Cotidiano de Antigamente

Paulo José da Costa

Panorama da Curityba de 1909

Paulo José da Costa
28/10/2022 13:49
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Curitiba em 1909, cromolitografia de R. Kammerer, ed. Cezar Schulz. | Arquivo pessoal Paulo José da Costa

Houve um tempo nesta capital dos pinheirais em que a um fotógrafo ou aquarelista bastava subir num morro dos arredores para se ter uma vista de toda a cidade. Então, dali calmamente registrar aquele sossego de gente a passos silenciosos, indo pra lá e pra cá, só rompido de vez em quando pelo trafegar de carroças de imigrantes e carruagens de ervateiros, ou pelo bulício de algum grupo de piás em saudável algazarra. As primeiras vistas de Curitiba são encontráveis facilmente nas pesquisas de internet, bastando digitar nos sites de busca para se ter o registro, de Debret, aquele vilarejo de 1827.
Depois, a aquarela de Elliot, de 1855, com um casario tipicamente português, casas simples com telhas, goivas e torres de igrejas, cujos sinos eram ouvidos longe, muito longe, anunciando dias alegres ou tristes para os fiéis atentos. As primeiras vistas fotográficas, raras, datam das décadas de 1870 e 1880. Nelas, temos a sorte de ver uma cidade já sendo enriquecida pela vinda dos colonos eslavos, italianos e germânicos que rendilharam os arredores da pequena urbe com suas chácaras. A Curitiba colonial de casebres quase miseráveis, em duas ou três décadas se metamorfoseia em linda cidade que floresce em sólidos edifícios, com fachadas trabalhadas que procuram mostrar o progresso das famílias que os ocupam. Progresso, diga-se, fruto de trabalho duro que iria semear e fazer crescer as raízes da metrópole que hoje conhecemos. Não à toa, quando um alemão ou italiano construía sua morada na cidade, na parte de baixo do sobrado era imprescindível o espaço para seu comércio ou indústria, para no andar de cima viver com a família. E os eslavos, italianos ou franceses, nos seus sítios, semeavam a terra para trazer os frutos benditos de seu trabalho nas feiras e quitandas.
Edifício da firma de Cezar Schulz, à rua Barão do serro Azul, 12-14, em Curitiba.
Edifício da firma de Cezar Schulz, à rua Barão do serro Azul, 12-14, em Curitiba.
Que alegria devem ter sentido esses imigrantes nesta terra que os acolheu e lhes deu prosperidade e paz.  Estava ali a base de tudo: paz, trabalho e progresso. Paralelamente, fé, escola, cultura e divertimento. Esses colonos trouxeram uma nova realidade para  o modo de se viver e vicejaram os clubes, as associações, os novos templos, as indústrias, as casas de comércio e suas importações de artigos sofisticados. De tal forma, que na virada do século temos uma outra Curitiba, uma pérola tipicamente europeia, que o artista R. Kammerer registrou com maestria nessa cromolitografia de 1909, editada pela casa de Cezar Schulz e confeccionada na Impressora Paranaense.
É na papelaria, oficina de encadernação, fábrica de carimbos e tipografia de Cezar Schulz (imagem 2) que nasce a mais importante série de cartões postais paranaenses do início do século XX, em belas cromolitografias, que os interessados poderão ver em sua inteireza no meu blog, paulodafigaro.blogspot.com. (imagens 3 e 4) É um típico calendário para se pendurar em parede, com aquelas folhinhas que se iam arrancando dia a dia, muito comuns à época. As folhinhas com os dias sumiram na voragem do tempo, mas o cromo e seu registro histórico foi salvo por alguma alma cheia de cuidados que hoje também já partiu. Caiu em minhas mãos por milagre e não conheço outro exemplar. Como eu também serei arrancado um dia deste mundo tal qual as folhas do calendário, a melhor maneira de preservar a imagem é divulgá-la. Então aproveitem a oportunidade e espalhem por aí esse registro, copiem, imprimam, presenteiem, multipliquem-no.
