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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Documentário

O problema não é o apocalipse, é a liberdade

Apocalipse nos trópicos
Cena do documentário "Apocalipse nos Trópicos", que tenta recriar uma história dos evangélicos no Brasil. (Foto: Divulgação/Netflix)

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O mais novo filme da cineasta Petra Costa, Apocalipse nos Trópicos, disponível na Netflix, não deixa dúvidas sobre seu propósito: reforçar a noção de que o crescimento evangélico no Brasil representa uma ameaça obscura à democracia.

Seguindo a mesma estética de colapso de sua obra anterior, Democracia em Vertigem, Petra agora escolhe um novo vilão: os evangélicos. O documentário constrói uma narrativa em que a fé cristã aparece como força irracional, coletivista e apocalíptica – algo que precisa ser contido antes que seja tarde demais.

A premissa não é nova, mas ganha agora um verniz mais sofisticado. Fala-se de um suposto “projeto de poder” evangélico, de um messianismo autoritário disfarçado de fé popular, pronto para capturar o Estado e transformá-lo numa teocracia tropical. O documentário não prova, insinua. Não investiga, rotula. O resultado é mais uma caricatura que alimenta o medo em vez de promover o debate.

O incômodo de parte da elite brasileira com os evangélicos não nasce de um embate direto com as ideias cristãs, mas da constatação de que essas ideias escapam ao controle dos formadores tradicionais de opinião.

O evangelho cresceu debaixo do nariz dos que achavam que haviam derrotado o cristianismo

Durante décadas, a cultura política brasileira orbitou entre a esquerda laica e o centrismo tecnocrático, ambos alérgicos à fé no espaço público. A emergência de um grupo que não se envergonha de suas convicções espirituais, que canta, ora e vota, rompe esse equilíbrio tácito – e isso é visto como “radicalização”, quando é apenas liberdade.

É nesse ponto que a crítica contida no documentário revela sua matriz antidemocrática. Em vez de reconhecer o pluralismo religioso como elemento vital da democracia, trata-o como obstáculo à modernidade. Em vez de dialogar com a fé, patologiza seus símbolos e isola seus representantes. O problema, ao que tudo indica, não é a religião politizada, mas a religião que não aceita ser domesticada. Não incomodam as igrejas que se silenciam. Incomodam as que falam, resistem, participam.

Essa aversão não leva em conta que o evangelicalismo brasileiro, em sua ampla maioria, é antes comunitário que ideológico. Não nasceu da cúpula para as massas, mas da vizinhança para os bairros. Cresceu oferecendo sentido, pertencimento, reconciliação. Onde o Estado falhou, muitas igrejas estenderam a mão. E é justamente esse caráter orgânico, descentralizado e resiliente que torna o fenômeno evangélico incontrolável – e, para alguns, perigoso. Mas perigoso para quem?

A resposta talvez esteja onde menos se quer olhar: no próprio texto constitucional. O artigo 1.º, inciso V, da Constituição afirma que o pluralismo político é fundamento da República. E não há pluralismo sem liberdade religiosa.

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Mais ainda: a liberdade religiosa é o último bastião contra o totalitarismo simbólico. Ela protege o íntimo das consciências contra hegemonias ideológicas. Por isso incomoda. Por isso precisa ser deslegitimada.

O crescimento evangélico no Brasil não veio de cima para baixo. Não foi um projeto de dominação institucional. Ele nasceu nas favelas, nos presídios, nas periferias, nas comunidades feridas pela violência e abandonadas pelo Estado. Foi resposta espontânea, não engenharia cultural. Cresceu porque era livre – e onde há liberdade, o fermento do evangelho se espalha.

E é exatamente isso que incomoda: o evangelho cresceu debaixo do nariz dos que achavam que haviam derrotado o cristianismo. Enquanto celebravam sua vitória secular, a fé florescia entre os pobres. Enquanto anunciavam o fim da religião, as igrejas ocupavam salões, depois templos, depois estádios. Hoje, essa fé que antes era ignorada tornou-se grande demais para ser desprezada – e difícil demais de ser enfrentada de frente. Daí as táticas simbólicas: narrativas, documentários, slogans, guerra cultural.

Só que democracia não serve para garantir que só as ideias “certas” circulem. Ela é mais forte quando convive com o dissenso. E mais legítima quando dá espaço para as vozes com as quais não se concorda.

O problema nunca foi a fé. O problema é o medo de quem não consegue controlá-la

Às vésperas da corrida eleitoral de 2026, é curioso que justamente agora apareçam obras midiáticas que retratam a fé como ameaça. Coincidência? Ou cálculo? Quando um grupo começa a votar em bloco, lançar candidatos e resistir às agendas dominantes, vira alvo.

Mas a verdadeira ameaça à democracia não é a participação dos evangélicos na política. É o desejo de que só algumas vozes possam participar. Não se trata de defender um cercadinho religioso, mas de garantir a praça pública – aberta, plural, tensionada, viva.

O que está em jogo vai além de uma eleição. Vai além de evangélicos e progressistas. O que está em risco é a própria ideia de civilização: onde a religião é respeitada, a dignidade floresce; onde a fé é livre, a barbárie recua.

O problema nunca foi a fé. O problema é o medo de quem não consegue controlá-la. A pergunta que fica é: a quem interessa calar a fé?

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