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Crônicas de um Estado laico

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Valores

A fé cristã no Congresso Nacional: instrumentalização ou liberdade?

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Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão. (Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados)

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A turma francesa que vive no Brasil (muitos com endereços no Ministério Público), ao verem um parlamentar citar a Bíblia ou usar a tribuna para defender valores cristãos, reage com indignação, como se estivesse diante de uma perigosa ameaça à laicidade do Estado. “Parlamento não é culto!”, dizem. “A tribuna não é púlpito!”, choram. E, em parte, estão certos: o parlamento não é, de fato, uma igreja, e o papel institucional de um deputado ou senador não é o de um pregador. No entanto, é justamente aqui que precisamos fazer uma distinção fundamental: uma coisa é confundir as esferas (homenageando Abraham Kuyper e o bispo JB Carvalho; nós preferimos o termo “ordens”, na pegada de Jacques Maritain), outra é negar a legítima influência da fé – e dos valores que dela emanam – na vida pública.

É ingenuidade (pra não dizer outra coisa) histórica e jurídica imaginar que a moral cristã possa ou deva ser trancada do lado de fora do Congresso Nacional. A tradição ocidental, que forjou os alicerces dos nossos direitos civis, políticos e sociais, foi moldada – com todas as tensões e desenvolvimentos próprios – a partir da matriz judaico-cristã. O Decálogo, por exemplo, com seus mandamentos sobre honra, verdade, fidelidade, justiça e respeito à vida, encontra eco direto em muitos dispositivos do nosso Código Penal e de outras leis brasileiras. E isso não é coincidência, tampouco imposição: é história e influência direta.

Em nome de uma suposta neutralidade, alguns pretendem impor um modelo ideológico de exclusão religiosa

Não se trata de confundir púlpito com tribuna, mas de reconhecer que o que se leva à tribuna não é apenas opinião, mas visão de mundo. Cada parlamentar atua movido por princípios, valores e convicções; afinal de contas, ele não é um robô. Uns são guiados por filosofias políticas seculares; outros, por doutrinas econômicas, ideologias sociais ou mesmo cálculos eleitorais. Por que, então, os valores oriundos da fé cristã seriam os únicos a serem banidos do debate e do espaço democrático por excelência?

A resposta, muitas vezes, repousa sobre uma concepção distorcida ou francesa de laicidade – como se o Estado laico fosse, por definição, um Estado antirreligioso com um viés de exclusão da religiosidade do espaço público. Mas o Brasil adota (graças a Deus) o modelo da laicidade colaborativa, não o de um laicismo militante. A Constituição brasileira garante a separação institucional entre Estado e as confissões religiosas; no entanto, ao mesmo tempo protege a liberdade religiosa em sua plenitude: pessoal e coletiva, objetiva e subjetiva, negativa e positiva; mantendo sempre um olhar benevolente e colaborativo com o fenômeno religioso, substituindo o viés de exclusão dos franceses pelo viés de imparcialidade dos norte-americanos.

Negar a participação da fé no debate público é, paradoxalmente, um atentado à própria laicidade e, evidentemente, à liberdade religiosa. Em nome de uma suposta neutralidade, alguns pretendem impor um modelo ideológico de exclusão religiosa. É como se a única moral legítima para legislar fosse aquela que ignora – ou renega – as tradições espirituais que formam a consciência de milhões de brasileiros e formaram o próprio Brasil.

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A fé cristã pode e deve influenciar a elaboração das leis, a formulação de políticas públicas e as ações do Poder Executivo, desde que dentro das regras do jogo democrático e do respeito ao pluralismo. E isso não significa a imposição de dogmas, mas o oferecimento de fundamentos morais que norteiam a busca pelo bem comum. Os chamados modais deônticos do Direito – aquilo que é permitido, proibido ou obrigatório – se alimentam, inevitavelmente, de concepções sobre o justo e o injusto, o certo e o errado. E tais concepções, em uma sociedade majoritariamente cristã, são inevitavelmente marcadas pela herança da fé.

É bom lembrar que não há neutralidade absoluta (na verdade, apenas o nada é neutro). Todos legislam com base em alguma moral; a diferença está apenas na fonte. Os que rejeitam a influência da fé cristã frequentemente substituem-na por outra moral, geralmente travestida de um “tal” progresso, que nada mais é do que apenas novas crenças, com seus próprios ritos, evangelistas e pecados capitais.

Portanto, não se trata de transformar o parlamento em templo religioso, nem de exigir dos políticos uma conduta eclesiástica. Trata-se apenas de reconhecer que a fé – especialmente a cristã, dada sua capilaridade social, influência e relevância histórica no Brasil – tem pleno direito de dialogar com a política, de inspirar projetos, de iluminar consciências. Se a tribuna não é púlpito, ela tampouco é um confessionário secular onde se exige a abjuração da própria crença para participar do debate democrático, à la Carlos V na Dieta de Worms.

Não se trata de transformar o parlamento em templo religioso, nem de exigir dos políticos uma conduta eclesiástica. Trata-se apenas de reconhecer que a fé tem pleno direito de dialogar com a política

No fim das contas, a fé cristã continuará presente no Congresso Nacional, inclusive com sua Frente Parlamentar Evangélica, não porque é imposta, mas porque é vivida. E quem a vive, quando chamado a legislar, tem o dever de trazer à mesa não apenas suas estratégias, mas também seus valores. Isso é coerência. Isso é liberdade. Isso é democracia. Isso é laicidade colaborativa.

Como escreveu Alexis de Tocqueville, ao observar a vitalidade da democracia americana no século 19:“A religião é ainda a primeira das instituições políticas dos Estados Unidos... porque é à religião que deve ser atribuída a singular força moral da nação”. E, como nos exorta o apóstolo Paulo, em sua Carta aos Romanos (12,21): “Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem”.

Que o bem, a verdade e a justiça – tantas vezes iluminados pela fé – continuem vencendo nas tribunas de um Estado verdadeiramente livre e, por isso mesmo, aberto à voz da consciência.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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