Rua José Bonifácio, postal de Cezar Schulz, em 1909.<br>
Rua José Bonifácio, postal de Cezar Schulz, em 1909.<br>
Nele, vê-se em primeiro plano o passeio público e ao fundo as torres da catedral metropolitana e da Igreja da Ordem. Mais à direita pode-se distinguir o Palácio Garibaldi. É uma visão idílica, romanticamente europeia, da capital dos paranaenses naquele limiar dos tempos modernos. Toda essa beleza se foi, substituída pelos arranha-céus e o multiplicar de uma população que recebeu injeções de outras etnias, de migrantes de outras partes do Brasil, das Américas, num caldo de miscigenação generoso e frutificante. Hoje, Curitiba se transformou e adquiriu uma nova beleza. Talvez devamos lamentar que muita coisa do passado poderia ter sido mantida, porque belas, porque boas, porque história deve ser conservada e contada, pois nossos filhos e netos se nutrirão desses exemplos de luta, trabalho, arte, cultura para forjarem seu caráter. O passado deve ser sempre o estímulo para que as novas gerações o olhem e tentem suplantá-lo nas suas lições. Ou para que mirem o trabalho de seus antepassados com orgulho e tenham o verdadeiro significado de ter um chão para se pisar, raízes.
Abrindo parênteses, vejamos o que “rolava” na nossa urbe naquele longínquo 1909: a balonista Maria Aída ascendeu com seu aparelho no Passeio Público e veio enroscar-se nas torres da catedral. Imaginem a criançada acompanhando aquela pioneira, correndo atrás do aeróstato. Foi por pouco que ela não se deu mal...
Foi criada pelo tenente João Gualberto de Sá Filho a Sociedade de Tiro Rio Branco, o Tiro 19, uma associação de treinamento militar para civis que faria história nos campeonatos de tiro no Rio de Janeiro. A banda do Tiro 19 registrou os primeiros discos por um grupo musical paranaense na Casa Edison do Rio de Janeiro, numa de suas idas à capital da República, em 1912. Também a valsa “Saudade de Curitiba”, a primeira música de autor paranaense gravada em disco, cuja autoria desconheço até o momento. Essa gravação pode ser ouvida em minha página no youtube em https://www.youtube.com/watch?v=tJZEzpXkFiM&t=46s .
Naquele mesmo ano de 1909, Augusto Stresser escreveu a partitura para piano e canto de sua ópera Sidéria que, revisada e orquestrada por Leo Kessler, estreou no Guayra em 1912, tendo repercussão nacional. Afinal, era a primeira ópera paranaense.
Rua da Liberdade, hoje Barão do Rio Branco. Postal de Cezar Schulz, em 1910.
Rua da Liberdade, hoje Barão do Rio Branco. Postal de Cezar Schulz, em 1910.
E olhem só, temos mais acontecimentos no ano em que nossa cromolitografia foi impressa: o presidente da Nação, Afonso Pena, visitou Curitiba. E foi uma festa. Foi sua última visita como mandatário da nação, pois faleceria logo em seguida, sendo substituído por Nilo Peçanha.
E, last but not least,  em 23 de junho de 1909, Arthur Hauer, um dos fundadores do Coritiba, envia um cartão postal para sua irmã Emma, comunicando a formação do “nosso novo fundado clube de futebol  (unseres neu gregündeten Fussballklubs). Na foto do cartão, guardado como tantas preciosidades em meu arquivo, estão quase todos os outros fundadores, sendo que para os registros oficiais o clube, ele só foi fundado no mês de outubro.
Hoje é impossível termos em fotografia um panorama completo da cidade, pois ela se espalhou por dezenas de quilômetros. Já nos anos 1950, esses registros só seriam possíveis de avião. E hoje em dia, uma visão total da megalópolis só mesmo tomada do espaço, pelas lentes de um satélite, mas isso é muito sem graça... Saudoso de um tempo que não vivi, ou do qual senti apenas as aragens de um crepúsculo, mostrei para o amável leitor esse belíssimo cromo que nos mostra a Curityba de 1909. Espalhem por todo canto a boa nova: Curitiba era linda, e continua.