1900. | Acervo de Paulo José da Costa.

“Perder um filho é como ser jogado de repente num rio caudaloso e você precisa lutar com todas as forças para se manter à tona. Não vejo outra imagem a não ser a de uma folha pequenina na corrente de águas de tempestade, sendo carregada com força e brutalidade.
Essa corrente pode nos levar a um abismo, uma enorme cachoeira, o mergulho e a escuridão por fim. Mas essa força incontrolável pode nos conduzir a um lago lindo de mansidão e paz. É o que eu estou sentindo neste momento. Muita paz. Fui acordado por pássaros barulhentos que pareciam brigar comigo, tal a gritaria nesta linda manhã.
Fiquei a pensar na cama e me dei conta que eu e Valéria recebemos esta provação e isso deve ter um sentido, um significado. Devemos aceitar essa dor sem blasfemar, sem praguejar, com humildade, mas também tentando transformá-la em algo melhor. Sempre acreditei que devemos tirar mesmo das coisas mais ruins algo para crescer. A Cecília deixou alguma coisa de muito bonito neste mundo, do qual não tínhamos a ideia da dimensão, e devemos tentar da forma possível manter viva essa chama... ”
Escrevi esse texto há seis anos, quando perdi uma das minhas filhas, a Cecília, que era veterinária e fazia um lindo trabalho com os animais, acolhendo-os, tratando-os, ajudando a todos os que trabalhavam na causa animal, deixando uma grande lacuna que ainda hoje é sentida.  Com certeza foi a mais dolorida experiência por que passei em toda a existência, uma dor que não se pode mensurar e só quem passa por ela tem a real dimensão. Você fica por dias e dias destroçado, coração esfacelado, cumprindo suas tarefas quase mecanicamente, caminhando com o olhar perdido, as lágrimas vindo a todo instante, suplício que só aumenta com o passar dos dias.  Levei meses para abrir um sorriso novamente. Feridas na alma difíceis de cicatrizar.
E são bilhões os filhos perdidos nessa humanidade repleta de catástrofes, epidemias, que não se cansa jamais de mandar seus jovens para a carnificina da guerra vã e inútil, como vemos hoje mesmo na Ucrânia. Bilhões de filhos perdidos e que se perderão ainda, um mundo que é um mar de lágrimas.
Fiquei indeciso se escrevia esta matéria tão espinhosa, que me veio ao mexer no acervo e abrir a pasta de fotografias “post-mortem”, que é como se chamam as imagens de entes queridos que o destino separou de suas famílias. Aí já me veio a lembrança de minha filha e a ligação com a dor de tantas pessoas que passaram pelo mesmo trauma.
Muitos hoje se perguntam e até condenam o hábito que se tinha de fotografar os mortos antes de lhes dar sepultura. Há que se ver sempre o contexto da época. A minha teoria é que naqueles tempos, de raras fotografias, os parentes queriam apenas ter uma única lembrança daquele ser querido que se foi. Também enviavam a conhecidos e familiares com a notícia do falecimento. Um costume que os imigrantes trouxeram para o Brasil.
Todas as perto de 20 fotografias que possuo são de famílias do Sul, descendentes de europeus, a maioria alemãs.  A mais antiga é de 1898 e a mais recente, de 1975, colorida. A arte de se fotografar os mortos foi muito bem retratada recentemente no filme “Post-mortem”, disponível em canal de televisão por streaming.
A história é ficção, mas a arte dos fotógrafos é muito bem retratada. Também muitos artigos disponíveis na internet explicam bem, bastando se pedir no mecanismo de busca por “fotografias post-mortem”, razão por que não será necessário entrar em detalhes, até pelo pouco espaço que disponho na coluna. Mas preciso dizer que alguns fotógrafos paranaenses faziam o serviço, vi outro dia até uma listagem de clientes de um deles onde estava claramente escrito “anjinho”, o que evidentemente diz que a foto era de uma criança falecida.  E também é importante dizer que muitas vezes os falecidos eram mantidos em pé, junto dos parentes, maquiados para parecerem vivos, com olhos abertos etc.
As fotos que escolhi são muito belas e expressivas. A primeira mostra um casal com sua criança falecida, num pungente momento de despedida, foto essa mais recente, acredito, possivelmente tirada nos anos 1930.  Não há como negar ser uma autêntica obra de arte, expressiva, em composição perfeita, a imitar algum quadro da renascença, talvez uma das mais belas fotografias de meu acervo. Lamentavelmente não tenho como identificar o fotógrafo ou a família.
Casal com o filho falecido, anos 1930.
Casal com o filho falecido, anos 1930.
A segunda foto mostra um pai olhando o seu filho morto, enquanto o segura no colo em terna admiração. Tem a data de 8 de abril de 1898 escrita e, no verso, a marca do fotógrafo José de Salles Pinto, de Campo Largo, além de um texto muito expressivo de Helena de Souza d’Oliveira Cercal para uma sua tia, em que diz, “em meu nome offerece o meu desventurado pae este quadro, emblema de amor e de mofinas desditas...” (vide texto completo na foto).
Pai com o filho morto. As fotografias mostram a frente e o verso do retrato.
Pai com o filho morto. As fotografias mostram a frente e o verso do retrato.
A fotografia do grupo familiar com a criança morta sentada é de Cruz Alta, RS, (foto no topo da página), família de colonos alemães não identificada. Observem que a menina foi colocada com a intenção clara de parecer viva, com olhos abertos e sentada. A derradeira imagem é do fotógrafo Adolpho Volk, um dos nossos mestres do passado, número 3329 de seu catálogo. Não tenho como afiançar que se trata da família França Bittencourt, conforme consta a lápis no verso, apenas que essa imagem foi encontrada em meio a outras desse grupo familiar.
Criança morta, registro do fotógrafo Volk. Anos 1910.
Criança morta, registro do fotógrafo Volk. Anos 1910.
A morte é parte da nossa vida, convivemos com ela a todo instante, devemos aceitá-la com naturalidade, com todas as suas lições. E preservar essas imagens de momentos doloridos do passado de outras pessoas é uma questão de respeito às suas histórias. Há uma tendência das pessoas para destruí-las. Cada uma dessas imagens, como numa janela do tempo, nos traz uma experiência vivida fazendo parte, ainda que em pequena escala, de uma enorme experiência coletiva dos seres humanos. Cada imagem é uma pequenina célula que ajuda a compor uma coisa maior que se chama História da Humanidade.