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Crônicas de um Estado laico

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Liberdade Religiosa

Discursos de fé ou de ódio? Proselitismo em debate no mundo online

(Foto: dlxmedia.hu/Unsplash )

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As redes sociais se tornaram parte indispensável do nosso cotidiano, mudando profundamente a forma como nos comunicamos, buscamos informações e compartilhamos nossas ideias. Mas, além de serem espaços para interações e debates, elas também trouxeram novos desafios, especialmente no campo jurídico. Questões como privacidade, difamação, discursos de ódio e, em especial, o proselitismo religioso — a prática de tentar converter outros a uma fé ou convicção — ganharam novas dimensões nesse ambiente global e instantâneo. E aí surge uma pergunta central: como garantir que o direito de expressar a fé seja respeitado, sem ultrapassar os limites da liberdade e do respeito ao próximo?

A Constituição brasileira é clara ao proteger a liberdade religiosa, conforme o artigo 5º. VI, VII e VII, que assegura o direito de professar crenças, realizar cultos, dar assistência religiosa aos presos e internados em hospitais, divulgar e ensinar ideias e dogmas religiosos. Essa liberdade inclui o proselitismo, prática adotada pela maioria das religiões ao longo da história. Hoje, com as redes sociais, essa disseminação ganhou alcance global, permitindo que mensagens de fé alcancem milhões de pessoas instantaneamente. Contudo, isso também levanta questionamentos: até onde vai o direito de propagar uma crença sem ferir os direitos de quem pensa diferente?

Infelizmente alguns não sabem exercer seu direito humano ao proselitismo. Isso ocorre quando ele se torna coercitivo, ou seja, forçado ou imposto, podendo cruzar uma linha perigosa. Um exemplo recente aconteceu no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, onde uma empresa foi condenada porque seu administrador usava sua posição para tentar converter um funcionário. Esse tipo de atitude desrespeita a autonomia individual e contraria o espírito da liberdade religiosa, que deveria promover o diálogo, e não a imposição. Veja a decisão:

RECURSO ORDINÁRIO DO RECLAMANTE. DANO MORAL. PROSELITISMO RELIGIOSO.

A responsabilidade civil do empregador é pressuposto do dever de pagar a indenização por danos morais assegurada pelo art. 5º, V e X, da CF, bem como pelos arts. 186 e 927 do CC. Caso no qual o sócio administrador da empresa, Testemunha de Jeová, irmão do reclamante, praticante de religião de matriz afro-brasileira, não apenas repudiava a escolha religiosa do seu irmão funcionário, como também a presença de objetos religiosos na casa em que residia, a qual também servia de filial da empresa. Mensagens de whatsapp e prova testemunhal indicando proselitismo religioso do sócio administrador no âmbito profissional, em violação à intimidade e ao art. 5º, VI, CF. Entendimento de que a vinculação ou não a certa religião é ponto sensível da intimidade, dialogando com os aspectos mais profundos da filosofia e da crença de cada um. Dano moral indenizável (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Recurso Ordinário nº 0020592-94.2020.5.04.0271. Relatora: Luciana Cardoso Barzotto, 8ª Turma. Data do Julgamento: 13 dez. 2023).

O proselitismo nas redes sociais também enfrenta um dilema: como diferenciar o legítimo exercício de um direito humano fundamental de situações em que ele pode se transformar em discurso de ódio ou incitação à violência? Essa é uma questão complexa, que exige uma análise cuidadosa do contexto e do impacto do discurso. Além disso, a aplicação das leis em um ambiente digital, onde as fronteiras são quase inexistentes, complica ainda mais o cenário, especialmente quando diferentes jurisdições estão envolvidas. Além disso, há o problema da própria obsolescência das normas jurídicas.

Proselitismo não deve ser confundido com discurso de ódio, mas também não pode ser usado como pretexto para impedi-lo ou mitigá-lo

Nesse contexto, o papel do Judiciário tem ganhado destaque. Quando as leis existentes não conseguem acompanhar a rapidez das mudanças sociais, o ativismo judicial entra em cena, buscando preencher lacunas. Um exemplo emblemático foi o julgamento da ADO 26 pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a homofobia e a transfobia como formas de racismo, estabelecendo punições equivalentes. Nesse caso, o STF justificou sua decisão como uma resposta ao que entendeu como omissão do Congresso Nacional em legislar sobre o tema, reacendendo o debate sobre os limites do Judiciário e o respeito à separação de poderes. Veja parte da tese fixada:

1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08.01.1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”);

2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero;

3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.             STF. Plenário. ADO 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello; MI 4733/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em 13/6/2019 (Info 944).

No entanto, é fundamental reconhecer que o ativismo judicial possui limites e não deve substituir o papel do Poder Legislativo na formulação de leis. Os tribunais devem atuar dentro dos limites de sua autoridade, respeitando a separação de poderes, enquanto asseguram que as normas, por exemplo, relacionadas ao proselitismo nas redes sociais sejam consistentes com os princípios democráticos e os direitos fundamentais.

O desafio, portanto, está em equilibrar direitos fundamentais, como a liberdade religiosa e de expressão, com a proteção contra abusos. Proselitismo não deve ser confundido com discurso de ódio, mas também não pode ser usado como pretexto para impedi-lo ou mitigá-lo. Cabe às autoridades — e à sociedade — encontrar maneiras de promover um ambiente digital que seja ao mesmo tempo inclusivo e respeitoso, onde as liberdades individuais coexistam de forma harmônica.

No próximo sábado, vamos continuar essa conversa explorando as perspectivas futuras, as tendências legais em ascensão e os desafios que ainda precisam ser enfrentados para equilibrar o direito ao discurso religioso livre e às vozes discordantes. Será uma oportunidade para refletirmos sobre como construir pontes em vez de barreiras, promovendo uma convivência mais harmoniosa em um mundo cada vez mais conectado. Não perca!

Thiago Rafael Vieira, em coautoria com Kellyman Cardoso da Silva, advogada, especialista em Direito Religioso pela UniEvangélica e Bacharel em Teologia pela UniFil e Márcio José da Silva, advogado, especialista em Direito Religioso, pós-graduado em ciência da Religião, Pedagogo.

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