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Um caso aparentemente simples ganhou destaque na imprensa, foi comentado por jornalistas e influenciadores e passou a ser tratado com atenção especial pelo Ministério Público da Bahia (MP/BA). No dia 27/1/2025, o órgão promoveu uma audiência pública para discutir medidas culturais, educacionais e legais que protejam as comunidades afro-brasileiras, especialmente os povos de terreiros.
O MP-BA classificou como "possível dano moral" a mudança na letra da música Caranguejo feita pela cantora Cláudia Leitte, que trocou a palavra "Yemanjá" por "Yeshu’a".
Além de um único professor universitário considerado "especialista", o evento contou com representantes de órgãos públicos e entidades religiosas para discutir o impacto de discursos e práticas classificadas como discriminatórias. Também teve o objetivo de promover a valorização da cultura afro-brasileira e o respeito à diversidade religiosa. O Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) participou, pois, sua missão inclui a defesa das liberdades de crença, religiosa, consciência e de expressão como bases da dignidade humana e do Estado Democrático de Direito. Eu estive presente como representante do Instituto.
Analisando o evento, incluindo a justificativa do edital, a referência teórica citada pelo promotor que presidiu a audiência e as falas dos participantes, ficou claro que o objetivo era reunir argumentos para embasar um possível processo judicial. Esse processo se apoiaria em teses acadêmicas ideológicas, como a do "racismo estrutural". Mas tirando algumas menções de órgãos técnicos ligados ao patrimônio histórico, quase não houve referência a Constituição e às leis brasileiras sobre liberdade de crença, a liberdade religiosa e o Estado laico. Esses temas são essenciais para avaliar tanto o direito da cantora de alterar a música quanto o papel do Ministério Público e de outros órgãos públicos diante de um conflito por motivos religiosos.
A religião sempre fez parte da experiência humana. Ter e expressar uma fé influencia a forma como a pessoa vê o mundo, faz escolhas, constrói relacionamentos e se comporta. Além dos rituais e da crença em divindades, as religiões têm regras próprias sobre moralidade. Por isso, a prática religiosa individual ou coletiva impacta a cultura como um todo.
No Brasil, a religião está presente no dia a dia e aparece de forma natural no meio artístico. Quem nasceu até a geração X lembra da cantora Clara Nunes, que homenageava os orixás em suas músicas, usava roupas brancas e colares coloridos. Maria Bethânia costuma se apresentar descalça e vestida de branco, às vezes demonstrando sua devoção aos deuses africanos. Roberto Carlos canta uma música católica bastante conhecida, que é uma oração à mãe de Jesus. Nos últimos anos, vários cantores famosos declararam ser evangélicos e passaram a incluir mensagens cristãs em suas músicas populares. Tudo isso acontece em shows, álbuns e outras mídias.
O direito às liberdades de crença e religiosa no Brasil é garantido tanto por tratados internacionais assinados pelo país, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da Costa Rica, quanto pela Constituição de 1988 (art. 5º, VI). Esses documentos afirmam que a liberdade religiosa é um direito fundamental. Ele protege tanto a crença pessoal (belief), que é inviolável, quanto a manifestação pública dessa fé (action). Esse direito é um dos pilares da dignidade humana, que é um princípio básico do direito brasileiro (art. 1º, III). (Essa explicação se baseia na obra Liberdade Religiosa. Fundamentos Teóricos para a Proteção e Exercício da Crença, de Thiago Vieira). (O art. 23 do Estatuto da Igualdade Racial repete o texto constitucional do art. 5º, VI).
A convivência pacífica entre religiões não será alcançada com ressentimentos coletivos ou com teses pensadas para justificar processos judiciais seletivos
Por isso, se Cláudia Leitte, que é declaradamente evangélica e segue uma fé monoteísta, for obrigada a cantar uma música mencionando outra divindade que não seja o seu Deus - Yeshu’a (Jesus), seu íntimo - a liberdade de crença e a exteriorização de sua nova fé, protegida pela liberdade religiosa, estariam sendo violadas. Esse é o ponto central do debate. O mesmo aconteceria se Clara Nunes fosse obrigada a cantar sobre Jesus ou se Maria Bethânia precisasse vestir coque, roupa comprida e sapato para se apresentar.
