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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

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Cristofobia não é mito; ela existe e precisa ser combatida no Brasil

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"Justiceiros sociais" estão prontos para atacar qualquer padre ou pastor que ouse contrariá-los e pregar sua fé. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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Na cidade em que Claudia Leitte passou de cantora adorada para persona non grata em poucos dias por trocar a letra de uma música para prestar homenagens a Jesus Cristo, um vereador – Cezar Leite (PL) – resolve propor um projeto de lei contra a cristofobia, sugerindo uma política pública que iniba ações discriminatórias a cristãos.

A Câmara Municipal de Salvador promoveu audiência pública sobre o projeto de lei, da qual participei ao lado de autoridades seculares e religiosas. Representei o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), expondo a cristofobia no Brasil, suas formas de manifestação e como o sistema legal já tem vacinas potentes para esta enfermidade social.

Mesmo assim, a proposição da norma municipal se mostra feliz e oportuna, pois capta o grito da maioria silenciosa no sentido de reafirmar que “a grama é verde”, já que a Constituição Federal estabelece como cláusula pétrea a liberdade religiosa em seu amplo sentido (crer, reunir-se, propagar, organizar-se) e, portanto, impossível de mudar até mesmo por emenda constitucional.

Isso sem falar na farta legislação sobre o tema, demonstrando a religião é tão importante para o povo brasileiro que a discriminação com base nela é crime, bem como as atitudes que ferem o sentimento religioso – a esse respeito, o leitor pode conferir o livro A Laicidade Colaborativa Brasileira: da aurora da civilização à CRFB/88, de Thiago Rafael Vieira e Jean Regina.

Os inimigos dos cristãos, muito mais do que se especializarem no enfretamento direto, estão ensopando as culturas dos países ocidentais de modos sofisticados de anticristianismo

O cristianismo é uma religião perseguida desde seu nascimento; seu fundador recebeu uma pena capital sem ter cometido crime algum. Seus primeiros seguidores também foram condenados à morte, assim como tantos outros ao longo da história. Em tempos recentes, para além dos casos mais graves catalogados pela organização Portas Abertas – que, usando metodologia científica, hoje contabiliza em 400 milhões os cristãos perseguidos no mundo e até ranqueia os 50 países mais hostis –, quem é cristão praticante já foi alvo de algum tipo de intolerância velada ou ostensiva.

Situação antiga e corriqueira, portanto, mas que tem tomado outras formas e proporções, já que os inimigos dos cristãos, muito mais do que se especializarem no enfretamento direto, estão ensopando as culturas dos países ocidentais de modos sofisticados de anticristianismo. Luis Antequera, em Cristofobia. A perseguição dos cristãos do século 21, toma de empréstimo a classificação elaborada pela conferência sobre liberdade religiosa da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) de 2021, segundo a qual a intolerância religiosa, como gênero, tem como espécies, de forma decrescente em termos de gravidade, a perseguição, o assédio e a hostilização.

Segundo o autor, a perseguição religiosa seria aquela que ameaça a vida ou a integridade física, ou mesmo a dignidade humana mais elementar. Assassinatos, ataques diretos a propriedades, negócios e templos, estupros e casamentos forçados exemplificam essa prática. Ela ocorreu com frequência nos regimes comunistas do início e metade do século 20, remanescendo no século 21 na Coreia do Norte e em outros países de governos teocráticos.

O assédio religioso tem a mais variada gama de manifestações especialmente indiretas, mas capazes de segregar cristãos e inviabilizar sua participação na vida social, a exemplo do fechamento de determinadas atividades comerciais, do confinamento de cristãos em guetos e subúrbios, do impedimento de evangelizar os filhos, de exigências administrativas intransponíveis para aberturas de templos, e de imposições de práticas de ritos específicos de uma religião dominante a todos os habitantes de um país.

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Mas é a terceira forma que melhor expressa o que hoje enxergamos como cristofobia no Brasil. Falo da hostilização religiosa, que Antequera define como “situação muito especial e típica do momento histórico em que vivemos, especialmente nas sociedades ocidentais (...), produzida tanto por grupos organizados (esquerda radical, lobbies feministas ou gays, lobbies ateístas), como pelo Estado quando endossa os slogans desses grupos de hostilizadores”.

Toda a chamada “Teoria Crítica” e sua “Justiça social” apontam para o anticristianismo – o que, aliás, já era teoria no marxismo clássico e prática comprovada nos países socialistas. Em seu discurso público, embora afirme que o protótipo do “opressor-mor”, na sua tarefa especialmente “decolonial”, se resumiria ao homem branco heterossexual, o “justiceiro social” deixa claro que esse “opressor” também é cristão ou judeu, religiões cuja moralidade é o que mais lhe repugna, tornando-se objeto último de seu esforço de “abolição”.

