Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

O crime da Rua Treze de Maio: o Dr. Jayme Reis morre com dois tiros

Paulo José da Costa
29/11/2023 12:47
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À esquerda, p Cine Mignon; à direita, O Dr. Jayme Drummond dos Reis (1876-1912). | Acervo de Paulo José da Costa

Corria o mês de dezembro de 1912. Estamos no Café Mignon, na rua XV de novembro, 47, ao lado do cinema de mesmo nome, um dos pontos de encontro das mentes mais iluminadas de Curitiba. Ao redor de uma mesa, gastando prosa sobre os assuntos do momento, o médico Dr. Jayme Reis e um grupo de amigos, Romário Martins, Jesuíno Ribas, Benjamin Leite e Carlos Guimarães. Não tinham a menor ideia dos eventos que se aproximavam com o correr das horas, e que levariam o Chefe de Polícia a deixar registrado em seu relatório anual: “Curityba teve duas tragédias em 1912: o Irany e Jayme Reis”. O Irany, todos sabemos, foi a morte do Cel João Gualberto, morto em batalha no Contestado.
Rua Mateus Leme, antiga rua Assunguy. Ao fundo, a esquina da Rua Treze de maio. Foto da época.
Rua Mateus Leme, antiga rua Assunguy. Ao fundo, a esquina da Rua Treze de maio. Foto da época.
À espera da saída do Dr. Jayme estava um jovem com os olhos turvos de ódio, uma arma no bolso. Miguel Chaves Camarano, conforme os registros, ficara a tarde toda observando o grupo. Lá pelas nove horas da noite, Jayme e seu tio Jesuíno saíram e foram conversando em direção ao Largo da Ordem. Na esquina da Igreja com a rua S.Francisco, se despediram e Jayme seguiu para sua casa pela rua Assunguy, hoje Mateus Leme. O médico morava logo adiante, no número 99 da Conselheiro Barradas, hoje Carlos Cavalcanti. Não chegou,  pois na esquina da rua 13 de maio dois estampidos interromperam o seu caminhar. Dados pelas costas, um dos tiros atingiu o pulmão e a omoplata, e o outro, o ventre, alojando-se num dos  rins. O ferido, sangrando muito, andou mais um pouco e sentou-se na calçada.  Nesse tempo, seu fiel amigo Jesuíno, que ouvira os tiros, chegou e clamou por ajuda. Levaram-no então para a casa de seu pai, o também médico, Dr. Trajano Reis.
À esquerda, o Cine Mignon. À direita, o anúncio do Café Mignon.
À esquerda, o Cine Mignon. À direita, o anúncio do Café Mignon.
O Dr. Trajano fez o que pôde, mas no dia seguinte pela manhã enviou o seu filho para ser operado por uma equipe dos melhores cirurgiões da cidade. Jayme morreu à noitinha do dia 13.
Curitiba amanheceu em estado de choque. O Dr. Jayme Reis era pessoa conhecida de todos e granjeara admiração pelo seu trabalho humanitário e no campo da política. O atirador logo foi preso e confessou seu crime tranquilamente. E mais chocada ficou a cidade ao descobrir que o assassino era ligado por matrimônio a outra família estimada por todos. O jovem comerciante Camarano, de apenas 22 anos, há cinco era casado com Palmyra de Macedo, filha do Cel. Manoel Ribeiro de Macedo.
Mas os paranaenses teriam de conviver com mais revelações chocantes. O que se descobriu em seguida, conforme consta dos autos e também pelas transcrições da imprensa é que a jovem esposa do assassino fora assediada pelo Dr. Jayme, em seu consultório, em uma consulta de rotina.  Não cedendo às investidas galantes do médico, repeliu-o assustada e constrangida, fugindo do local. Em seguida, revelou tudo a seu pai que, incontinenti, contou ao marido. Este, de sangue quente italiano, apesar dos apelos da família, não soube segurar o ímpeto de vingança pelo ultraje à honra que sofreu. Quem aprecia ópera italiana lembrará de imediato a "Cavalleria Rusticana", de Pietro Mascagni. Está tudo ali, menos a tocaia, menos os tiros pelas costas.
