Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Evento internacional

Da Espanha ao Brasil: a liberdade religiosa como patrimônio jurídico comum

Direito e Religião
Evento em Madri discutiu liberdade religiosa e modelos de relação entre Igreja e Estado. (Foto: Alexandre Caron)

Ouça este conteúdo

O fortalecimento da liberdade religiosa em nosso Brasil passa, necessariamente, pela compreensão de suas raízes e de como ela se desenvolve em outras democracias constitucionais. A Espanha, dentre as grandes democracias ocidentais, desponta como uma fonte direta e intensa de inspiração para o Direito Religioso brasileiro, e a recente realização da segunda edição do curso “Derecho y Religión”, promovido pela Universidade Autônoma de Madri (UAM) em parceria com o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), reafirma esse elo histórico e normativo entre nossos países.

O curso, dirigido pelos renomados professores Félix Alberto Vega Borrego, Rosa María Tourís López e Ricardo García García – este último, uma das maiores autoridades em “Direito Eclesiástico do Estado” (o equivalente espanhol do que chamamos de “Direito Religioso” no Brasil) na Europa –, contou ainda com a codireção dos brasileiros Thiago Rafael Vieira, Jean Marques Regina e Valmir Milomem, respectivamente presidente e vice-presidentes do IBDR. A participação institucional brasileira nesse ambiente acadêmico europeu não é apenas um detalhe, mas uma importante demonstração da consolidação do Direito Religioso como campo jurídico legítimo, necessário, autônomo e constitucional.

Entre os temas que foram abordados, estiveram os modelos de relação entre Igreja e Estado na Europa e no Brasil, a atuação do Poder Judiciário e do Estado frente às demandas religiosas, o impacto da inteligência artificial sobre a liberdade de crença, bem como estudos de casos concretos envolvendo registro de entidades religiosas, manifestações públicas de fé e denúncias de ataques à liberdade religiosa. A proposta pedagógica do curso foi muito além da teorética para formar juristas e profissionais afins com competência prática para defender esse direito fundamental, tanto na Europa quanto na América Latina.

A Espanha, com sua rica experiência normativa e institucional, e o Brasil, com sua diversidade religiosa vibrante, têm muito a aprender um com o outro

O modelo jurídico espanhol de liberdade religiosa, apesar de suas limitações e desafios, é um dos mais avançados do mundo e tem servido como matriz para diversos países do entorno ibero-americano. No Brasil, muitos dos fundamentos do Direito Eclesiástico do Estado, conhecido por cá como Direito Religioso, foram adaptados e reelaborados a partir das doutrinas e experiências espanholas. Não se trata de mera importação legal, mas de uma construção colaborativa de uma cultura jurídica que reconhece a religião como fenômeno humano legítimo e essencial da dimensão humana, com lugar no espaço público e proteção no ordenamento constitucional.

Um ponto de especial destaque é a similitude entre o sistema de laicidade praticado na Espanha – frequentemente classificado como “laicidade cooperativa” – e a proposta doutrinária que temos desenvolvido no Brasil sob o nome de “laicidade colaborativa”. Ambos os sistemas partem do mesmo pressuposto fundamental: o Estado não é inimigo da religião – muito pelo contrário, devendo adotar uma postura de reconhecimento e diálogo com as confissões religiosas, sempre dentro dos marcos da imparcialidade e da benevolência. Tanto na Espanha quanto no Brasil, essa laicidade colaborativa se manifesta com a possibilidade de celebração de acordos com entidades religiosas, no respeito à autonomia interna das igrejas e na promoção de um espaço público plural, onde a fé não precisa ser escondida para ser legítima e o direito humano ao proselitismo é protegido.

A presença brasileira na UAM – por meio dos professores do IBDR, como Valmir Nascimento Milomem e os autores desta coluna semanal – evidencia que o Brasil não apenas aprende com a Espanha, mas também contribui com sua vivência jurídica e sua trajetória própria na promoção da liberdade religiosa. Esse intercâmbio se torna ainda mais urgente diante de um contexto global onde a laicidade é confundida com o laicismo francês ou, ainda pior, chinês, sendo instrumentalizada para suprimir manifestações legítimas de fé.

VEJA TAMBÉM:

Enquanto alguns setores insistem em confundir laicidade com laicismo – este último, não um sistema, mas uma ideologia que pretende expulsar o sagrado da esfera pública –, experiências como a do curso “Derecho y Religión” ajudam a restaurar o verdadeiro sentido do Estado laico: aquele que respeita, protege e promove a liberdade religiosa, sem hostilidades. Um Estado que sabe dialogar com as tradições religiosas, sem abrir mão da imparcialidade benevolente e da pluralidade.

A Espanha, com sua rica experiência normativa e institucional, e o Brasil, com sua diversidade religiosa vibrante, têm muito a aprender um com o outro. E é neste intercâmbio acadêmico, jurídico e humano que se constrói um futuro em que a liberdade religiosa não seja apenas um artigo da Constituição, mas uma realidade vivida no cotidiano das pessoas e das instituições democráticas.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.