Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

As lutas de Dona Maria de Lourdes Chamusco Gomes

Paulo José da Costa
07/05/2022 19:04
Mergulho nos papéis de pessoas que já partiram desta existência. Há anos coleto e guardo com carinho milhares de imagens e mensagens. E, hoje, ao principiar a escrever este artigo, faço a pergunta a mim mesmo: o que me move neste afã de descobrir sobre a vida de gente que já partiu, tentar entrar em pensamentos que já se esfumaram no tempo, mas que teimam em permanecer aos fiapos, em pedaços, como quebra-cabeças em cartas, fotografias, postais, diários?
Tentar com esses remanescentes de uma existência formar um arcabouço, quiçá descobrir uma história, poder contá-la em minúcias?  Queria ter o dom de um sensitivo para tocar numa carta e ter visões do que pensava aquela alma no momento em que se debruçava sobre um papel, saudosa de um filho, de um companheiro, ou simplesmente abrindo seu coração para alguém.
Às vezes, imagino que tenho esse poder, até me inspiro, mas, pretencioso, acautela-te! É apenas imaginação. Ou poderiam papéis antigos transmitir tais sensações?  Se me emociono com a música no piano de Villa-Lobos, o que seria ela se não uma mensagem de alguém do passado transmitida para mim através do pianista que a interpreta? A música não é isso? Uma mensagem escrita há 100 anos numa folha de papel que um pianista interpreta e a minha alma recebe e se emociona?
Um livro de poesias não é a mesma coisa? Você pode até musicar os poemas, mas lê-los apenas é o que basta. Se o sensibilizará é outra história, vai depender de diversos fatores, começando com seu coração. Não adianta um violoncelista tocar com todo o sentimento a Sicilienne, de Gabriel Fauré, para um ouvinte sem a alma para sentir, para usar uma figura elegante de linguagem.
Mas, voltando aos papéis. O que me move e me enleva, me leva para esses caminhos? Não sei, realmente não sei, mas o faço porque gosto e cada vez que descubro uma vida que passou e está quase esquecida e que merece ser revivida, me encho de emoção. Passo as horas e os dias e até semanas pesquisando e descobrindo mais e mais sobre ela. Até que, finalmente, desabrocha um escrito.
Presentes para a filhinha, 1958.
Presentes para a filhinha, 1958.
É o caso da senhora Maria de Lourdes, minha focalizada de hoje. Quando estive em seu apartamento lá por 2007, 2008, ela havia falecido e fui adquirir livros de sua biblioteca, mas, como quase sempre, acabei levando para casa suas memórias, os poemas, fotografias, artigos e, principalmente, sua história incrível de vida.
Mulher forte, corajosa, desafiadora, teve em 1956 uma filha, Maria Regina, a Tica, com síndrome de Down e, numa época em que as pessoas escondiam os filhos então ditos “mongolóides” ou “retardados”, ela anteviu a importância da educação para esses seres tão frágeis, a importância da socialização e, enfrentando os preconceitos, deu a sua filha tudo o que ela merecia de melhor, deu-lhe uma vida.
Maria de Lourdes e seus dois filhos, por volta de 1959.
Maria de Lourdes e seus dois filhos, por volta de 1959.
E mais: havendo absoluta falta de escolas para alunos excepcionais. foi pioneira na batalha para a criação de uma APAE em Curitiba, ajudando a fundar a primeira, em 1962. Escreveu poesias lindas que despertaram nos leitores um olhar para não só as vítimas da síndrome de Down, mas para outras crianças vítimas do abandono da sociedade. Seus versos sobre os pequenos jornaleiros são muito expressivos. Seus quatro livros e suas inúmeras palestras são um libelo para o despertar da consciência em defesa das crianças desvalidas.
Dona Maria de Lourdes Chamusco nasceu em 1931, filha de Joaquim Chamusco, português que faleceu jovem, em 1934, e a senhora Jovina de Oliveira. Maria de Lourdes casou-se com Thyrso Silva Gomes e da união nasceram Maria Regina e o menino Oscar Martins Gomes Neto, nome do avô paterno. Maria Regina viveu mais do que a mãe, falecendo em 2021.
Texto de Maria de Lourdes Chamusco da Silva Gomes, na Gazeta do Povo de 6 de janeiro de 1963:
Porque saí para a luta   ... Você que me lê e sorri zombeteiramente conhece bem a ingratidão da humanidade... é porque não lhe deu verdadeiramente o seu amor. Você apenas comercializou a sua ternura. Algo em troca de algo... Embora saiba que muitos, por falta de coragem, não divergem de mim frontalmente, espantou-me e revoltou-me a falta de receptividade de pessoas que, por sua cultura, educação e folga financeira, deveriam ter como obrigação compreender e cooperar com ideais tão justos e tão visíveis, qual seja o da recuperação de tantas crianças. Embora me bata por princípios de justiça e de direito, sinto às vezes esmorecimentos. Mas, creio que vale a pena lutar, não só por esses ideais, como também para despertar a bondade latente em cada ser, fornecendo-lhe ideias e oportunidades para se sentir útil e necessário à Humanidade.
Que tal? Não era corajosa nossa heroína? Que cacetada na sociedade! Arrepiou-me a alma enquanto transcrevia esse trecho, pareceu-me ver a autora aqui ao meu lado feliz por trazer esse seu pensamento tão lá do passado para os leitores de hoje.
Festa de aniversário, 1958.
Festa de aniversário, 1958.
Uma de suas poesias mais lindas, que ora transcrevo, chama-se “ambição”, onde ela conta que, no afã de poder ensinar sua filha a falar, está ela reaprendendo...
Estou novamente aprendendo a falar... para você minha filhinha, poder ensinar... Estranho o som de minha voz a soletrar pensamentos, frases que jorravam de meu linguajar. Quando me descuido, falo rapidamente porque tem força o hábito, então sinto um remorso difícil de ser apaziguado. Estou novamente aprendendo a falar para um dia poder levar às outras mães como eu a felicidade de ouvir seus filhos chamar - mamãe, eu quero você.”
Os livros de Maria de Lourdes se chamam “Minha filha e meu filho” (1961); “Frases, emoções e poesias” (1961); “Vácuo” (1962); “Só os corajosos enfrentam a verdade” (1966) e um inédito “Flor do Mar”, cujos originais tenho aqui comigo.
Encerro com as palavras de Pompilia Lopes dos Santos, a propósito do último livro da autora: "Maria de Lourdes, sua presença espiritual vai se tornando para nós um hábito e uma necessidade. E sempre que lemos e relemos um dos seus livros, que sobre sua essência meditamos, que redescobrimos a origem e os mistérios da inspiração que os precedeu, felizmente, nesse momento - exato - você surge luminosa, radiante, consciente de que mais uma vez cumpriu sua missão de criatura sensível e esclarecida; e cordialmente nos entrega a obra esperada, a obra que flui de sua constante vibração benéfica de fraternidade e paz. Benvinda seja."