A moralidade judaico-cristã é atacada das mais diversas formas, que vão desde sofisticações acadêmicas para redefinir o conceito de “vida”, iniciada desde a concepção segundo as Escrituras e a ciência, até o constrangimento de crianças cristãs nas escolas para aceitarem cartilhas “progressistas” de “gênero”, quando a Bíblia fala em apenas dois sexos. E, sendo a família o único local de resistência à “revolução”, não é de surpreender que usar o Estado para estimular e facilitar o divórcio tenha sido uma estratégia bem aplicada e bem-sucedida, assim como para tirar dos pais a amplitude do seu direito natural de educar seus filhos.

Exemplos não faltam e se multiplicam a cada segundo, muitos deles usando como escudo o conceito de “Estado Laico” – uma construção, diga-se de passagem, cristã, que, trazida para as diversas Constituições ocidentais, significa um Estado neutro, no sentido de imparcial, embora, para os que o usam como argumento contra o cristianismo, signifique um Estado de viés progressista (destruidor de qualquer outra cosmovisão), ou mesmo um Estado ateu. E, assim como ocorre na pretensa inexistência de “racismo reverso” de negros contra os brancos, também se costuma dizer que não existe “cristofobia”, por se tratar de religião integrada ao grupo “opressor”; só existiriam, assim, a “islamofobia” e o “apagamento” de religiões de origem africana.

É evidente que a hostilização religiosa a cristãos está dirigida a pessoas e grupos mais ortodoxos em termos de interpretação das Escrituras

É interessante como pessoas que integram movimentos esquerdistas que se enfronharam no catolicismo (por exemplo, a Teologia da Libertação) ou no protestantismo (caso da Teologia Liberal e da Missão Integral) não enfrentam cristofobia. Fica evidente que a hostilização religiosa a cristãos está dirigida a pessoas e grupos mais ortodoxos em termos de interpretação das Escrituras, sendo mais comum para os chamados “cristãos bíblicos”, os quais, para além de enxergarem a moralidade cristã como algo a ser seguido de modo prático, também costumam propagar a mensagem do Evangelho – atitude, aliás, que também enfrenta especial resistência.

Neste momento, um frade católico está conseguindo reunir mais de 1 milhão de pessoas para rezar às 4 horas da madrugada, e suas redes sociais estão repletas de mensagens de ódio e repúdio, como se um movimento de busca a Deus fosse subversivo, danoso e até criminoso! Quem está imune ao trabalho de lavagem cerebral feito nas escolas e universidades ao longo dos últimos anos até se pergunta: por que desejam calar alguém que não está lhe causando nenhum mal ou que nada interfere em sua vida? A verdade é que essa reação é o sintoma de uma mente programada para ver no cristianismo um inimigo a ser destruído.

Observando uma situação como esta, que tipifica um comportamento social emergente, a perspectiva é de que manifestações desse tipo se intensifiquem e evoluam em gravidade, como tem ocorrido em outros pontos do globo.

Para frear o instinto “cristofóbico” que se instalou, a primeira ação a tomar é afirmar que cristãos são tão cidadãos como os adeptos de outras religiões e os que não têm religião. Para além da sua inviolável (sagrada!) liberdade de crença e consciência, de culto, de proselitismo e de formação de organizações religiosas, como têm os demais, são também brasileiros com direitos fundamentais, dentre os quais os direitos políticos. Podem falar na esfera pública com suas crenças e vieses, do mesmo modo que os religiosos da “justiça social”. Não são maiores que os outros cidadãos, mas também não são menores. Seu voto vale o mesmo, e sua voz também.

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A segunda atitude é usar o sistema de Justiça para fazer valer a efetivação destes direitos. Até que outra a revogue, a Constituição de 1988 continua vigente – mesmo que alguns não queiram –, bem como a legislação que prevê os crimes relacionados à liberdade religiosa, indistintamente considerada.

A terceira é a pressão e a denúncia a ser feita pela comunidade cristã sob todos os modos e canais. Igrejas, associações, escolas, universidades e outros grupos confessionais não podem mais encarar como normal a hostilização dos seus membros e líderes em um ambiente no qual uma minoria organizada e barulhenta avança para a implantação de um regime que claramente busca banir o cristianismo do espaço público, após ter obtido de mão beijada as maiores benesses civilizacionais, incluindo a própria liberdade religiosa, à custa de sangue cristão.

Sem descartar outras ações, a última sugestão que trago aqui é a multiplicação de iniciativas como esta, que nasceu na primeira capital no país. Em todos os Legislativos do Brasil, nos três níveis de governo, a hostilização em forma de cristofobia precisa receber um tratamento compatível com a competência de cada ente federativo, até como forma de conscientizar ofendidos e ofensores da ilicitude da hostilização a cristãos.

Zizi Martins é advogada, procuradora do Estado da Bahia, especialista em Direito Administrativo pela UFBA e em Direito Religioso pela Unievangélica, mestre em Direito pela UFPE, doutora em Educação pela UFBA, pós-doutora em Política, Comportamento e Mídia pela PUC/SP, presidente do Instituto Solidez, membro do IBDR, membro fundadora da Lexum, e consultora e pesquisadora na área de liderança e gestão pública, além de comentarista política.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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