Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

As memórias de Jacob Deutscher (1928 – 1945) – Parte I

Paulo José da Costa
03/02/2024 00:51
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Jacob Deutschet ainda menino e a página de índice das memórias. | Acervo pessoal

Imagine para um livreiro, encontrar uma centena de livros antigos pinchados no meio da calçada. Foi há muitos anos. Os livros estavam jogados em meio à caliça, uma pequena biblioteca destinada ao lixo. Meu irmão, que viu os tesouros descartados num canto da demolição na Marechal Floriano, apressou-se em me ligar. E lá fui eu, célere, como um garimpeiro atrás das pepitas. Dei uma gorjeta para os trabalhadores na casa, coloquei a livrarada em caixas no carro e me mandei com meu irmão, Sérgio, para a livraria. Eram livros da antiga coleção terramarear, editada nos anos 1930, além de outros do mesmo tipo, mas em meio à poeira e papel, meus olhos brilharam de imediato sobre um volume em especial. Destacava-se pela capa dura em leve cor de vinho e por ser um pouco maior que os demais. E era todo manuscrito a lápis, mais de 400 páginas em letrinhas perfeitas, um primor de caligrafia. Estava ali uma das minhas mais belas descobertas nesses anos todos de garimpagem pela Curitiba de antigamente: o livro de memórias de Jacob Deutscher, um judeu que viera menino para Curitiba em 1926, crescera, tornara-se advogado e, em 1946, contou as peripécias de sua vida em 452 páginas manuscritas em letrinha miúda.
Não se tratava de um diário, de que tenho muitos exemplares de militares, artistas, médicos, músicos, mas sim de um livro de memórias. Os diários às vezes são quilométricos, maçantes, repetitivos, ao contrário de livros de memórias, que são concisos, diretos, abrangentes. Minucioso, Jacob dividiu suas memórias em duas partes: uma passada em Sokal, Polônia (hoje Ucrânia), com 45 páginas e 14 capítulos, e a outra no Brasil, com 407 páginas e 73 capítulos. Pelo que se depreende, ele escreveu duas “edições” anteriores, em 1936 e 1939, acrescentando assuntos e capítulos à medida que ia se lembrando dos acontecimentos. Para todas elas escreveu caprichados prefácios, reproduzidos na sua última transcrição em 1946. Há citações de escritores que lhe marcaram a vida, como Vitor Hugo e Mark Twain. E recheou o volume com fotografias suas, desde pequenino, na Polônia, até a última com traje da colação de grau em Direito, na Curitiba que ele soube descrever tão bem nos seus escritos. Jacob, para compor as memórias de criança, usou um estilo infantil, quase como se fosse ele criança a escrever… à medida que iam passando os anos, sua escrita amadurecia como ele próprio deve ter amadurecido.
“Chegamos ao Brasil no dia 10 de julho de 1926. Desembarcamos em
Santos. Admiramos então pela primeira vez o continente americano e o país que nos ia servir de pátria daí em diante. Levamos também um bom susto ao ver- mos pela primeira vez um negro, pois na Polônia não se encontra um negro sequer. É por isso que os imigrantes se assustam ao verem um homem preto…"
Com o auxílio dos que tinham vindo antes para o Brasil, a família comprou passagens e embarcou no trem para a capital paranaense.
A Curitiba que Jacob encontrou quando chegou em 1926.
A Curitiba que Jacob encontrou quando chegou em 1926.
“Quando chegamos, era noite e uma chuva fria caía sobre a cidade. Os meus tios (a família Gertel) esperavam com um automóvel. Fomos conduzidos a sua residência, na rua Saldanha Marinho. Tive então ocasião de conhecer os meus primos… Não sabendo eu falar o português, puseram-me numa escola alemã, juntamente com meu irmão Isaac. Ao mesmo tempo estudamos na Escola Israelita do Paraná. Em 1927, aos oito anos de idade, entrei no Colégio Iguassu. Passadas várias semanas, tive de sair de lá, porque não falava ainda convenientemente o português. Arranjaram-me então um professor particular, o dr. Wladislau Jaworski, naquele tempo estudante de direito. Estudei tanto com o meu professor, que gastei várias páginas do livro “O Brasil e o Paraná”… Quando o “seu” Wladislau viu que eu já sabia o necessário, meteu-me novamente no Iguassu. Naquele tempo, ele era secretário do colégio. assim, em 1928, um ano e meio após a minha chegada ao Brasil, entrei definitivamente no primeiro ano primário. Estudei bem e no fim do ano passei para a segunda série.”
O nosso memorialista descreve em detalhes a vida na casa onde sua família passou a viver: “Era uma casa bem grande, onde moravam várias famílias. O prédio que dá para a rua tem um só andar, mas no quintal há outra casa, com dois andares. Ocupávamos nós, dois quartos no segundo andar. Quando chovia muito, era necessário abrir o guarda-chuva dentro de casa. O telhado de nossa habitação era de folha de zinco. Várias vezes por semana um dos vizinhos trepava nele, às cinco da manhã e ali passeava, quando todos dormiam…”
Interessante notar um certo conformismo em aceitar essas condições de vida, “um vizinho passeando no telhado de zinco às cinco da manhã”, além de muitos outros exemplos que perpassam pelo livro em diversos momentos. Há passagens curiosas da vida na casa, até divertidas, como a da famlia alemã que tinha um fordeco. “Aos domingos, o chefe da família, não tendo o que fazer, desmontava o automóvel e depois montava-o outra vez. Quando saía com o automóvel, voltava sempre sem os pneumáticos. A parte metálica das rodas fazia um barulho horrível ao contato com os paralelepípedos da rua.
Apesar dos toques de humor no correr das centenas de historietas que compõem o manuscrito, não deixamos de notar a melancolia sempre presente, algo que acredito ser inerente aos judeus do leste europeu, sempre perseguidos por onde quer que andassem. Vale lembrar que a família de nosso pequeno herói teve muita sorte em sair de Sokal, na Polônia, pois 15 anos mais tarde a população de 5 mil judeus da cidade foi assassinada no campo de extermínio de Belzec. Em certa passagem de suas memórias, Jacob queixa-se de maus tratos recebidos na escola, onde riam dele por “ter matado Jesus”.
Eu tive uma meninice diferente de muita gente. Desde pequeno tive que estudar. Meus pais queriam que eu ficasse o maior tempo possível em casa, estudando. Não me deixavam correr, para não gastar os sapatos, mas apesar disso eu corria quando queria. Viviam escondendo os meus brinquedos para que os mesmos não atrapalhassem os meus estudos. Mesmo nas horas vagas quando saía para a rua, nem sempre podia brincar convenientemente. Quase sempre aparecia alguém para me maltratar física ou moralmente: – ah, judeuzinho patife! Foi você que matou Jesus Cristo! ... E eu sentia uma vergonha horrível. Mas, apesar de tudo, eu era feliz, porque em um instante logo esquecia as minhas tristezas e preocupações....
A força que o menino maltratado encontrava para superar suas agruras e ainda encontrar alegrias, fazer amigos, querer crescer e estudar, é fantástica. Jacob Deutscher tinha um caráter fascinante.
Continua em edição próxima...
Paulo José da Costa é de Ponta Grossa, comerciante livreiro, memorialista, blogueiro, youtuber, dono de acervo e criador das comunidades Antigamente em Curitiba e Antigamente em Ponta Grossa, no Facebook.