O jornal A República, visceralmente ligado à vítima, transcreveu um diálogo que teria ocorrido numa visita dos repórteres ao moribundo, que transcrevemos:
- Como se acha o doutor? - Mal, muito mal, moço. - sabe quem o feriu?  - Ignoro, fui vítima de uma traição.  - Dizem que foi Miguel Chaves Camarano, seu cliente, por questões de família...- Ah, não pode ser. Eu sempre respeitei os lares alheios, como quero que respeitem o meu. Esse é um plano de última hora para inocentar o covarde agressor, com quem nunca tive a menor questão…
Podemos imaginar o duelo de versões que terá ocorrido nas conversas por semanas e meses após o ocorrido em todas as famílias, na sociedade, clubes, igrejas, foi uma comoção. Afinal, teria uma pessoa da grandeza moral do Dr. Jayme, provada mil vezes nas atitudes humanitárias, descido à lascívia, ao baixo mundo, ao tentar seduzir ou até mesmo violentar uma esposa no recinto sagrado de seu consultório médico?
Por outro lado, teria o assassino sido levado ao gesto extremo pela forte emoção, pelo sangue que lhe subiu à cabeça, fruto de um momento de ímpeto, se ficou horas matutando o crime, à espera de sua vítima para matá-la à traição, pelas costas? Como afirmou o promotor Eneas Marques dos Santos, no dia do julgamento do caso, “alguém que quer lavar a sua honra não procura a escuridão para perpetrar o crime, fugindo em seguida...” Foram as questões que animaram os debates e o julgamento.
O tribunal do júri se reuniu no dia 17 de setembro de 1913 e foi presidido pelo juiz da Segunda Vara Criminal, dr. Octávio do Amaral. Além do Sr. Eneas, que funcionou como Promotor, atuaram na acusação Benjamin Lins e Affonso Camargo, e na defesa Amadeo Cezar e Teixeira de Carvalho, todos luminares, todos das mais altas esferas de competência nas suas áreas. O duelo entre os advogados durou horas e esses detalhes deliciosos para os amantes desse tipo de episódio infelizmente não tenho espaço na coluna para descrever. Mas quero fazer notar que as últimas palavras do advogado de defesa Dr. Amadeo Cezar foram aplaudidas pela numerosa assistência, o que motivou uma advertência do Juiz. Disse na sua alocução final o mencionado advogado : “Lamento a perda do dr. Jayme Reis, mormente de uma forma tão trágica, pedindo aos jurados que procedessem de acordo com sua consciência, libertando o acusado, presente vítima de um ato impulsivo motivado por uma justa revolta de sentimentos nobres ofendidos.”
Esse aplauso mostra que a assistência estaria favorável ao réu? O Sr. Miguel Chaves Camarano foi condenado a 21 anos, mas, com a apelação dos seus advogados, ocorreu novo julgamento em março de 1914. A pena então foi reduzida para seis anos de cárcere, sendo ele libertado em 9 de dezembro de 1918. Continuou sua vida de comerciante após pagar o preço que lhe impôs a sociedade.
O Dr. Jayme Drummond dos Reis recebeu homenagens no Congresso Estadual, onde fora deputado na legislatura 1908-1912. Também na maçonaria, onde atuou na Acacia Paranaense, promoveu e alcançou a elevação das colunas da Loja Apóstolo da Caridade, de onde foi Venerável. Foi fundador das Oficinas Maçônicas Electra, Concórdia, entre outras. Muitos artigos na imprensa destacaram seu trabalho profícuo em diversos Congressos e também na Questão de Limites com Santa Catarina. Romário Martins escreveu um opúsculo com sua biografia. Finalmente, Curitiba deu-lhe nome a uma das ruas centrais da cidade.