Mais do que isso: não é desrespeito religioso deixar de cantar para uma divindade diferente daquela em que se acredita. Se fosse, então cantar para a própria divindade também seria ofensivo. Mas, na realidade, isso faz parte do direito de liberdade de crença e religião, que existe desde antes da criação do Estado. Se uma pessoa pode cantar para seu Deus, também pode escolher não cantar para outra divindade. Assim, mudar o nome de uma divindade em uma música é apenas uma forma de adaptá-la à própria crença, que é protegida por lei.
O Brasil é um país laico, ou seja, o Estado deve ser neutro, com viés de imparcialidade, em relação às religiões. No entanto, muitas pessoas confundem laicidade com laicismo, que é a exclusão da religião do espaço público.
No país, temos o modelo mais avançado de laicidade colaborativa, pois respeita a religiosidade do povo e garante proteções como a imunidade tributária dos templos e a punição de crimes contra a fé. Essas características são muito bem analisadas no livro Laicidade Colaborativa Brasileira. Aurora da Civilização à Constituição Brasileira de 1988, de Thiago Rafael Vieira e Jean Regina, titulares desta coluna.
Existem outros tipos de relação entre religião e governo. Em um Estado teocrático, as leis e os governantes seguem obrigatoriamente uma religião específica. Já em um Estado confessional, o órgão público dá tratamento preferencial a uma religião, o que pode ser um risco no caso em discussão.
No momento em que escrevo esse artigo, chega ao meu conhecimento que o IDAFRO (Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afrobrasileiras) e a Iyalorixá Jaciara Ribeiro apresentaram uma petição ao MP -BA para que se recomende ao Estado da Bahia e ao Município de Salvador que não mais contratem a cantora Cláudia Leitte. A prevalecer algo do gênero, ela estará excluída do Carnaval da Bahia mesmo sendo uma cantora reconhecida pelos foliões do país. Ela estará sendo claramente discriminada porque não canta aos orixás africanos, de modo que, tanto a liberdade religiosa constitucional, como a laicidade poderão ser ignorados pelo Estado, no caso (o que espero que não aconteça). E, além disso, um precedente perigoso será aberto que valerá para todas as religiões. Isto, sem falar, de seu direito constitucional ao trabalho que estará sendo tolhido.
Outras questões podem ser levantadas.
A mudança na letra de uma música pode ser visto como um problema de direito autoral, o que deve ser resolvido, em caso de conflito, entre os envolvidos diretamente ou na Justiça Cível.
Se a música tivesse um significado especial para uma religião, ela poderia ser reconhecida como patrimônio cultural imaterial (art. 216 da Constituição). Mas esse não é o caso aqui, tanto que tem autor, é datada e cantada em ambientes quaisquer.
Também não faria sentido afirmar que o axé é um gênero exclusivamente religioso ou que músicas desse estilo servem apenas para louvar deuses africanos. O axé já passou por muitas mudanças e hoje é cantado em diversos ambientes, incluindo igrejas cristãs. O mesmo acontece com o samba. Da mesma forma, o Carnaval não pertence a nenhuma religião específica, pois é uma festa aberta a todos e nem nasceu no Brasil.
Concluindo por aqui, há de se reconhecer a existência de racismo como um fenômeno da imperfeição humana e que, muitas vezes, descamba para condutas criminosas que exigem punições. Há de se buscar proteger as manifestações religiosas, de qualquer ordem, dos negros brasileiros (que são maioria também entre os evangélicos, por exemplo). Há de se mostrar o valor da cultura e da tradição africana como parte vital da cultura brasileira. E tudo isso é importante e urgente.
Mas a convivência pacífica entre religiões não será alcançada com ressentimentos coletivos ou com teses pensadas para justificar processos judiciais seletivos. O que realmente garante a liberdade religiosa é a aplicação da Constituição e dos tratados internacionais que protegem os direitos humanos de índole religiosa e definem como funciona o Estado Laico.
Porque regras claras valendo para todos que professem ou não religiões vão proteger especialmente religiões historicamente discriminadas no Brasil e no mundo, seja o cristianismo, sejam as religiões de matriz africana.
Zizi Martins é membro do IBDR e membro fundadora da Lexum, Advogada, Procuradora do Estado da Bahia, Especialista em Direito Administrativo(UFBA), Especialista em Direito Religioso(Unievangélica), Mestre em Direito(UFPE), Doutora em Educação(UFBA), Pós-Doutora em Política, Comportamento e Mídia(PUC/SP). Atua também como consultora e pesquisadora na área de liderança e gestão pública, além de comentarista política. (Instagram: @zizimartinsoficial; Facebook: Zizi Martins; LinkedIn: Alzemeri Martins; X: @zizimartinss)




